Como escrevo a ficção

Luso-Brazilian Review, Volume 49, Number 2, 2012, p. 1-4

Como escrevo a ficção

João Almino 1

Há décadas escrever ficção para mim é um exercício como o de quem diariamente precisa exercitar o corpo ou o dos religiosos que rezam todos os dias. Raramente faço distinção entre momentos em que estou escrevendo um livro e que não estou. O pequeno exercício diário está sempre presente, em movimento, resultando em mais ou menos páginas escritas ou apenas reescritas. Assim, quando um livro é concluído, projetos de outros são concebidos ou retomados e, na medida em que um deles se desenvolve mais, é a este que dedico minhas horas diárias de escrita.

Até hoje sempre me atraíram mais os relatos longos, ou seja, os romances. Lanço-me neles como numa corrida de longa distância, ou melhor, como numa peregrinação a algum lugar misterioso cuja distância desconheço, ou ainda a um périplo que me levará a novas aventuras. Gosto de partir não apenas com algumas frases na bagagem, mas também com uma vaga noção do conjunto, uma estrutura ou um esquema apenas pensados e ainda não escritos. Mas à medida que as frases vão se juntando umas às outras, essa noção de conjunto, essa estrutura, esse esquema, sejam eles formadores de histórias ou não, vão se modificando a tal ponto que, quando chego ao final, muitas vezes já não reconheço os elementos que inspiraram minha partida.

Uma vez concluída uma primeira versão – bruta, descosida, cheia de materiais coletados pelo meio do caminho –, começo as revisões. No meu caso são muitas e, portanto, reescrever é muito mais demorado do que escrever. O livro é reescrito do começo ao final tantas vezes que a última versão pode ser radicalmente distinta da primeira. Nesse processo de reescrita, posso refazer as histórias e fundir ou dividir personagens.

O que mais me atrai na elaboração de um texto literário é a criação de personagens muito diferentes uns dos outros, aos quais tenho de dar vida, colocando uns em confronto com outros, explorando suas contradições, seus amores, ódios, desavenças, sua esperança e desespero – personagens que não sejam apenas isso ou aquilo, que evoluam e surpreendam sem deixar de ser o que são; que tenham sentimentos complexos e possam, por exemplo, ter alegrias em meio à dor, misturem o bem e o mal e possam despertar ódio e amor. Não tento transpor para a ficção personagens de carne e osso, mas, ao contrário, procuro fazer com que personagens imaginários, inventados, construídos a partir de pessoas que conheço ou de histórias ouvidas ou lidas, sejam verossímeis.

No início os personagens me pertencem. Dou o pontapé inicial. Mas depois que eles já têm suas biografias, que se envolvem em determinadas situações, devo obedecer a suas próprias evoluções, a suas dinâmicas nas relações de uns com os outros e com o mundo que os rodeia. Não quero sejam portadores de uma clara e inequívoca mensagem minha. Ao por lado a lado personagens radicalmente distintos e explorando-os em sua complexidade, procuro evitar as visões unidimensionais e realçar as ambiguidades, incoerências e perspectivas conflitantes. Os desafios e impasses, em vez de serem percebidos através das conclusões do narrador, devem vir da situação mesma dos personagens e de sua evolução na história.

Alguns desses personagens têm uma relação direta comigo na medida em que sinto compaixão por eles. Para transmitir fielmente suas emoções, vivo outros de mim mesmo e muitas vezes vivo a própria dor alheia. Mas consideraria pobre minha literatura se viesse a se basear exclusivamente na minha experiência. Por isso para compor esses personagens, recorro, como um colecionador, a tudo o que está a meu alcance: ao que me lembro, a histórias que me contam, ao que entendo dos sentimentos alheios, ao que vejo no cinema e sobretudo ao que leio.

