Costurando Brasília. Beatriz Resende sobre Cidade Livre, de João Almino

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Beatriz Resende [i]

Gostaria de começar agradecendo imensamente ao Magnífico Reitor da Universidade de Brasília, Prof. José Geraldo de Sousa Júnior, à Comissão UNB 50 anos de Brasília e ao meu amigo João Almino pela honra e alegria de ter sido convidada a participar, junto com outros companheiros de vida literária, dessa mesa-redonda, provocada por dois eventos que merecem saudações entusiasmadas: as comemorações dos 50 anos bem vividos de Brasília, nossa capital e o lançamento do quinto romance de João Almino.

Mais uma vez vou me repetir ao autor: este é seu melhor romance. Se, como até aqui João Almino ocupou o posto de “romancista de Brasília”, ou como diz Silviano Santiago, o mais completo “autor” de Brasília, o imponente título que pode, talvez, soar por vezes pesado, o leva para o decisivo espaço de narradores de cidades, e o coloca em confronto com algum de nossos mais importantes escritores, especialmente os narradores que se ocuparam da antiga capital, do Rio de Janeiro.

Antes porém de dividir com vocês minha entusiasmada leitura, quero trazer aqui a primeira lembrança que tenho de Brasília. Não o faço apenas por melancolia ou vaidade, em exercício, meio inútil, de memória. Trago meu relato porque, de algum modo, ele se liga à original estrutura da narrativa de que vamos falar.

Vim à Brasília, pela primeira vez às vésperas de sua inauguração. Início do mês de abril de 1960, às vésperas da transferência da capital. A construção da cidade, naqueles últimos anos de minha infância, era o tema dominante da família, assunto recorrente, trazido com entusiasmo ou revolta, cercado das discussões políticas que acabavam ocupando os encontros que reuniam tios e primos na cidade que estava prestes a deixar de ser Capital Federal.

Os dois irmãos mais velhos de minha mãe viviam – literalmente – por e para Brasília, com tal paixão que chegava a provocar ciúme, ciúme da nova cidade, jovem e bela a tomar lugar da antiga, e, eventualmente, de seus ou suas habitantes. Tio Francisco, o mais velho, Brigadeiro Francisco Teixeira (pai do atual Reitor da UFRJ, Aloísio Teixeira) era chefe de Gabinete do Ministro da Aeronáutica do Governo Juscelino, de quem era amigo. No governo João Goulart foi Comandante da Terceira Zona aérea e pagou seu permanente gosto pela política com várias prisões e a ameaça de ser jogado nas águas da Bahia pela operação Parasar. O segundo, Lino Teixeira, era o piloto de Juscelino – quando foi caçado pelo regime militar, à junta que o aposentou espantou sobretudo a quantidade de horas de vôo que possuía, o que soava estranho para quem não conhecia devidamente o ex-presidente – e foi um dos responsáveis pela construção da Belém Brasília. Amigo de Bernardo Sayão, de quem guardava uma foto em apareciam juntos.

Às vésperas da inauguração, Tio Francisco decide trazer à nova capital, em visita, os sobrinhos que ainda não conheciam a futura cidade. E lá viemos, numa espécie de excursão com ida e vinda no mesmo dia, tios, uns amigos, meu irmão, muito metido a gente, meu pai – que de suas origens gringas trazia a confiança no que chamamos hoje de educação não diferenciada – e eu, a menorzinha, enfiada num vestido da Casa Bonita, caprichado mas pouco adequado à poeirada que nos esperava.

Na vinda, creio que enjoamos quase todos, à exceção de Tio Francisco que ora pilotava, ora deixava a cabine com o co-piloto na animação característica dos anos JK. Na volta, pensei que fosse morrer de dor de ouvido, naquele avião da FAB de péssima pressurização. Mas por entre essas memórias ainda nítidas das desventuras da viagem, o que ficou mesmo foi a imagem de que tudo que se passou, da hora em chegamos à em que partimos, foi puro maravilhamento. A Praça dos Três Poderes, a Catedral, o Palácio da Alvorada, com os móveis sendo arrumados nos salões, o quarto de Juscelino e D. Sara, visitados num à vontade incompreensível para a geração pós-terror. Os vazios, os espaços livres! Eram visões que pareciam fantasias reveladas numa claridade estupenta. Saímos ao pôr-do-sol pois não seria possível deixar Brasília sem conhecer tal cenário. Não havia dúvida, para a menina que já encontrava nos livros seus melhores companheiros a frase de abertura do romance Cidade livre já parecia convincente: “Brasília é um romance digno de ser contado”.

Os olhos do menino João me trouxeram com emoção esse retrato do quase, do ainda não completo, do muito cercado de pouco, de vazios imensos, do que a genilialidade de seus construtores já fizera – “arquitetura é poesia” – e do muito que havia por fazer. É nesta chave que li Cidade livre.

De todos os romances de Machado de Assis, meu preferido é o último, Memorial de Aires. A esta narrativa já chamei de “romance pelo avesso”, porque nele está revelada a própria urdidura do romance, as estratégias do magnífico narrador, as opções que o romancista faz decidindo arbitrariamente e revelando-se autor, por trazer ao leitor o que ele acha importante e, muitas vezes deixando de lado o que poderia merecer mais importância em qualquer outra narrativa romanesca tradicional.

Memorial de Aires se inicia com um enigma/ desafio ao leitor, uma nota que apresenta os diários achados do Conselheiro, assinada: M. de A.

Cidade Livre começa com brincadeira semelhante: uma introdução assinada por J.A., onde agradece a seu revisor, João Almino. Melhor filiação provocativa não poderia ter sido escolhida.

Inicia-se, então, o que deveria ou poderia, ser o relato da criação de Brasília. O que de fato começa é a narrativa dos entres, das frestas – por onde o menino olha seus objetos de desejo – do que iria ser e, sobretudo o que teria que deixar de ser.

A cidade livre, diz o romance, é “a primeira cidade descartável,construída para ser destruída” e cresce à medida em que a capital se vai erguendo, absolutamente moderna, e como o cânone moderno que terminou por ser em nossa arte e cultura hegemônico, recusando tudo que existisse a sua volta. “Cidade moderna – como diz o engenheiro Roberto – aberta ao mundo, não precisa ser pitoresca”. O moderno é o novo, ab ovo, em nada comparável ao que o antecedeu. Porisso, para que a Nova Capital brilhe diante do mundo, é preciso que a cidade livre, desordenada, não planejada, pecadora, criminosa e mítica desapareça, abominada. A Cidade Livre é a cidade sem qualidades.