Eles se revelam através da história que vivem, de detalhes e fatos menores, do que falam e pensam. Procuro não me limitar a seus aspectos exteriores e a suas ações, como seria possível e até desejável num roteiro cinematográfico. Uma vantagem da literatura, a meu ver, sobre outras expressões artísticas é possibilitar uma dimensão reflexiva aprofundada, dimensão essa que procuro explorar em meu trabalho. Muitas vezes o caráter introspectivo e a dimensão reflexiva, subjetiva, ajudam a ver por dentro os personagens.

Considero uma sorte não ter de produzir por encomenda — para a próxima série de televisão ou para a coluna semanal, por exemplo. Trabalho sem qualquer pressa. Somente publico quando creio que consegui não me repetir e as revisões já não conseguiriam melhorar o texto. Não escrevo por escrever e não confio no que me sai de maneira fácil e despretensiosa.

Aliás, não gosto da ideia de uma literatura despretensiosa. Para mim pessoalmente, a literatura tem que ter ambição. Reconheço que existem livros que servem ao objetivo do mero entretenimento. Podem ser um bom passatempo, mas me interessam pouco. Prefiro ler textos inquietos, que buscam caminhos novos, sobretudo na linguagem. Essa ambição, a meu ver, a boa literatura deve ter, menos para procurar edificar ou instruir o leitor, do que para inquietá-lo, causar-lhe surpresa e fazê-lo caminhar pelo inesperado.

Minha ficção se produz também guiada por uma preocupação estética, o que não significa tentativa de embelezar a realidade, pois a solução literária não passa pelas idealizações, e a literatura não deve se desviar do difícil desafio de revelar os subterrâneos da mente e o lado escuro da vida.

Por outro lado, não me atrai o hiperrealismo literário ou a romantização da violência tão em moda. Gosto de deixar à leitora e ao leitor algum espaço para respirar e imaginar. De deixar que ele ou ela faça as conexões necessárias. De expor as situações com nuances, subentendidos. De escrever nas entrelinhas. Não se trata de silenciar vozes, nem de omitir informações, mas, ao contrário, de avançar sobre o território do desconhecido, tateando-o, sem medo de se expor à dúvida, ao fragmento, ao incompleto, ao que apenas se adivinha. Atrai-me o estilo elíptico, no qual pode existir uma função para as reticências, os fragmentos, os silêncios e os espaços em branco; a ideia de uma narrativa que não se faça apenas de presença, mas também de ausência, de vazio e de silêncio.

A liberdade é o principal instrumento do escritor. A ficção, para fazer jus a seu próprio conceito, deve ser criativa — livre e fundadora, capaz de libertar a própria liberdade de seus sentidos já adquiridos. A boa literatura é aquela, então, que está disposta a liberar a imaginação, a surpreender, a fazer avançar o pensamento, a romper com as formas estabelecidas pela política e pelo próprio saber. Por isso pode ao mesmo tempo dar prazer e incomodar.

Confio em que continua existindo uma literatura que não esteja subordinada à sociologia, à antropologia, às ideologias, à própria crítica literária – embora possa e deva ser apropriada por esses importantes campos do conhecimento; que não seja feita apenas com vistas ao seu aproveitamento pelo cinema ou as mídias contemporâneas; que não seja um apêndice à ação performática de seus autores.

Que, finalmente, valha pelas palavras mesmas que a constroem, pois acredito que a realidade definidora do texto literário é a da própria linguagem. A literatura não é apenas sobre a experiência; é experiência e aventura. Não é somente sobre a realidade; é realidade mesma. Os temas, as opiniões, os saberes, os enredos podem ser os mais diversos. Não são eles que sustentam por si sós o texto literário e, sim, a forma como as palavras se encadeiam umas às outras, à procura de sentidos.

Note
1. Dando prosseguimento à série de depoimentos de romancistas brasileiros contemporâneos sobre o fazer da ficção, a Luso-Brazilian Review tem o prazer de publicar este texto de João Almino, autor que tem laços estreitos com esta Revista e este campus, onde já esteve em numerosas ocasiões na condição de conferencista e participante de congressos. Em 2011 João Almino recebeu da Universidade de Wisconsin o Global Citizen Award em reconhecimento à sua atuação marcante como homem de letras, intelectual e diplomata.