Em um de seus interessantes estudos sobre a morfologia das cidades, Henri-Pierre Jeudy se pergunta:

Mas pode-se verdadeiramente detestar uma cidade? E quais seriam as razões? Sua ausência de centro? Seu aspecto desordenado? A feiúra de suas construções? Sua violência cotidiana? Todas as razões para detestá-la terminam por lhe conferir um atrativo; Assim é feita a natureza humana, que se deixa estranhamente atrair pelo que crê abominar.

Está traçada a estratégia literária que vai conduzir a narrativa neste que, a meu ver, é o mais sofisticado dos romances de João Almino.

Com o vasto tecido que é a linguagem, vai sendo costurado o relato da criação de Brasília. O ponto de partida é o molde recortado por mãos de artistas – Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. Hábeis artesãos, vão seguindo com o trabalho: Bernardo Sayão é um deles. À medida em que trabalham, vão ficando retalhos à volta, deixados de lado ou guardados para serem reaproveitados depois. A narrativa vai seguindo pelo avesso costurado. Pontos precisos, medidos, planejados, previstos. E os restos crescendo no entorno. Por vezes os dedos são picados, um corte segue mais longe do que o previsto, uma bainha precisa ser refeita. O tempo corre e é preciso que obra-prima fique pronta em tempo. Se alguém cansar, desistir, morrer, precisa ser logo substituído. O entusiasmo vem do criador, aquele que confia na beleza a ser conseguida e estimula, anima. É o presidente. Finalmente o trabalho está pronto para ser mostrado, exibido ao público curioso, vestido que o noivo só pode ver no altar. O sucesso foi conseguido. Aplausos.

Mas a narrativa não é o produto final, o êxito que interessa tanto, são os percalços, as sobras, os restos atirados em torno que lhe dão forma.

Desde o início, Cidade livre é narrativa do que não é , do que substituiu, tomou lugar de algo original mas que se perdeu.

Desse modo, na narrativa o pai não é o pai, e mesmo se tornando pai, não é verdadeiramente conhecido até que os laços de proximidade sejam rompidos. A mãe não é mãe. Não há Jocasta para esse Édipo precoce em seus desejos eróticos. Mãe que se desdobra em tia, a unicidade da mãe é multiplicada e os desejos dobrados. Mesmo assim, ou por isso mesmo, o incesto – mesmo simbólico – não irá se realizar.

O grande herói, belo, grande poderoso, o engenheiro, construtor de estradas e cidades, Bernardo Sayão, será esmagado pela natureza. Mais potente que ele, a árvore de dimensões selvagens o destruirá. É bem mais difícil destruir o nordestino simpático e discreto, perseguido e ameaçado poderá, ou não, assassinar ou ser assassinado. O nordestino Valdevino quer construir o perene, deixar raízes, mas tudo isso parece impossível:

Valdivino apareceu em nossa Cidade Livre, frustrado porque, três horas depois do fim da missa, havia desabado o toldo que ele ajudar a construir. Seria uma premonição? Será que o que ele construía não se sustentava com o tempo? Lembre-se, o toldo é provisório, tranqüilizou-o Tia Francisca,são as igrejas que você constrói que vão se manter de pé.

Voltemos ao pai fundador. De conhecedor da mente humana passará a vítima ou paciente, de médico passará a doente. Livre, sem amarras, podendo ir e vir, passará a prisioneiro. Por que em cada um está presente seu oposto, seu contrário. No que amamos o que odiamos, no abominável o amado.

É esse pai que deveria contar a história da construção de Brasília. Para isso é necessário arrebatar de cada visitante sua melhor frase, sua expressão admirativa mais entusiasmada. O escriba não reconhecido, o cronista da cidade não publicado, o historiador sem história, tudo registra, tudo anota, tudo ouve e guarda.

Tal relato, porém, permanecerá desconhecido, ignorado e, mais forte ainda, enterrado. São papéis enterrados que contêm a história da criação de Brasília. Ao não filho caberá, talvez, reconstruir com sua habilidade de jornalista essa história, ou esse romance.

O herdeiro que nada herda, é autor, é capaz de dominar bem mais que a capacidade – impossível – de tudo registrar. Ajudado por seu revisor João Almino, o autor/artista irá se ocupar não mais do registro fidedigno, da história oficial, não da exibição da costura obra-de-arte, mas vai virar a obra pelo avesso, mostrando todos os pontos, os recortes, as amarras e as solturas de que é feita a obra.

A narrativa possível não será histórica e sim poética. Não seguirá a lógica dos fatos mas da imaginação. Para construí-la as obsessões vêem e vão. A ordem é a da memória e o encadeamento segue a organização anárquica que a memória, afetiva ou traumática, dá aos fatos lembrados. Porisso os mesmos fatos podem se repetir, os casos podem ter diferentes versões, com o futuro se imiscuindo no presente, o passado interessando, como afirmava Walter Benjamin, porque nele já estava contido o futuro.

Nessas memórias reconstruídas, nessa reprodução de papéis enterrados, mais do que a cidade capital, oficial, vai interessar o espaço à volta, o que deveria ser destruído, espaço à margens com os temores que só podem cercar um natimorto, o bastardo que cresceu com o destino de desaparecer.

Uma outra Brasília, que é mesma. A outra cidade em que se desdobra. Espaço que ameaça a qualquer instante devolver a condenação a que fora submetida.

O pai narrador registra em seus papéis a fala de um jornalista ” Brasília é algo que supera tudo que se imagiana, algo que teria assustado ao próprio Júlio Verne, se alguém lhe falasse a respeito”. O narrador completa:

A razão para o espanto não era a arquitetura de Oscar Niemeyer, nem o plano urbanístico de Lúcio Costa; eram as crenças e seitas que já proliferavam pelos seus arredores e a possibilidade de que Lucrécia, uma prostituta, viesse a ser profetisa.

Como dizia, ainda uma vez, Machado e Assis, o menino é o pai do homem.

Parabéns, João Almino.


[i] Beatriz Resende é professora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, pesquisadora do CNPQ e do PACC/UFRJ. Atualmente é coordenadora do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ.

 

Beatriz Resende [i]

Gostaria de começar agradecendo imensamente ao Magnífico Reitor da Universidade de Brasília, Prof. José Geraldo de Sousa Júnior, à Comissão UNB 50 anos de Brasília e ao meu amigo João Almino pela honra e alegria de ter sido convidada a participar, junto com outros companheiros de vida literária, dessa mesa-redonda, provocada por dois eventos que merecem saudações entusiasmadas: as comemorações dos 50 anos bem vividos de Brasília, nossa capital e o lançamento do quinto romance de João Almino.

Mais uma vez vou me repetir ao autor: este é seu melhor romance. Se, como até aqui João Almino ocupou o posto de “romancista de Brasília”, ou como diz Silviano Santiago, o mais completo “autor” de Brasília, o imponente título que pode, talvez, soar por vezes pesado, o leva para o decisivo espaço de narradores de cidades, e o coloca em confronto com algum de nossos mais importantes escritores, especialmente os narradores que se ocuparam da antiga capital, do Rio de Janeiro.

Antes porém de dividir com vocês minha entusiasmada leitura, quero trazer aqui a primeira lembrança que tenho de Brasília. Não o faço apenas por melancolia ou vaidade, em exercício, meio inútil, de memória. Trago meu relato porque, de algum modo, ele se liga à original estrutura da narrativa de que vamos falar.

Vim à Brasília, pela primeira vez às vésperas de sua inauguração. Início do mês de abril de 1960, às vésperas da transferência da capital. A construção da cidade, naqueles últimos anos de minha infância, era o tema dominante da família, assunto recorrente, trazido com entusiasmo ou revolta, cercado das discussões políticas que acabavam ocupando os encontros que reuniam tios e primos na cidade que estava prestes a deixar de ser Capital Federal.

Os dois irmãos mais velhos de minha mãe viviam – literalmente – por e para Brasília, com tal paixão que chegava a provocar ciúme, ciúme da nova cidade, jovem e bela a tomar lugar da antiga, e, eventualmente, de seus ou suas habitantes. Tio Francisco, o mais velho, Brigadeiro Francisco Teixeira (pai do atual Reitor da UFRJ, Aloísio Teixeira) era chefe de Gabinete do Ministro da Aeronáutica do Governo Juscelino, de quem era amigo. No governo João Goulart foi Comandante da Terceira Zona aérea e pagou seu permanente gosto pela política com várias prisões e a ameaça de ser jogado nas águas da Bahia pela operação Parasar. O segundo, Lino Teixeira, era o piloto de Juscelino – quando foi caçado pelo regime militar, à junta que o aposentou espantou sobretudo a quantidade de horas de vôo que possuía, o que soava estranho para quem não conhecia devidamente o ex-presidente – e foi um dos responsáveis pela construção da Belém Brasília. Amigo de Bernardo Sayão, de quem guardava uma foto em apareciam juntos.

Às vésperas da inauguração, Tio Francisco decide trazer à nova capital, em visita, os sobrinhos que ainda não conheciam a futura cidade. E lá viemos, numa espécie de excursão com ida e vinda no mesmo dia, tios, uns amigos, meu irmão, muito metido a gente, meu pai – que de suas origens gringas trazia a confiança no que chamamos hoje de educação não diferenciada – e eu, a menorzinha, enfiada num vestido da Casa Bonita, caprichado mas pouco adequado à poeirada que nos esperava.

Na vinda, creio que enjoamos quase todos, à exceção de Tio Francisco que ora pilotava, ora deixava a cabine com o co-piloto na animação característica dos anos JK. Na volta, pensei que fosse morrer de dor de ouvido, naquele avião da FAB de péssima pressurização. Mas por entre essas memórias ainda nítidas das desventuras da viagem, o que ficou mesmo foi a imagem de que tudo que se passou, da hora em chegamos à em que partimos, foi puro maravilhamento. A Praça dos Três Poderes, a Catedral, o Palácio da Alvorada, com os móveis sendo arrumados nos salões, o quarto de Juscelino e D. Sara, visitados num à vontade incompreensível para a geração pós-terror. Os vazios, os espaços livres! Eram visões que pareciam fantasias reveladas numa claridade estupenta. Saímos ao pôr-do-sol pois não seria possível deixar Brasília sem conhecer tal cenário. Não havia dúvida, para a menina que já encontrava nos livros seus melhores companheiros a frase de abertura do romance Cidade livre já parecia convincente: “Brasília é um romance digno de ser contado”.

Os olhos do menino João me trouxeram com emoção esse retrato do quase, do ainda não completo, do muito cercado de pouco, de vazios imensos, do que a genilialidade de seus construtores já fizera – “arquitetura é poesia” – e do muito que havia por fazer. É nesta chave que li Cidade livre.

De todos os romances de Machado de Assis, meu preferido é o último, Memorial de Aires. A esta narrativa já chamei de “romance pelo avesso”, porque nele está revelada a própria urdidura do romance, as estratégias do magnífico narrador, as opções que o romancista faz decidindo arbitrariamente e revelando-se autor, por trazer ao leitor o que ele acha importante e, muitas vezes deixando de lado o que poderia merecer mais importância em qualquer outra narrativa romanesca tradicional.

Memorial de Aires se inicia com um enigma/ desafio ao leitor, uma nota que apresenta os diários achados do Conselheiro, assinada: M. de A.

Cidade Livre começa com brincadeira semelhante: uma introdução assinada por J.A., onde agradece a seu revisor, João Almino. Melhor filiação provocativa não poderia ter sido escolhida.

Inicia-se, então, o que deveria ou poderia, ser o relato da criação de Brasília. O que de fato começa é a narrativa dos entres, das frestas – por onde o menino olha seus objetos de desejo – do que iria ser e, sobretudo o que teria que deixar de ser.

A cidade livre, diz o romance, é “a primeira cidade descartável,construída para ser destruída” e cresce à medida em que a capital se vai erguendo, absolutamente moderna, e como o cânone moderno que terminou por ser em nossa arte e cultura hegemônico, recusando tudo que existisse a sua volta. “Cidade moderna – como diz o engenheiro Roberto – aberta ao mundo, não precisa ser pitoresca”. O moderno é o novo, ab ovo, em nada comparável ao que o antecedeu. Porisso, para que a Nova Capital brilhe diante do mundo, é preciso que a cidade livre, desordenada, não planejada, pecadora, criminosa e mítica desapareça, abominada. A Cidade Livre é a cidade sem qualidades.