Luso-Brazilian Review, Volume 49, Number 2, 2012, p. 1-4

Como escrevo a ficção

João Almino 1

Há décadas escrever ficção para mim é um exercício como o de quem diariamente precisa exercitar o corpo ou o dos religiosos que rezam todos os dias. Raramente faço distinção entre momentos em que estou escrevendo um livro e que não estou. O pequeno exercício diário está sempre presente, em movimento, resultando em mais ou menos páginas escritas ou apenas reescritas. Assim, quando um livro é concluído, projetos de outros são concebidos ou retomados e, na medida em que um deles se desenvolve mais, é a este que dedico minhas horas diárias de escrita.

Até hoje sempre me atraíram mais os relatos longos, ou seja, os romances. Lanço-me neles como numa corrida de longa distância, ou melhor, como numa peregrinação a algum lugar misterioso cuja distância desconheço, ou ainda a um périplo que me levará a novas aventuras. Gosto de partir não apenas com algumas frases na bagagem, mas também com uma vaga noção do conjunto, uma estrutura ou um esquema apenas pensados e ainda não escritos. Mas à medida que as frases vão se juntando umas às outras, essa noção de conjunto, essa estrutura, esse esquema, sejam eles formadores de histórias ou não, vão se modificando a tal ponto que, quando chego ao final, muitas vezes já não reconheço os elementos que inspiraram minha partida.

Uma vez concluída uma primeira versão – bruta, descosida, cheia de materiais coletados pelo meio do caminho –, começo as revisões. No meu caso são muitas e, portanto, reescrever é muito mais demorado do que escrever. O livro é reescrito do começo ao final tantas vezes que a última versão pode ser radicalmente distinta da primeira. Nesse processo de reescrita, posso refazer as histórias e fundir ou dividir personagens.

O que mais me atrai na elaboração de um texto literário é a criação de personagens muito diferentes uns dos outros, aos quais tenho de dar vida, colocando uns em confronto com outros, explorando suas contradições, seus amores, ódios, desavenças, sua esperança e desespero – personagens que não sejam apenas isso ou aquilo, que evoluam e surpreendam sem deixar de ser o que são; que tenham sentimentos complexos e possam, por exemplo, ter alegrias em meio à dor, misturem o bem e o mal e possam despertar ódio e amor. Não tento transpor para a ficção personagens de carne e osso, mas, ao contrário, procuro fazer com que personagens imaginários, inventados, construídos a partir de pessoas que conheço ou de histórias ouvidas ou lidas, sejam verossímeis.

No início os personagens me pertencem. Dou o pontapé inicial. Mas depois que eles já têm suas biografias, que se envolvem em determinadas situações, devo obedecer a suas próprias evoluções, a suas dinâmicas nas relações de uns com os outros e com o mundo que os rodeia. Não quero sejam portadores de uma clara e inequívoca mensagem minha. Ao por lado a lado personagens radicalmente distintos e explorando-os em sua complexidade, procuro evitar as visões unidimensionais e realçar as ambiguidades, incoerências e perspectivas conflitantes. Os desafios e impasses, em vez de serem percebidos através das conclusões do narrador, devem vir da situação mesma dos personagens e de sua evolução na história.

Alguns desses personagens têm uma relação direta comigo na medida em que sinto compaixão por eles. Para transmitir fielmente suas emoções, vivo outros de mim mesmo e muitas vezes vivo a própria dor alheia. Mas consideraria pobre minha literatura se viesse a se basear exclusivamente na minha experiência. Por isso para compor esses personagens, recorro, como um colecionador, a tudo o que está a meu alcance: ao que me lembro, a histórias que me contam, ao que entendo dos sentimentos alheios, ao que vejo no cinema e sobretudo ao que leio.

Eles se revelam através da história que vivem, de detalhes e fatos menores, do que falam e pensam. Procuro não me limitar a seus aspectos exteriores e a suas ações, como seria possível e até desejável num roteiro cinematográfico. Uma vantagem da literatura, a meu ver, sobre outras expressões artísticas é possibilitar uma dimensão reflexiva aprofundada, dimensão essa que procuro explorar em meu trabalho. Muitas vezes o caráter introspectivo e a dimensão reflexiva, subjetiva, ajudam a ver por dentro os personagens.

Considero uma sorte não ter de produzir por encomenda — para a próxima série de televisão ou para a coluna semanal, por exemplo. Trabalho sem qualquer pressa. Somente publico quando creio que consegui não me repetir e as revisões já não conseguiriam melhorar o texto. Não escrevo por escrever e não confio no que me sai de maneira fácil e despretensiosa.

Aliás, não gosto da ideia de uma literatura despretensiosa. Para mim pessoalmente, a literatura tem que ter ambição. Reconheço que existem livros que servem ao objetivo do mero entretenimento. Podem ser um bom passatempo, mas me interessam pouco. Prefiro ler textos inquietos, que buscam caminhos novos, sobretudo na linguagem. Essa ambição, a meu ver, a boa literatura deve ter, menos para procurar edificar ou instruir o leitor, do que para inquietá-lo, causar-lhe surpresa e fazê-lo caminhar pelo inesperado.

Minha ficção se produz também guiada por uma preocupação estética, o que não significa tentativa de embelezar a realidade, pois a solução literária não passa pelas idealizações, e a literatura não deve se desviar do difícil desafio de revelar os subterrâneos da mente e o lado escuro da vida.

Por outro lado, não me atrai o hiperrealismo literário ou a romantização da violência tão em moda. Gosto de deixar à leitora e ao leitor algum espaço para respirar e imaginar. De deixar que ele ou ela faça as conexões necessárias. De expor as situações com nuances, subentendidos. De escrever nas entrelinhas. Não se trata de silenciar vozes, nem de omitir informações, mas, ao contrário, de avançar sobre o território do desconhecido, tateando-o, sem medo de se expor à dúvida, ao fragmento, ao incompleto, ao que apenas se adivinha. Atrai-me o estilo elíptico, no qual pode existir uma função para as reticências, os fragmentos, os silêncios e os espaços em branco; a ideia de uma narrativa que não se faça apenas de presença, mas também de ausência, de vazio e de silêncio.

A liberdade é o principal instrumento do escritor. A ficção, para fazer jus a seu próprio conceito, deve ser criativa — livre e fundadora, capaz de libertar a própria liberdade de seus sentidos já adquiridos. A boa literatura é aquela, então, que está disposta a liberar a imaginação, a surpreender, a fazer avançar o pensamento, a romper com as formas estabelecidas pela política e pelo próprio saber. Por isso pode ao mesmo tempo dar prazer e incomodar.

Confio em que continua existindo uma literatura que não esteja subordinada à sociologia, à antropologia, às ideologias, à própria crítica literária – embora possa e deva ser apropriada por esses importantes campos do conhecimento; que não seja feita apenas com vistas ao seu aproveitamento pelo cinema ou as mídias contemporâneas; que não seja um apêndice à ação performática de seus autores.

Que, finalmente, valha pelas palavras mesmas que a constroem, pois acredito que a realidade definidora do texto literário é a da própria linguagem. A literatura não é apenas sobre a experiência; é experiência e aventura. Não é somente sobre a realidade; é realidade mesma. Os temas, as opiniões, os saberes, os enredos podem ser os mais diversos. Não são eles que sustentam por si sós o texto literário e, sim, a forma como as palavras se encadeiam umas às outras, à procura de sentidos.

Note
1. Dando prosseguimento à série de depoimentos de romancistas brasileiros contemporâneos sobre o fazer da ficção, a Luso-Brazilian Review tem o prazer de publicar este texto de João Almino, autor que tem laços estreitos com esta Revista e este campus, onde já esteve em numerosas ocasiões na condição de conferencista e participante de congressos. Em 2011 João Almino recebeu da Universidade de Wisconsin o Global Citizen Award em reconhecimento à sua atuação marcante como homem de letras, intelectual e diplomata.