Em um de seus interessantes estudos sobre a morfologia das cidades, Henri-Pierre Jeudy se pergunta:

Mas pode-se verdadeiramente detestar uma cidade? E quais seriam as razões? Sua ausência de centro? Seu aspecto desordenado? A feiúra de suas construções? Sua violência cotidiana? Todas as razões para detestá-la terminam por lhe conferir um atrativo; Assim é feita a natureza humana, que se deixa estranhamente atrair pelo que crê abominar.

Está traçada a estratégia literária que vai conduzir a narrativa neste que, a meu ver, é o mais sofisticado dos romances de João Almino.

Com o vasto tecido que é a linguagem, vai sendo costurado o relato da criação de Brasília. O ponto de partida é o molde recortado por mãos de artistas – Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. Hábeis artesãos, vão seguindo com o trabalho: Bernardo Sayão é um deles. À medida em que trabalham, vão ficando retalhos à volta, deixados de lado ou guardados para serem reaproveitados depois. A narrativa vai seguindo pelo avesso costurado. Pontos precisos, medidos, planejados, previstos. E os restos crescendo no entorno. Por vezes os dedos são picados, um corte segue mais longe do que o previsto, uma bainha precisa ser refeita. O tempo corre e é preciso que obra-prima fique pronta em tempo. Se alguém cansar, desistir, morrer, precisa ser logo substituído. O entusiasmo vem do criador, aquele que confia na beleza a ser conseguida e estimula, anima. É o presidente. Finalmente o trabalho está pronto para ser mostrado, exibido ao público curioso, vestido que o noivo só pode ver no altar. O sucesso foi conseguido. Aplausos.

Mas a narrativa não é o produto final, o êxito que interessa tanto, são os percalços, as sobras, os restos atirados em torno que lhe dão forma.

Desde o início, Cidade livre é narrativa do que não é , do que substituiu, tomou lugar de algo original mas que se perdeu.

Desse modo, na narrativa o pai não é o pai, e mesmo se tornando pai, não é verdadeiramente conhecido até que os laços de proximidade sejam rompidos. A mãe não é mãe. Não há Jocasta para esse Édipo precoce em seus desejos eróticos. Mãe que se desdobra em tia, a unicidade da mãe é multiplicada e os desejos dobrados. Mesmo assim, ou por isso mesmo, o incesto – mesmo simbólico – não irá se realizar.

O grande herói, belo, grande poderoso, o engenheiro, construtor de estradas e cidades, Bernardo Sayão, será esmagado pela natureza. Mais potente que ele, a árvore de dimensões selvagens o destruirá. É bem mais difícil destruir o nordestino simpático e discreto, perseguido e ameaçado poderá, ou não, assassinar ou ser assassinado. O nordestino Valdevino quer construir o perene, deixar raízes, mas tudo isso parece impossível:

Valdivino apareceu em nossa Cidade Livre, frustrado porque, três horas depois do fim da missa, havia desabado o toldo que ele ajudar a construir. Seria uma premonição? Será que o que ele construía não se sustentava com o tempo? Lembre-se, o toldo é provisório, tranqüilizou-o Tia Francisca,são as igrejas que você constrói que vão se manter de pé.

Voltemos ao pai fundador. De conhecedor da mente humana passará a vítima ou paciente, de médico passará a doente. Livre, sem amarras, podendo ir e vir, passará a prisioneiro. Por que em cada um está presente seu oposto, seu contrário. No que amamos o que odiamos, no abominável o amado.

É esse pai que deveria contar a história da construção de Brasília. Para isso é necessário arrebatar de cada visitante sua melhor frase, sua expressão admirativa mais entusiasmada. O escriba não reconhecido, o cronista da cidade não publicado, o historiador sem história, tudo registra, tudo anota, tudo ouve e guarda.

Tal relato, porém, permanecerá desconhecido, ignorado e, mais forte ainda, enterrado. São papéis enterrados que contêm a história da criação de Brasília. Ao não filho caberá, talvez, reconstruir com sua habilidade de jornalista essa história, ou esse romance.

O herdeiro que nada herda, é autor, é capaz de dominar bem mais que a capacidade – impossível – de tudo registrar. Ajudado por seu revisor João Almino, o autor/artista irá se ocupar não mais do registro fidedigno, da história oficial, não da exibição da costura obra-de-arte, mas vai virar a obra pelo avesso, mostrando todos os pontos, os recortes, as amarras e as solturas de que é feita a obra.

A narrativa possível não será histórica e sim poética. Não seguirá a lógica dos fatos mas da imaginação. Para construí-la as obsessões vêem e vão. A ordem é a da memória e o encadeamento segue a organização anárquica que a memória, afetiva ou traumática, dá aos fatos lembrados. Porisso os mesmos fatos podem se repetir, os casos podem ter diferentes versões, com o futuro se imiscuindo no presente, o passado interessando, como afirmava Walter Benjamin, porque nele já estava contido o futuro.

Nessas memórias reconstruídas, nessa reprodução de papéis enterrados, mais do que a cidade capital, oficial, vai interessar o espaço à volta, o que deveria ser destruído, espaço à margens com os temores que só podem cercar um natimorto, o bastardo que cresceu com o destino de desaparecer.

Uma outra Brasília, que é mesma. A outra cidade em que se desdobra. Espaço que ameaça a qualquer instante devolver a condenação a que fora submetida.

O pai narrador registra em seus papéis a fala de um jornalista ” Brasília é algo que supera tudo que se imagiana, algo que teria assustado ao próprio Júlio Verne, se alguém lhe falasse a respeito”. O narrador completa:

A razão para o espanto não era a arquitetura de Oscar Niemeyer, nem o plano urbanístico de Lúcio Costa; eram as crenças e seitas que já proliferavam pelos seus arredores e a possibilidade de que Lucrécia, uma prostituta, viesse a ser profetisa.

Como dizia, ainda uma vez, Machado e Assis, o menino é o pai do homem.

Parabéns, João Almino.


[i] Beatriz Resende é professora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, pesquisadora do CNPQ e do PACC/UFRJ. Atualmente é coordenadora do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ.