Luso-Brazilian Review, Volume 49, Number 2, 2012, p. 1-4

Como escrevo a ficção

João Almino 1

Há décadas escrever ficção para mim é um exercício como o de quem diariamente precisa exercitar o corpo ou o dos religiosos que rezam todos os dias. Raramente faço distinção entre momentos em que estou escrevendo um livro e que não estou. O pequeno exercício diário está sempre presente, em movimento, resultando em mais ou menos páginas escritas ou apenas reescritas. Assim, quando um livro é concluído, projetos de outros são concebidos ou retomados e, na medida em que um deles se desenvolve mais, é a este que dedico minhas horas diárias de escrita.

Até hoje sempre me atraíram mais os relatos longos, ou seja, os romances. Lanço-me neles como numa corrida de longa distância, ou melhor, como numa peregrinação a algum lugar misterioso cuja distância desconheço, ou ainda a um périplo que me levará a novas aventuras. Gosto de partir não apenas com algumas frases na bagagem, mas também com uma vaga noção do conjunto, uma estrutura ou um esquema apenas pensados e ainda não escritos. Mas à medida que as frases vão se juntando umas às outras, essa noção de conjunto, essa estrutura, esse esquema, sejam eles formadores de histórias ou não, vão se modificando a tal ponto que, quando chego ao final, muitas vezes já não reconheço os elementos que inspiraram minha partida.

Uma vez concluída uma primeira versão – bruta, descosida, cheia de materiais coletados pelo meio do caminho –, começo as revisões. No meu caso são muitas e, portanto, reescrever é muito mais demorado do que escrever. O livro é reescrito do começo ao final tantas vezes que a última versão pode ser radicalmente distinta da primeira. Nesse processo de reescrita, posso refazer as histórias e fundir ou dividir personagens.

O que mais me atrai na elaboração de um texto literário é a criação de personagens muito diferentes uns dos outros, aos quais tenho de dar vida, colocando uns em confronto com outros, explorando suas contradições, seus amores, ódios, desavenças, sua esperança e desespero – personagens que não sejam apenas isso ou aquilo, que evoluam e surpreendam sem deixar de ser o que são; que tenham sentimentos complexos e possam, por exemplo, ter alegrias em meio à dor, misturem o bem e o mal e possam despertar ódio e amor. Não tento transpor para a ficção personagens de carne e osso, mas, ao contrário, procuro fazer com que personagens imaginários, inventados, construídos a partir de pessoas que conheço ou de histórias ouvidas ou lidas, sejam verossímeis.

No início os personagens me pertencem. Dou o pontapé inicial. Mas depois que eles já têm suas biografias, que se envolvem em determinadas situações, devo obedecer a suas próprias evoluções, a suas dinâmicas nas relações de uns com os outros e com o mundo que os rodeia. Não quero sejam portadores de uma clara e inequívoca mensagem minha. Ao por lado a lado personagens radicalmente distintos e explorando-os em sua complexidade, procuro evitar as visões unidimensionais e realçar as ambiguidades, incoerências e perspectivas conflitantes. Os desafios e impasses, em vez de serem percebidos através das conclusões do narrador, devem vir da situação mesma dos personagens e de sua evolução na história.

Alguns desses personagens têm uma relação direta comigo na medida em que sinto compaixão por eles. Para transmitir fielmente suas emoções, vivo outros de mim mesmo e muitas vezes vivo a própria dor alheia. Mas consideraria pobre minha literatura se viesse a se basear exclusivamente na minha experiência. Por isso para compor esses personagens, recorro, como um colecionador, a tudo o que está a meu alcance: ao que me lembro, a histórias que me contam, ao que entendo dos sentimentos alheios, ao que vejo no cinema e sobretudo ao que leio.