 

Beatriz Resende [i]

Gostaria de começar agradecendo imensamente ao Magnífico Reitor da Universidade de Brasília, Prof. José Geraldo de Sousa Júnior, à Comissão UNB 50 anos de Brasília e ao meu amigo João Almino pela honra e alegria de ter sido convidada a participar, junto com outros companheiros de vida literária, dessa mesa-redonda, provocada por dois eventos que merecem saudações entusiasmadas: as comemorações dos 50 anos bem vividos de Brasília, nossa capital e o lançamento do quinto romance de João Almino.

Mais uma vez vou me repetir ao autor: este é seu melhor romance. Se, como até aqui João Almino ocupou o posto de “romancista de Brasília”, ou como diz Silviano Santiago, o mais completo “autor” de Brasília, o imponente título que pode, talvez, soar por vezes pesado, o leva para o decisivo espaço de narradores de cidades, e o coloca em confronto com algum de nossos mais importantes escritores, especialmente os narradores que se ocuparam da antiga capital, do Rio de Janeiro.

Antes porém de dividir com vocês minha entusiasmada leitura, quero trazer aqui a primeira lembrança que tenho de Brasília. Não o faço apenas por melancolia ou vaidade, em exercício, meio inútil, de memória. Trago meu relato porque, de algum modo, ele se liga à original estrutura da narrativa de que vamos falar.

Vim à Brasília, pela primeira vez às vésperas de sua inauguração. Início do mês de abril de 1960, às vésperas da transferência da capital. A construção da cidade, naqueles últimos anos de minha infância, era o tema dominante da família, assunto recorrente, trazido com entusiasmo ou revolta, cercado das discussões políticas que acabavam ocupando os encontros que reuniam tios e primos na cidade que estava prestes a deixar de ser Capital Federal.

Os dois irmãos mais velhos de minha mãe viviam – literalmente – por e para Brasília, com tal paixão que chegava a provocar ciúme, ciúme da nova cidade, jovem e bela a tomar lugar da antiga, e, eventualmente, de seus ou suas habitantes. Tio Francisco, o mais velho, Brigadeiro Francisco Teixeira (pai do atual Reitor da UFRJ, Aloísio Teixeira) era chefe de Gabinete do Ministro da Aeronáutica do Governo Juscelino, de quem era amigo. No governo João Goulart foi Comandante da Terceira Zona aérea e pagou seu permanente gosto pela política com várias prisões e a ameaça de ser jogado nas águas da Bahia pela operação Parasar. O segundo, Lino Teixeira, era o piloto de Juscelino – quando foi caçado pelo regime militar, à junta que o aposentou espantou sobretudo a quantidade de horas de vôo que possuía, o que soava estranho para quem não conhecia devidamente o ex-presidente – e foi um dos responsáveis pela construção da Belém Brasília. Amigo de Bernardo Sayão, de quem guardava uma foto em apareciam juntos.

Às vésperas da inauguração, Tio Francisco decide trazer à nova capital, em visita, os sobrinhos que ainda não conheciam a futura cidade. E lá viemos, numa espécie de excursão com ida e vinda no mesmo dia, tios, uns amigos, meu irmão, muito metido a gente, meu pai – que de suas origens gringas trazia a confiança no que chamamos hoje de educação não diferenciada – e eu, a menorzinha, enfiada num vestido da Casa Bonita, caprichado mas pouco adequado à poeirada que nos esperava.

Na vinda, creio que enjoamos quase todos, à exceção de Tio Francisco que ora pilotava, ora deixava a cabine com o co-piloto na animação característica dos anos JK. Na volta, pensei que fosse morrer de dor de ouvido, naquele avião da FAB de péssima pressurização. Mas por entre essas memórias ainda nítidas das desventuras da viagem, o que ficou mesmo foi a imagem de que tudo que se passou, da hora em chegamos à em que partimos, foi puro maravilhamento. A Praça dos Três Poderes, a Catedral, o Palácio da Alvorada, com os móveis sendo arrumados nos salões, o quarto de Juscelino e D. Sara, visitados num à vontade incompreensível para a geração pós-terror. Os vazios, os espaços livres! Eram visões que pareciam fantasias reveladas numa claridade estupenta. Saímos ao pôr-do-sol pois não seria possível deixar Brasília sem conhecer tal cenário. Não havia dúvida, para a menina que já encontrava nos livros seus melhores companheiros a frase de abertura do romance Cidade livre já parecia convincente: “Brasília é um romance digno de ser contado”.

Os olhos do menino João me trouxeram com emoção esse retrato do quase, do ainda não completo, do muito cercado de pouco, de vazios imensos, do que a genilialidade de seus construtores já fizera – “arquitetura é poesia” – e do muito que havia por fazer. É nesta chave que li Cidade livre.

De todos os romances de Machado de Assis, meu preferido é o último, Memorial de Aires. A esta narrativa já chamei de “romance pelo avesso”, porque nele está revelada a própria urdidura do romance, as estratégias do magnífico narrador, as opções que o romancista faz decidindo arbitrariamente e revelando-se autor, por trazer ao leitor o que ele acha importante e, muitas vezes deixando de lado o que poderia merecer mais importância em qualquer outra narrativa romanesca tradicional.

Memorial de Aires se inicia com um enigma/ desafio ao leitor, uma nota que apresenta os diários achados do Conselheiro, assinada: M. de A.

Cidade Livre começa com brincadeira semelhante: uma introdução assinada por J.A., onde agradece a seu revisor, João Almino. Melhor filiação provocativa não poderia ter sido escolhida.

Inicia-se, então, o que deveria ou poderia, ser o relato da criação de Brasília. O que de fato começa é a narrativa dos entres, das frestas – por onde o menino olha seus objetos de desejo – do que iria ser e, sobretudo o que teria que deixar de ser.

A cidade livre, diz o romance, é “a primeira cidade descartável,construída para ser destruída” e cresce à medida em que a capital se vai erguendo, absolutamente moderna, e como o cânone moderno que terminou por ser em nossa arte e cultura hegemônico, recusando tudo que existisse a sua volta. “Cidade moderna – como diz o engenheiro Roberto – aberta ao mundo, não precisa ser pitoresca”. O moderno é o novo, ab ovo, em nada comparável ao que o antecedeu. Porisso, para que a Nova Capital brilhe diante do mundo, é preciso que a cidade livre, desordenada, não planejada, pecadora, criminosa e mítica desapareça, abominada. A Cidade Livre é a cidade sem qualidades.