Eles se revelam através da história que vivem, de detalhes e fatos menores, do que falam e pensam. Procuro não me limitar a seus aspectos exteriores e a suas ações, como seria possível e até desejável num roteiro cinematográfico. Uma vantagem da literatura, a meu ver, sobre outras expressões artísticas é possibilitar uma dimensão reflexiva aprofundada, dimensão essa que procuro explorar em meu trabalho. Muitas vezes o caráter introspectivo e a dimensão reflexiva, subjetiva, ajudam a ver por dentro os personagens.

Considero uma sorte não ter de produzir por encomenda — para a próxima série de televisão ou para a coluna semanal, por exemplo. Trabalho sem qualquer pressa. Somente publico quando creio que consegui não me repetir e as revisões já não conseguiriam melhorar o texto. Não escrevo por escrever e não confio no que me sai de maneira fácil e despretensiosa.

Aliás, não gosto da ideia de uma literatura despretensiosa. Para mim pessoalmente, a literatura tem que ter ambição. Reconheço que existem livros que servem ao objetivo do mero entretenimento. Podem ser um bom passatempo, mas me interessam pouco. Prefiro ler textos inquietos, que buscam caminhos novos, sobretudo na linguagem. Essa ambição, a meu ver, a boa literatura deve ter, menos para procurar edificar ou instruir o leitor, do que para inquietá-lo, causar-lhe surpresa e fazê-lo caminhar pelo inesperado.

Minha ficção se produz também guiada por uma preocupação estética, o que não significa tentativa de embelezar a realidade, pois a solução literária não passa pelas idealizações, e a literatura não deve se desviar do difícil desafio de revelar os subterrâneos da mente e o lado escuro da vida.

Por outro lado, não me atrai o hiperrealismo literário ou a romantização da violência tão em moda. Gosto de deixar à leitora e ao leitor algum espaço para respirar e imaginar. De deixar que ele ou ela faça as conexões necessárias. De expor as situações com nuances, subentendidos. De escrever nas entrelinhas. Não se trata de silenciar vozes, nem de omitir informações, mas, ao contrário, de avançar sobre o território do desconhecido, tateando-o, sem medo de se expor à dúvida, ao fragmento, ao incompleto, ao que apenas se adivinha. Atrai-me o estilo elíptico, no qual pode existir uma função para as reticências, os fragmentos, os silêncios e os espaços em branco; a ideia de uma narrativa que não se faça apenas de presença, mas também de ausência, de vazio e de silêncio.

A liberdade é o principal instrumento do escritor. A ficção, para fazer jus a seu próprio conceito, deve ser criativa — livre e fundadora, capaz de libertar a própria liberdade de seus sentidos já adquiridos. A boa literatura é aquela, então, que está disposta a liberar a imaginação, a surpreender, a fazer avançar o pensamento, a romper com as formas estabelecidas pela política e pelo próprio saber. Por isso pode ao mesmo tempo dar prazer e incomodar.

Confio em que continua existindo uma literatura que não esteja subordinada à sociologia, à antropologia, às ideologias, à própria crítica literária – embora possa e deva ser apropriada por esses importantes campos do conhecimento; que não seja feita apenas com vistas ao seu aproveitamento pelo cinema ou as mídias contemporâneas; que não seja um apêndice à ação performática de seus autores.

Que, finalmente, valha pelas palavras mesmas que a constroem, pois acredito que a realidade definidora do texto literário é a da própria linguagem. A literatura não é apenas sobre a experiência; é experiência e aventura. Não é somente sobre a realidade; é realidade mesma. Os temas, as opiniões, os saberes, os enredos podem ser os mais diversos. Não são eles que sustentam por si sós o texto literário e, sim, a forma como as palavras se encadeiam umas às outras, à procura de sentidos.

Note
1. Dando prosseguimento à série de depoimentos de romancistas brasileiros contemporâneos sobre o fazer da ficção, a Luso-Brazilian Review tem o prazer de publicar este texto de João Almino, autor que tem laços estreitos com esta Revista e este campus, onde já esteve em numerosas ocasiões na condição de conferencista e participante de congressos. Em 2011 João Almino recebeu da Universidade de Wisconsin o Global Citizen Award em reconhecimento à sua atuação marcante como homem de letras, intelectual e diplomata.

Luso-Brazilian Review, Volume 49, Number 2, 2012, p. 1-4

Como escrevo a ficção

João Almino 1

Há décadas escrever ficção para mim é um exercício como o de quem diariamente precisa exercitar o corpo ou o dos religiosos que rezam todos os dias. Raramente faço distinção entre momentos em que estou escrevendo um livro e que não estou. O pequeno exercício diário está sempre presente, em movimento, resultando em mais ou menos páginas escritas ou apenas reescritas. Assim, quando um livro é concluído, projetos de outros são concebidos ou retomados e, na medida em que um deles se desenvolve mais, é a este que dedico minhas horas diárias de escrita.

Até hoje sempre me atraíram mais os relatos longos, ou seja, os romances. Lanço-me neles como numa corrida de longa distância, ou melhor, como numa peregrinação a algum lugar misterioso cuja distância desconheço, ou ainda a um périplo que me levará a novas aventuras. Gosto de partir não apenas com algumas frases na bagagem, mas também com uma vaga noção do conjunto, uma estrutura ou um esquema apenas pensados e ainda não escritos. Mas à medida que as frases vão se juntando umas às outras, essa noção de conjunto, essa estrutura, esse esquema, sejam eles formadores de histórias ou não, vão se modificando a tal ponto que, quando chego ao final, muitas vezes já não reconheço os elementos que inspiraram minha partida.

Uma vez concluída uma primeira versão – bruta, descosida, cheia de materiais coletados pelo meio do caminho –, começo as revisões. No meu caso são muitas e, portanto, reescrever é muito mais demorado do que escrever. O livro é reescrito do começo ao final tantas vezes que a última versão pode ser radicalmente distinta da primeira. Nesse processo de reescrita, posso refazer as histórias e fundir ou dividir personagens.

O que mais me atrai na elaboração de um texto literário é a criação de personagens muito diferentes uns dos outros, aos quais tenho de dar vida, colocando uns em confronto com outros, explorando suas contradições, seus amores, ódios, desavenças, sua esperança e desespero – personagens que não sejam apenas isso ou aquilo, que evoluam e surpreendam sem deixar de ser o que são; que tenham sentimentos complexos e possam, por exemplo, ter alegrias em meio à dor, misturem o bem e o mal e possam despertar ódio e amor. Não tento transpor para a ficção personagens de carne e osso, mas, ao contrário, procuro fazer com que personagens imaginários, inventados, construídos a partir de pessoas que conheço ou de histórias ouvidas ou lidas, sejam verossímeis.

No início os personagens me pertencem. Dou o pontapé inicial. Mas depois que eles já têm suas biografias, que se envolvem em determinadas situações, devo obedecer a suas próprias evoluções, a suas dinâmicas nas relações de uns com os outros e com o mundo que os rodeia. Não quero sejam portadores de uma clara e inequívoca mensagem minha. Ao por lado a lado personagens radicalmente distintos e explorando-os em sua complexidade, procuro evitar as visões unidimensionais e realçar as ambiguidades, incoerências e perspectivas conflitantes. Os desafios e impasses, em vez de serem percebidos através das conclusões do narrador, devem vir da situação mesma dos personagens e de sua evolução na história.

Alguns desses personagens têm uma relação direta comigo na medida em que sinto compaixão por eles. Para transmitir fielmente suas emoções, vivo outros de mim mesmo e muitas vezes vivo a própria dor alheia. Mas consideraria pobre minha literatura se viesse a se basear exclusivamente na minha experiência. Por isso para compor esses personagens, recorro, como um colecionador, a tudo o que está a meu alcance: ao que me lembro, a histórias que me contam, ao que entendo dos sentimentos alheios, ao que vejo no cinema e sobretudo ao que leio.

Eles se revelam através da história que vivem, de detalhes e fatos menores, do que falam e pensam. Procuro não me limitar a seus aspectos exteriores e a suas ações, como seria possível e até desejável num roteiro cinematográfico. Uma vantagem da literatura, a meu ver, sobre outras expressões artísticas é possibilitar uma dimensão reflexiva aprofundada, dimensão essa que procuro explorar em meu trabalho. Muitas vezes o caráter introspectivo e a dimensão reflexiva, subjetiva, ajudam a ver por dentro os personagens.