Em um de seus interessantes estudos sobre a morfologia das cidades, Henri-Pierre Jeudy se pergunta:

Mas pode-se verdadeiramente detestar uma cidade? E quais seriam as razões? Sua ausência de centro? Seu aspecto desordenado? A feiúra de suas construções? Sua violência cotidiana? Todas as razões para detestá-la terminam por lhe conferir um atrativo; Assim é feita a natureza humana, que se deixa estranhamente atrair pelo que crê abominar.

Está traçada a estratégia literária que vai conduzir a narrativa neste que, a meu ver, é o mais sofisticado dos romances de João Almino.

Com o vasto tecido que é a linguagem, vai sendo costurado o relato da criação de Brasília. O ponto de partida é o molde recortado por mãos de artistas – Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. Hábeis artesãos, vão seguindo com o trabalho: Bernardo Sayão é um deles. À medida em que trabalham, vão ficando retalhos à volta, deixados de lado ou guardados para serem reaproveitados depois. A narrativa vai seguindo pelo avesso costurado. Pontos precisos, medidos, planejados, previstos. E os restos crescendo no entorno. Por vezes os dedos são picados, um corte segue mais longe do que o previsto, uma bainha precisa ser refeita. O tempo corre e é preciso que obra-prima fique pronta em tempo. Se alguém cansar, desistir, morrer, precisa ser logo substituído. O entusiasmo vem do criador, aquele que confia na beleza a ser conseguida e estimula, anima. É o presidente. Finalmente o trabalho está pronto para ser mostrado, exibido ao público curioso, vestido que o noivo só pode ver no altar. O sucesso foi conseguido. Aplausos.

Mas a narrativa não é o produto final, o êxito que interessa tanto, são os percalços, as sobras, os restos atirados em torno que lhe dão forma.

Desde o início, Cidade livre é narrativa do que não é , do que substituiu, tomou lugar de algo original mas que se perdeu.

Desse modo, na narrativa o pai não é o pai, e mesmo se tornando pai, não é verdadeiramente conhecido até que os laços de proximidade sejam rompidos. A mãe não é mãe. Não há Jocasta para esse Édipo precoce em seus desejos eróticos. Mãe que se desdobra em tia, a unicidade da mãe é multiplicada e os desejos dobrados. Mesmo assim, ou por isso mesmo, o incesto – mesmo simbólico – não irá se realizar.

O grande herói, belo, grande poderoso, o engenheiro, construtor de estradas e cidades, Bernardo Sayão, será esmagado pela natureza. Mais potente que ele, a árvore de dimensões selvagens o destruirá. É bem mais difícil destruir o nordestino simpático e discreto, perseguido e ameaçado poderá, ou não, assassinar ou ser assassinado. O nordestino Valdevino quer construir o perene, deixar raízes, mas tudo isso parece impossível:

Valdivino apareceu em nossa Cidade Livre, frustrado porque, três horas depois do fim da missa, havia desabado o toldo que ele ajudar a construir. Seria uma premonição? Será que o que ele construía não se sustentava com o tempo? Lembre-se, o toldo é provisório, tranqüilizou-o Tia Francisca,são as igrejas que você constrói que vão se manter de pé.

Voltemos ao pai fundador. De conhecedor da mente humana passará a vítima ou paciente, de médico passará a doente. Livre, sem amarras, podendo ir e vir, passará a prisioneiro. Por que em cada um está presente seu oposto, seu contrário. No que amamos o que odiamos, no abominável o amado.

É esse pai que deveria contar a história da construção de Brasília. Para isso é necessário arrebatar de cada visitante sua melhor frase, sua expressão admirativa mais entusiasmada. O escriba não reconhecido, o cronista da cidade não publicado, o historiador sem história, tudo registra, tudo anota, tudo ouve e guarda.

Tal relato, porém, permanecerá desconhecido, ignorado e, mais forte ainda, enterrado. São papéis enterrados que contêm a história da criação de Brasília. Ao não filho caberá, talvez, reconstruir com sua habilidade de jornalista essa história, ou esse romance.

O herdeiro que nada herda, é autor, é capaz de dominar bem mais que a capacidade – impossível – de tudo registrar. Ajudado por seu revisor João Almino, o autor/artista irá se ocupar não mais do registro fidedigno, da história oficial, não da exibição da costura obra-de-arte, mas vai virar a obra pelo avesso, mostrando todos os pontos, os recortes, as amarras e as solturas de que é feita a obra.

A narrativa possível não será histórica e sim poética. Não seguirá a lógica dos fatos mas da imaginação. Para construí-la as obsessões vêem e vão. A ordem é a da memória e o encadeamento segue a organização anárquica que a memória, afetiva ou traumática, dá aos fatos lembrados. Porisso os mesmos fatos podem se repetir, os casos podem ter diferentes versões, com o futuro se imiscuindo no presente, o passado interessando, como afirmava Walter Benjamin, porque nele já estava contido o futuro.

Nessas memórias reconstruídas, nessa reprodução de papéis enterrados, mais do que a cidade capital, oficial, vai interessar o espaço à volta, o que deveria ser destruído, espaço à margens com os temores que só podem cercar um natimorto, o bastardo que cresceu com o destino de desaparecer.

Uma outra Brasília, que é mesma. A outra cidade em que se desdobra. Espaço que ameaça a qualquer instante devolver a condenação a que fora submetida.

O pai narrador registra em seus papéis a fala de um jornalista ” Brasília é algo que supera tudo que se imagiana, algo que teria assustado ao próprio Júlio Verne, se alguém lhe falasse a respeito”. O narrador completa:

A razão para o espanto não era a arquitetura de Oscar Niemeyer, nem o plano urbanístico de Lúcio Costa; eram as crenças e seitas que já proliferavam pelos seus arredores e a possibilidade de que Lucrécia, uma prostituta, viesse a ser profetisa.

Como dizia, ainda uma vez, Machado e Assis, o menino é o pai do homem.

Parabéns, João Almino.


[i] Beatriz Resende é professora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, pesquisadora do CNPQ e do PACC/UFRJ. Atualmente é coordenadora do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ.