Considero uma sorte não ter de produzir por encomenda — para a próxima série de televisão ou para a coluna semanal, por exemplo. Trabalho sem qualquer pressa. Somente publico quando creio que consegui não me repetir e as revisões já não conseguiriam melhorar o texto. Não escrevo por escrever e não confio no que me sai de maneira fácil e despretensiosa.

Aliás, não gosto da ideia de uma literatura despretensiosa. Para mim pessoalmente, a literatura tem que ter ambição. Reconheço que existem livros que servem ao objetivo do mero entretenimento. Podem ser um bom passatempo, mas me interessam pouco. Prefiro ler textos inquietos, que buscam caminhos novos, sobretudo na linguagem. Essa ambição, a meu ver, a boa literatura deve ter, menos para procurar edificar ou instruir o leitor, do que para inquietá-lo, causar-lhe surpresa e fazê-lo caminhar pelo inesperado.

Minha ficção se produz também guiada por uma preocupação estética, o que não significa tentativa de embelezar a realidade, pois a solução literária não passa pelas idealizações, e a literatura não deve se desviar do difícil desafio de revelar os subterrâneos da mente e o lado escuro da vida.

Por outro lado, não me atrai o hiperrealismo literário ou a romantização da violência tão em moda. Gosto de deixar à leitora e ao leitor algum espaço para respirar e imaginar. De deixar que ele ou ela faça as conexões necessárias. De expor as situações com nuances, subentendidos. De escrever nas entrelinhas. Não se trata de silenciar vozes, nem de omitir informações, mas, ao contrário, de avançar sobre o território do desconhecido, tateando-o, sem medo de se expor à dúvida, ao fragmento, ao incompleto, ao que apenas se adivinha. Atrai-me o estilo elíptico, no qual pode existir uma função para as reticências, os fragmentos, os silêncios e os espaços em branco; a ideia de uma narrativa que não se faça apenas de presença, mas também de ausência, de vazio e de silêncio.

A liberdade é o principal instrumento do escritor. A ficção, para fazer jus a seu próprio conceito, deve ser criativa — livre e fundadora, capaz de libertar a própria liberdade de seus sentidos já adquiridos. A boa literatura é aquela, então, que está disposta a liberar a imaginação, a surpreender, a fazer avançar o pensamento, a romper com as formas estabelecidas pela política e pelo próprio saber. Por isso pode ao mesmo tempo dar prazer e incomodar.

Confio em que continua existindo uma literatura que não esteja subordinada à sociologia, à antropologia, às ideologias, à própria crítica literária – embora possa e deva ser apropriada por esses importantes campos do conhecimento; que não seja feita apenas com vistas ao seu aproveitamento pelo cinema ou as mídias contemporâneas; que não seja um apêndice à ação performática de seus autores.

Que, finalmente, valha pelas palavras mesmas que a constroem, pois acredito que a realidade definidora do texto literário é a da própria linguagem. A literatura não é apenas sobre a experiência; é experiência e aventura. Não é somente sobre a realidade; é realidade mesma. Os temas, as opiniões, os saberes, os enredos podem ser os mais diversos. Não são eles que sustentam por si sós o texto literário e, sim, a forma como as palavras se encadeiam umas às outras, à procura de sentidos.

Note
1. Dando prosseguimento à série de depoimentos de romancistas brasileiros contemporâneos sobre o fazer da ficção, a Luso-Brazilian Review tem o prazer de publicar este texto de João Almino, autor que tem laços estreitos com esta Revista e este campus, onde já esteve em numerosas ocasiões na condição de conferencista e participante de congressos. Em 2011 João Almino recebeu da Universidade de Wisconsin o Global Citizen Award em reconhecimento à sua atuação marcante como homem de letras, intelectual e diplomata.