 

Beatriz Resende [i]

Gostaria de começar agradecendo imensamente ao Magnífico Reitor da Universidade de Brasília, Prof. José Geraldo de Sousa Júnior, à Comissão UNB 50 anos de Brasília e ao meu amigo João Almino pela honra e alegria de ter sido convidada a participar, junto com outros companheiros de vida literária, dessa mesa-redonda, provocada por dois eventos que merecem saudações entusiasmadas: as comemorações dos 50 anos bem vividos de Brasília, nossa capital e o lançamento do quinto romance de João Almino.

Mais uma vez vou me repetir ao autor: este é seu melhor romance. Se, como até aqui João Almino ocupou o posto de “romancista de Brasília”, ou como diz Silviano Santiago, o mais completo “autor” de Brasília, o imponente título que pode, talvez, soar por vezes pesado, o leva para o decisivo espaço de narradores de cidades, e o coloca em confronto com algum de nossos mais importantes escritores, especialmente os narradores que se ocuparam da antiga capital, do Rio de Janeiro.

Antes porém de dividir com vocês minha entusiasmada leitura, quero trazer aqui a primeira lembrança que tenho de Brasília. Não o faço apenas por melancolia ou vaidade, em exercício, meio inútil, de memória. Trago meu relato porque, de algum modo, ele se liga à original estrutura da narrativa de que vamos falar.

Vim à Brasília, pela primeira vez às vésperas de sua inauguração. Início do mês de abril de 1960, às vésperas da transferência da capital. A construção da cidade, naqueles últimos anos de minha infância, era o tema dominante da família, assunto recorrente, trazido com entusiasmo ou revolta, cercado das discussões políticas que acabavam ocupando os encontros que reuniam tios e primos na cidade que estava prestes a deixar de ser Capital Federal.

Os dois irmãos mais velhos de minha mãe viviam – literalmente – por e para Brasília, com tal paixão que chegava a provocar ciúme, ciúme da nova cidade, jovem e bela a tomar lugar da antiga, e, eventualmente, de seus ou suas habitantes. Tio Francisco, o mais velho, Brigadeiro Francisco Teixeira (pai do atual Reitor da UFRJ, Aloísio Teixeira) era chefe de Gabinete do Ministro da Aeronáutica do Governo Juscelino, de quem era amigo. No governo João Goulart foi Comandante da Terceira Zona aérea e pagou seu permanente gosto pela política com várias prisões e a ameaça de ser jogado nas águas da Bahia pela operação Parasar. O segundo, Lino Teixeira, era o piloto de Juscelino – quando foi caçado pelo regime militar, à junta que o aposentou espantou sobretudo a quantidade de horas de vôo que possuía, o que soava estranho para quem não conhecia devidamente o ex-presidente – e foi um dos responsáveis pela construção da Belém Brasília. Amigo de Bernardo Sayão, de quem guardava uma foto em apareciam juntos.

Às vésperas da inauguração, Tio Francisco decide trazer à nova capital, em visita, os sobrinhos que ainda não conheciam a futura cidade. E lá viemos, numa espécie de excursão com ida e vinda no mesmo dia, tios, uns amigos, meu irmão, muito metido a gente, meu pai – que de suas origens gringas trazia a confiança no que chamamos hoje de educação não diferenciada – e eu, a menorzinha, enfiada num vestido da Casa Bonita, caprichado mas pouco adequado à poeirada que nos esperava.

Na vinda, creio que enjoamos quase todos, à exceção de Tio Francisco que ora pilotava, ora deixava a cabine com o co-piloto na animação característica dos anos JK. Na volta, pensei que fosse morrer de dor de ouvido, naquele avião da FAB de péssima pressurização. Mas por entre essas memórias ainda nítidas das desventuras da viagem, o que ficou mesmo foi a imagem de que tudo que se passou, da hora em chegamos à em que partimos, foi puro maravilhamento. A Praça dos Três Poderes, a Catedral, o Palácio da Alvorada, com os móveis sendo arrumados nos salões, o quarto de Juscelino e D. Sara, visitados num à vontade incompreensível para a geração pós-terror. Os vazios, os espaços livres! Eram visões que pareciam fantasias reveladas numa claridade estupenta. Saímos ao pôr-do-sol pois não seria possível deixar Brasília sem conhecer tal cenário. Não havia dúvida, para a menina que já encontrava nos livros seus melhores companheiros a frase de abertura do romance Cidade livre já parecia convincente: “Brasília é um romance digno de ser contado”.

Os olhos do menino João me trouxeram com emoção esse retrato do quase, do ainda não completo, do muito cercado de pouco, de vazios imensos, do que a genilialidade de seus construtores já fizera – “arquitetura é poesia” – e do muito que havia por fazer. É nesta chave que li Cidade livre.

De todos os romances de Machado de Assis, meu preferido é o último, Memorial de Aires. A esta narrativa já chamei de “romance pelo avesso”, porque nele está revelada a própria urdidura do romance, as estratégias do magnífico narrador, as opções que o romancista faz decidindo arbitrariamente e revelando-se autor, por trazer ao leitor o que ele acha importante e, muitas vezes deixando de lado o que poderia merecer mais importância em qualquer outra narrativa romanesca tradicional.

Memorial de Aires se inicia com um enigma/ desafio ao leitor, uma nota que apresenta os diários achados do Conselheiro, assinada: M. de A.

Cidade Livre começa com brincadeira semelhante: uma introdução assinada por J.A., onde agradece a seu revisor, João Almino. Melhor filiação provocativa não poderia ter sido escolhida.

Inicia-se, então, o que deveria ou poderia, ser o relato da criação de Brasília. O que de fato começa é a narrativa dos entres, das frestas – por onde o menino olha seus objetos de desejo – do que iria ser e, sobretudo o que teria que deixar de ser.

A cidade livre, diz o romance, é “a primeira cidade descartável,construída para ser destruída” e cresce à medida em que a capital se vai erguendo, absolutamente moderna, e como o cânone moderno que terminou por ser em nossa arte e cultura hegemônico, recusando tudo que existisse a sua volta. “Cidade moderna – como diz o engenheiro Roberto – aberta ao mundo, não precisa ser pitoresca”. O moderno é o novo, ab ovo, em nada comparável ao que o antecedeu. Porisso, para que a Nova Capital brilhe diante do mundo, é preciso que a cidade livre, desordenada, não planejada, pecadora, criminosa e mítica desapareça, abominada. A Cidade Livre é a cidade sem qualidades.

Em um de seus interessantes estudos sobre a morfologia das cidades, Henri-Pierre Jeudy se pergunta:

Mas pode-se verdadeiramente detestar uma cidade? E quais seriam as razões? Sua ausência de centro? Seu aspecto desordenado? A feiúra de suas construções? Sua violência cotidiana? Todas as razões para detestá-la terminam por lhe conferir um atrativo; Assim é feita a natureza humana, que se deixa estranhamente atrair pelo que crê abominar.

Está traçada a estratégia literária que vai conduzir a narrativa neste que, a meu ver, é o mais sofisticado dos romances de João Almino.

Com o vasto tecido que é a linguagem, vai sendo costurado o relato da criação de Brasília. O ponto de partida é o molde recortado por mãos de artistas – Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. Hábeis artesãos, vão seguindo com o trabalho: Bernardo Sayão é um deles. À medida em que trabalham, vão ficando retalhos à volta, deixados de lado ou guardados para serem reaproveitados depois. A narrativa vai seguindo pelo avesso costurado. Pontos precisos, medidos, planejados, previstos. E os restos crescendo no entorno. Por vezes os dedos são picados, um corte segue mais longe do que o previsto, uma bainha precisa ser refeita. O tempo corre e é preciso que obra-prima fique pronta em tempo. Se alguém cansar, desistir, morrer, precisa ser logo substituído. O entusiasmo vem do criador, aquele que confia na beleza a ser conseguida e estimula, anima. É o presidente. Finalmente o trabalho está pronto para ser mostrado, exibido ao público curioso, vestido que o noivo só pode ver no altar. O sucesso foi conseguido. Aplausos.

Mas a narrativa não é o produto final, o êxito que interessa tanto, são os percalços, as sobras, os restos atirados em torno que lhe dão forma.

Desde o início, Cidade livre é narrativa do que não é , do que substituiu, tomou lugar de algo original mas que se perdeu.

Desse modo, na narrativa o pai não é o pai, e mesmo se tornando pai, não é verdadeiramente conhecido até que os laços de proximidade sejam rompidos. A mãe não é mãe. Não há Jocasta para esse Édipo precoce em seus desejos eróticos. Mãe que se desdobra em tia, a unicidade da mãe é multiplicada e os desejos dobrados. Mesmo assim, ou por isso mesmo, o incesto – mesmo simbólico – não irá se realizar.

O grande herói, belo, grande poderoso, o engenheiro, construtor de estradas e cidades, Bernardo Sayão, será esmagado pela natureza. Mais potente que ele, a árvore de dimensões selvagens o destruirá. É bem mais difícil destruir o nordestino simpático e discreto, perseguido e ameaçado poderá, ou não, assassinar ou ser assassinado. O nordestino Valdevino quer construir o perene, deixar raízes, mas tudo isso parece impossível:

Valdivino apareceu em nossa Cidade Livre, frustrado porque, três horas depois do fim da missa, havia desabado o toldo que ele ajudar a construir. Seria uma premonição? Será que o que ele construía não se sustentava com o tempo? Lembre-se, o toldo é provisório, tranqüilizou-o Tia Francisca,são as igrejas que você constrói que vão se manter de pé.

Voltemos ao pai fundador. De conhecedor da mente humana passará a vítima ou paciente, de médico passará a doente. Livre, sem amarras, podendo ir e vir, passará a prisioneiro. Por que em cada um está presente seu oposto, seu contrário. No que amamos o que odiamos, no abominável o amado.

É esse pai que deveria contar a história da construção de Brasília. Para isso é necessário arrebatar de cada visitante sua melhor frase, sua expressão admirativa mais entusiasmada. O escriba não reconhecido, o cronista da cidade não publicado, o historiador sem história, tudo registra, tudo anota, tudo ouve e guarda.

Tal relato, porém, permanecerá desconhecido, ignorado e, mais forte ainda, enterrado. São papéis enterrados que contêm a história da criação de Brasília. Ao não filho caberá, talvez, reconstruir com sua habilidade de jornalista essa história, ou esse romance.

O herdeiro que nada herda, é autor, é capaz de dominar bem mais que a capacidade – impossível – de tudo registrar. Ajudado por seu revisor João Almino, o autor/artista irá se ocupar não mais do registro fidedigno, da história oficial, não da exibição da costura obra-de-arte, mas vai virar a obra pelo avesso, mostrando todos os pontos, os recortes, as amarras e as solturas de que é feita a obra.

A narrativa possível não será histórica e sim poética. Não seguirá a lógica dos fatos mas da imaginação. Para construí-la as obsessões vêem e vão. A ordem é a da memória e o encadeamento segue a organização anárquica que a memória, afetiva ou traumática, dá aos fatos lembrados. Porisso os mesmos fatos podem se repetir, os casos podem ter diferentes versões, com o futuro se imiscuindo no presente, o passado interessando, como afirmava Walter Benjamin, porque nele já estava contido o futuro.

Nessas memórias reconstruídas, nessa reprodução de papéis enterrados, mais do que a cidade capital, oficial, vai interessar o espaço à volta, o que deveria ser destruído, espaço à margens com os temores que só podem cercar um natimorto, o bastardo que cresceu com o destino de desaparecer.

Uma outra Brasília, que é mesma. A outra cidade em que se desdobra. Espaço que ameaça a qualquer instante devolver a condenação a que fora submetida.

O pai narrador registra em seus papéis a fala de um jornalista ” Brasília é algo que supera tudo que se imagiana, algo que teria assustado ao próprio Júlio Verne, se alguém lhe falasse a respeito”. O narrador completa:

A razão para o espanto não era a arquitetura de Oscar Niemeyer, nem o plano urbanístico de Lúcio Costa; eram as crenças e seitas que já proliferavam pelos seus arredores e a possibilidade de que Lucrécia, uma prostituta, viesse a ser profetisa.

Como dizia, ainda uma vez, Machado e Assis, o menino é o pai do homem.

Parabéns, João Almino.


[i] Beatriz Resende é professora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, pesquisadora do CNPQ e do PACC/UFRJ. Atualmente é coordenadora do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ.