Entrevista a Régis Bonvicino sobre O Livro das Emoções

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João Almino acaba de lançar seu quarto romance “O livro das Emoções”, aos cinquenta e oito anos. Erudito e ativo Embaixador, é o Cônsul Geral do Brasil em Chicago, cidade adotiva de Barack Obama, onde há estábiles de Alexander Calder pelas ruas e edifícios do alemão-americano Mies van der Rohe, refletindo, em seus espelhos, o dinamismo e a beleza dessa metrópole.

Almino escreve sem pressa sua prosa de arte. Seus livros anteriores são: “Idéias para onde Passar o Fim do Mundo” (1987), “Samba-Enredo” (1994) e “As Cinco Estações do Amor” (2001). Em vinte e um anos publicou apenas quatro livros, o que mostra, em seu caso, preocupação de apuro. É, igualmente, um pensador político em obras como “O Segredo e a Informação” (1986). O crítico Silviano Santiago define “O Livro das Emoções” como “um moer no áspero”. Nessa entrevista, João Almino discorre sobre seu mais recente livro, sobre autores de sua preferência, como o extraordinário poeta norte-americano Robert Creeley (1926-2003), a questão do preconceito racial no Brasil e nos EUA, e a respeito de John McCain e Barack Obama. Para ele, o vencedor das eleições de novembro, vai enfrentar intricados problemas internos e internacionais.

Régis Bonvicino: O crítico Alcir Pécora afirma que, ao longo de seus romances, há o projeto “de uma fundação escritural de Brasília”. Esse projeto não seria ainda modernista, sobretudo agora, quando se faz severa crítica ao conceito de metrópole e mesmo de cidade? Por que elege Brasília e não sua cidade natal Mossoró, Rio Grande do Norte, ou Fortaleza, onde estudou, como ponto de partida para suas reflexões em prosa de arte?

João Almino: Brasília é a cidade modernista por excelência. Serve como ponto de partida não para enaltecer o projeto modernista, mas, a partir de uma perspectiva pós-utópica, para refletir sobre seu sentido e seus limites. Passei minha infância em Mossoró e minha adolescência em Fortaleza. Muito cedo fui um leitor ávido dos regionalistas nordestinos e até hoje admiro profundamente a obra de Graciliano Ramos e especialmente seu estilo apurado. Por isso mesmo, quando comecei a produzir minha ficção, procurei evitar ser tragado pela forte tradição do romance nordestino. Brasília me dava mais liberdade, me ajudava a fugir dos estereótipos e me ajudava a pôr minha literatura num patamar que eu acreditava ser novo. Além disso, Brasília é um mito cuja história coincide com a história do Brasil independente, e para Brasília eu podia trazer vários brasis, entre os quais o Nordeste.

RB: Em “O Livro da Emoções” um fotógrafo, que se tornou cego, escreve suas memórias a partir da lembrança das fotografias que tirou de Brasília. O livro debate a fotografia como método de registro um tanto envelhecido pela tevê, pelos celulares e pela internet. O senhor também é fotógrafo. Há algo de auto-biográfico no romance?

JA: Há muito pensava em incorporar de maneira mais sistemática a um de meus romances uma reflexão sobre a fotografia, que já fora um ponto de partida de meu primeiro romance, “Idéias para Onde Passar o Fim do Mundo”. De fato aquele romance pode ser lido como o comentário de uma única fotografia. No “Livro das Emoções” o autor e o narrador convergem no que diz respeito à reflexão sobre visualidade e memória. Mas a auto-biografia não se estende aos fatos narrados nem à dimensão existencial da obra. Nos meus livros de ficção desenvolvi personagens muito diferentes de mim e muito diferentes uns dos outros. Quando os leitores vêem neles pessoas de carne-e-osso ou confundem o narrador com o autor me deixam contente, pois significa que consegui tornar esses personagens verossímeis. E na ficção a verossimilhança é mais importante do que a verdade factual.

RB: Pécora ressalta que o romance não se atem a fatos mas que se caracteriza por “um longo disparo, sem cortes e sem ajuste automático de foco”, criando personagens que se vinculam mais pela sintaxe do que pela linearidade narrativa. Pode-se concluir que seu trabalho é prosa feita com base em colagem?

JA: Alcir Pécora é um de nossos mais argutos e requintados críticos. Como seria de esperar, fez, de forma sintética, uma crítica precisa e inteligente do romance. Digamos que o que está sendo narrado não é o que se vislumbra à primeira vista. Posto de outra forma: a linearidade narrativa vai sendo traçada pelo leitor a partir dos fragmentos aparentes, cada um deles centrado numa imagem. A colagem, portanto, é também apenas aparente, pois as linhas de continuidade se tornam evidentes à medida que as peças se encaixam. Os fatos emocionalmente profundos, que projetam a dimensão interior do personagem central, ganham consistência a partir da coleta de detalhes e fatos menores. Este, como todos os meus outros romances, pode ser lido como um comentário sobre o instante, neste caso o instante fotográfico.

Fazer ver o invisível

RB: Susan Sontag afirma que a fotografia é, essencialmente, uma antecipação da morte. Em “O Livro das Emoções” o senhor antecipa a morte da literatura? Ou de qual morte? Qual é o lugar da prosa de arte hoje no mundo?

JA: A relação entre fotografia e morte também foi estabelecida por Barthes quando comentou uma foto de sua mãe, já então morta, foto feita quando ele era criança. De fato, a fotografia congela o tempo, fixa um instante que imediatamente desaparece e nunca será repetido: a imagem mesma da morte. Por outro lado, tem o dom de fazer retornar os mortos. Não importa quando a foto do ser desaparecido foi feita, as irradiações do corpo vivo e real podem vir nos tocar através de sua imagem fotográfica. A fotografia também imortaliza a própria morte. E ao fixar-se a imagem da morte, ultrapassa-se a morte. A literatura que tentasse demonstrar sua própria morte estaria lutando por sua reinvenção e sobrevivência. Há uma frase citada por um dos personagens do livro: “A morte é muda. Quando a morte fala, é porque é vida”. “O Livro das Emoções” quer se mostrar não como um romance, mas como um álbum de fotografias. O tema das aparências, da representação da realidade, está presente na descrição desse álbum fotográfico. Mas é irônico o processo de dar às palavras uma função auxiliar para a imagem, pois o álbum de fotografias não existe fora das palavras; a imagem somente aparece mediante sua descrição. Por outro lado, dependendo de como o definamos, pode ser que não haja romance. Para mim, portanto, se trata menos de decretar a morte da literatura do que ressaltar a possibilidade de uma narrativa que se faz não apenas de presença, mas também de ausência, de vazio, de elipses e de silêncio. E aqui há também um paralelo com a fotografia, e suas ligações com a ausência, o escuro e a cegueira. Ela salva algo do vazio e o revela, fixando-o no tempo. Por outro lado, por acúmulo de imagens, pode cegar, como na cegueira produzida por excesso de luz. De fato, o bombardeio de imagens pode levar, não à maior consciência e à definição das responsabilidades pelo mal praticado, mas a uma banalização do mal e à percepção de que ele é comum e generalizado. Em vez de provocar indignação, pode levar ao conformismo. Deixamos de perceber o fato quando ele está em toda a parte. Ou seja, precisamos do silêncio para ouvir as palavras, assim como precisamos do escuro – da cegueira – para perceber a luz e a imagem. Para assistir à peça, dizia Merleau-Ponty, é necessário o escuro do teatro. No “Livro das Emoções”, através da cegueira do personagem central, se ressalta o caráter objetivo da fotografia, que a máquina, com sua neutralidade, pode captar, mesmo quando o fotógrafo é cego; e sobretudo o caráter subjetivo da fotografia, que requer, mais do que olho, memória; o mais importante não é o que é fotografado, mas o que o espectador escolhe ver, e o que ele escolhe ver pode estar além da própria imagem. Voltando a sua pergunta, continuo acreditando no papel insubstituível da literatura quando não renuncia a seu papel de fazer ver o invisível, dizer o indizível; e sobretudo quando não renuncia a sua dimensão reflexiva e a sua possibilidade de explorar por dentro os personagens.

Creeley e Cabral

RB: Há muito tempo o senhor reside no exterior, em razão de ser diplomata. Conheceu, portanto, muitas literaturas e muitos autores. Quais foram os que mais lhe marcaram? Se o poeta norte-americano Robert Creeley foi um deles, discorra sobre ele igualmente.

JA: A lista é grande e não toda ela tem a ver com os lugares onde morei. Por exemplo, Dostoiévski e Borges são autores cuja leitura me marcou e continua me marcando, e nunca vivi na Rússia nem na Argentina. Por outro lado, pode ser que se não tivesse morado no México não tivesse tido a oportunidade de admirar tanto a obra de Juan Rulfo e de Octavio Paz. Tanto num caso como no outro tive o privilégio de travar conhecimento não apenas com suas obras, mas também com os próprios autores. Proust é para mim uma referência fundamental e creio que teria sido, mesmo se não tivesse vivido na França. Mas minhas principais referências literárias estão mesmo no Brasil: Machado de Assis, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, João Cabral… Quanto a Creeley, sou um admirador tanto de sua poética quanto de sua poesia, e cheguei a escrever um ensaio sobre ele. Foi um inovador, criando novos padrões rítmicos com sua poesia concisa e elíptica, misturando o lírico e o não lírico. De certa forma ele reinventou a linguagem banal e coloquial, e o fez não enfeitando-a, mas, ao contrário, simplificando-a ainda mais. Talvez seja esse seu maior mérito: o de mostrar a possibilidade de uma simplicidade radical que é, ao mesmo tempo, rica, complexa e aberta a múltiplas interpretações.

Crítica literária

RB: O senhor é um crítico literário. Penso que há uma queda de qualidade em toda a cultura em razão da ausência justamente de crítica e de sua substituição pelo marketing. Concorda com essa afirmação?

JA: Não sou crítico literário, mas apenas um escritor que, quando convidado a fazê-lo, às vezes aceita o desafio de escrever sobre literatura, como se fosse uma escrita em contraponto a meu próprio trabalho de ficção. Quanto a sua afirmação sobre a ausência da crítica, pode ser que o mercado, em um caso ou em outro, faça as escolhas certas. E pode ser que a crítica, mesmo a mais exigente, tenha percepções que se mostrem, com o tempo, erradas. Mas em geral concordo com seu comentário. Lamento, sobretudo, que parte da melhor crítica literária tenha passado a encarar a literatura apenas como um instrumento de suas análises culturais, sociológicas ou antropológicas, mesclando por vezes textos de qualidade estética variada e desigual. Algo desse trabalho revela pouco das obras analisadas, porque está focalizado em questões muito específicas de suas disciplinas, e algumas dessas questões são passageiras, logo ficam datadas, enquanto as boas obras literárias permanecem vivas e abertas à interpretação.

McCain, Obama e o racismo brasileiro disfarçado

RB: O senhor reside hoje em Chicago, uma cidade, no mapa político norte-americano, do Partido Democrata e de Barack Obama. Como vê Chicago? O que os norte-americanos pensam sobre Barack Obama e John McCain?

JA: Chicago é considerada por muitos a capital agrícola e industrial do meio-oeste e do próprio país, é pioneira da arquitetura moderna e a sede da maior bolsa de mercadorias e futuros do mundo. Mas hoje em dia é sem dúvida principalmente um local privilegiado para seguir a política norte-americana, muito especialmente a candidatura Obama. Muitos dos norte-americanos com quem tenho conversado acham que o próximo Presidente, quem quer que seja, enfrentará enormes desafios internos e internacionais. Mas ao mesmo tempo crêem ter a sorte de contar com bons candidatos a Presidente. Sem entrar nos méritos de cada um e apenas reproduzindo a percepção de analistas ou gente do povo nos Estados Unidos, McCain teve inicialmente alguma dificuldade de seduzir a ala mais conservadora de seu partido, mas é uma figura amplamente respeitada, com uma história parlamentar reconhecida mesmo por seus adversários e que tende ao centro do espectro político. E Obama sem dúvida entusiasmou e continua entusiasmando a base do Partido Democrata ao encarnar a novidade.

RB: Há mais preconceito racial no Brasil ou nos EUA? Haveria um candidato negro forte à Presidência da República no Brasil como Obama? A crítica norte-americana Marjorie Perloff considera “Dreams from my father”, de Obama, um livro de arte, filiado à prosa auto-biográfica negra de Malcolm X. Já leu algum dos livros de Obama? Qual a sua opinião sobre seus livros?

JA: A segregação racial deixou marcas fortes na sociedade norte-americana, de uma forma como não existiu no Brasil. Por outro lado, as oportunidades para os negros são maiores nos EUA, e isso foi resultado do movimento dos direitos civis – uma reação ao racismo e também às políticas segregacionistas. No nosso caso, o racismo disfarçado, a ausência de segregação e a miscigenação racial que data da época da Colônia explicam a inexistência de uma reação de tal magnitude. Na minha literatura, há um negro Presidente da República, personagem presente em todo o Quarteto de Brasília, desde o primeiro livro, “Idéias para Onde Passar o Fim do Mundo.” Creio que o personagem foi aceito como verossímil. Não sei se seria uma indicação de que o Brasil estaria preparado para um negro na Presidência. Restaria saber se a sociedade “embranqueceria” ou não um negro que se tornasse um candidato viável. Quanto aos livros de Obama, “The Audacity of Hope” é bem escrito e, embora não entre em detalhes sobre seu programa político, creio ser uma leitura importante para quem deseja conhecer os fundamentos de suas posições e algo se seu pensamento. Há, por exemplo, um longo capítulo dedicado a questões econômicas; há um outro sobre a questão racial; há também retratos mais pessoais, não apenas dele mas também de sua família. É, contudo, um livro menos estruturado em forma autobiográfica e narrativa do que “Dreams From My Father”, publicado em 1995, que cobre sua infância, com descrições, por exemplo, de sua vivência no Havaí e na Indonésia e de como ele lidou com as questões raciais; cobre também os seus anos de Chicago como organizador comunitário e sua viagem à África para melhor conhecer suas raízes. Marjorie Perloff tem razão: é uma melhor peça literária.

João Almino acaba de lançar seu quarto romance “O livro das Emoções”, aos cinquenta e oito anos. Erudito e ativo Embaixador, é o Cônsul Geral do Brasil em Chicago, cidade adotiva de Barack Obama, onde há estábiles de Alexander Calder pelas ruas e edifícios do alemão-americano Mies van der Rohe, refletindo, em seus espelhos, o dinamismo e a beleza dessa metrópole.

Almino escreve sem pressa sua prosa de arte. Seus livros anteriores são: “Idéias para onde Passar o Fim do Mundo” (1987), “Samba-Enredo” (1994) e “As Cinco Estações do Amor” (2001). Em vinte e um anos publicou apenas quatro livros, o que mostra, em seu caso, preocupação de apuro. É, igualmente, um pensador político em obras como “O Segredo e a Informação” (1986). O crítico Silviano Santiago define “O Livro das Emoções” como “um moer no áspero”. Nessa entrevista, João Almino discorre sobre seu mais recente livro, sobre autores de sua preferência, como o extraordinário poeta norte-americano Robert Creeley (1926-2003), a questão do preconceito racial no Brasil e nos EUA, e a respeito de John McCain e Barack Obama. Para ele, o vencedor das eleições de novembro, vai enfrentar intricados problemas internos e internacionais.

Régis Bonvicino: O crítico Alcir Pécora afirma que, ao longo de seus romances, há o projeto “de uma fundação escritural de Brasília”. Esse projeto não seria ainda modernista, sobretudo agora, quando se faz severa crítica ao conceito de metrópole e mesmo de cidade? Por que elege Brasília e não sua cidade natal Mossoró, Rio Grande do Norte, ou Fortaleza, onde estudou, como ponto de partida para suas reflexões em prosa de arte?

João Almino: Brasília é a cidade modernista por excelência. Serve como ponto de partida não para enaltecer o projeto modernista, mas, a partir de uma perspectiva pós-utópica, para refletir sobre seu sentido e seus limites. Passei minha infância em Mossoró e minha adolescência em Fortaleza. Muito cedo fui um leitor ávido dos regionalistas nordestinos e até hoje admiro profundamente a obra de Graciliano Ramos e especialmente seu estilo apurado. Por isso mesmo, quando comecei a produzir minha ficção, procurei evitar ser tragado pela forte tradição do romance nordestino. Brasília me dava mais liberdade, me ajudava a fugir dos estereótipos e me ajudava a pôr minha literatura num patamar que eu acreditava ser novo. Além disso, Brasília é um mito cuja história coincide com a história do Brasil independente, e para Brasília eu podia trazer vários brasis, entre os quais o Nordeste.

RB: Em “O Livro da Emoções” um fotógrafo, que se tornou cego, escreve suas memórias a partir da lembrança das fotografias que tirou de Brasília. O livro debate a fotografia como método de registro um tanto envelhecido pela tevê, pelos celulares e pela internet. O senhor também é fotógrafo. Há algo de auto-biográfico no romance?

JA: Há muito pensava em incorporar de maneira mais sistemática a um de meus romances uma reflexão sobre a fotografia, que já fora um ponto de partida de meu primeiro romance, “Idéias para Onde Passar o Fim do Mundo”. De fato aquele romance pode ser lido como o comentário de uma única fotografia. No “Livro das Emoções” o autor e o narrador convergem no que diz respeito à reflexão sobre visualidade e memória. Mas a auto-biografia não se estende aos fatos narrados nem à dimensão existencial da obra. Nos meus livros de ficção desenvolvi personagens muito diferentes de mim e muito diferentes uns dos outros. Quando os leitores vêem neles pessoas de carne-e-osso ou confundem o narrador com o autor me deixam contente, pois significa que consegui tornar esses personagens verossímeis. E na ficção a verossimilhança é mais importante do que a verdade factual.

RB: Pécora ressalta que o romance não se atem a fatos mas que se caracteriza por “um longo disparo, sem cortes e sem ajuste automático de foco”, criando personagens que se vinculam mais pela sintaxe do que pela linearidade narrativa. Pode-se concluir que seu trabalho é prosa feita com base em colagem?

JA: Alcir Pécora é um de nossos mais argutos e requintados críticos. Como seria de esperar, fez, de forma sintética, uma crítica precisa e inteligente do romance. Digamos que o que está sendo narrado não é o que se vislumbra à primeira vista. Posto de outra forma: a linearidade narrativa vai sendo traçada pelo leitor a partir dos fragmentos aparentes, cada um deles centrado numa imagem. A colagem, portanto, é também apenas aparente, pois as linhas de continuidade se tornam evidentes à medida que as peças se encaixam. Os fatos emocionalmente profundos, que projetam a dimensão interior do personagem central, ganham consistência a partir da coleta de detalhes e fatos menores. Este, como todos os meus outros romances, pode ser lido como um comentário sobre o instante, neste caso o instante fotográfico.

Fazer ver o invisível

RB: Susan Sontag afirma que a fotografia é, essencialmente, uma antecipação da morte. Em “O Livro das Emoções” o senhor antecipa a morte da literatura? Ou de qual morte? Qual é o lugar da prosa de arte hoje no mundo?

JA: A relação entre fotografia e morte também foi estabelecida por Barthes quando comentou uma foto de sua mãe, já então morta, foto feita quando ele era criança. De fato, a fotografia congela o tempo, fixa um instante que imediatamente desaparece e nunca será repetido: a imagem mesma da morte. Por outro lado, tem o dom de fazer retornar os mortos. Não importa quando a foto do ser desaparecido foi feita, as irradiações do corpo vivo e real podem vir nos tocar através de sua imagem fotográfica. A fotografia também imortaliza a própria morte. E ao fixar-se a imagem da morte, ultrapassa-se a morte. A literatura que tentasse demonstrar sua própria morte estaria lutando por sua reinvenção e sobrevivência. Há uma frase citada por um dos personagens do livro: “A morte é muda. Quando a morte fala, é porque é vida”. “O Livro das Emoções” quer se mostrar não como um romance, mas como um álbum de fotografias. O tema das aparências, da representação da realidade, está presente na descrição desse álbum fotográfico. Mas é irônico o processo de dar às palavras uma função auxiliar para a imagem, pois o álbum de fotografias não existe fora das palavras; a imagem somente aparece mediante sua descrição. Por outro lado, dependendo de como o definamos, pode ser que não haja romance. Para mim, portanto, se trata menos de decretar a morte da literatura do que ressaltar a possibilidade de uma narrativa que se faz não apenas de presença, mas também de ausência, de vazio, de elipses e de silêncio. E aqui há também um paralelo com a fotografia, e suas ligações com a ausência, o escuro e a cegueira. Ela salva algo do vazio e o revela, fixando-o no tempo. Por outro lado, por acúmulo de imagens, pode cegar, como na cegueira produzida por excesso de luz. De fato, o bombardeio de imagens pode levar, não à maior consciência e à definição das responsabilidades pelo mal praticado, mas a uma banalização do mal e à percepção de que ele é comum e generalizado. Em vez de provocar indignação, pode levar ao conformismo. Deixamos de perceber o fato quando ele está em toda a parte. Ou seja, precisamos do silêncio para ouvir as palavras, assim como precisamos do escuro – da cegueira – para perceber a luz e a imagem. Para assistir à peça, dizia Merleau-Ponty, é necessário o escuro do teatro. No “Livro das Emoções”, através da cegueira do personagem central, se ressalta o caráter objetivo da fotografia, que a máquina, com sua neutralidade, pode captar, mesmo quando o fotógrafo é cego; e sobretudo o caráter subjetivo da fotografia, que requer, mais do que olho, memória; o mais importante não é o que é fotografado, mas o que o espectador escolhe ver, e o que ele escolhe ver pode estar além da própria imagem. Voltando a sua pergunta, continuo acreditando no papel insubstituível da literatura quando não renuncia a seu papel de fazer ver o invisível, dizer o indizível; e sobretudo quando não renuncia a sua dimensão reflexiva e a sua possibilidade de explorar por dentro os personagens.

Creeley e Cabral

RB: Há muito tempo o senhor reside no exterior, em razão de ser diplomata. Conheceu, portanto, muitas literaturas e muitos autores. Quais foram os que mais lhe marcaram? Se o poeta norte-americano Robert Creeley foi um deles, discorra sobre ele igualmente.

JA: A lista é grande e não toda ela tem a ver com os lugares onde morei. Por exemplo, Dostoiévski e Borges são autores cuja leitura me marcou e continua me marcando, e nunca vivi na Rússia nem na Argentina. Por outro lado, pode ser que se não tivesse morado no México não tivesse tido a oportunidade de admirar tanto a obra de Juan Rulfo e de Octavio Paz. Tanto num caso como no outro tive o privilégio de travar conhecimento não apenas com suas obras, mas também com os próprios autores. Proust é para mim uma referência fundamental e creio que teria sido, mesmo se não tivesse vivido na França. Mas minhas principais referências literárias estão mesmo no Brasil: Machado de Assis, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, João Cabral… Quanto a Creeley, sou um admirador tanto de sua poética quanto de sua poesia, e cheguei a escrever um ensaio sobre ele. Foi um inovador, criando novos padrões rítmicos com sua poesia concisa e elíptica, misturando o lírico e o não lírico. De certa forma ele reinventou a linguagem banal e coloquial, e o fez não enfeitando-a, mas, ao contrário, simplificando-a ainda mais. Talvez seja esse seu maior mérito: o de mostrar a possibilidade de uma simplicidade radical que é, ao mesmo tempo, rica, complexa e aberta a múltiplas interpretações.

Crítica literária

RB: O senhor é um crítico literário. Penso que há uma queda de qualidade em toda a cultura em razão da ausência justamente de crítica e de sua substituição pelo marketing. Concorda com essa afirmação?

JA: Não sou crítico literário, mas apenas um escritor que, quando convidado a fazê-lo, às vezes aceita o desafio de escrever sobre literatura, como se fosse uma escrita em contraponto a meu próprio trabalho de ficção. Quanto a sua afirmação sobre a ausência da crítica, pode ser que o mercado, em um caso ou em outro, faça as escolhas certas. E pode ser que a crítica, mesmo a mais exigente, tenha percepções que se mostrem, com o tempo, erradas. Mas em geral concordo com seu comentário. Lamento, sobretudo, que parte da melhor crítica literária tenha passado a encarar a literatura apenas como um instrumento de suas análises culturais, sociológicas ou antropológicas, mesclando por vezes textos de qualidade estética variada e desigual. Algo desse trabalho revela pouco das obras analisadas, porque está focalizado em questões muito específicas de suas disciplinas, e algumas dessas questões são passageiras, logo ficam datadas, enquanto as boas obras literárias permanecem vivas e abertas à interpretação.

McCain, Obama e o racismo brasileiro disfarçado

RB: O senhor reside hoje em Chicago, uma cidade, no mapa político norte-americano, do Partido Democrata e de Barack Obama. Como vê Chicago? O que os norte-americanos pensam sobre Barack Obama e John McCain?

JA: Chicago é considerada por muitos a capital agrícola e industrial do meio-oeste e do próprio país, é pioneira da arquitetura moderna e a sede da maior bolsa de mercadorias e futuros do mundo. Mas hoje em dia é sem dúvida principalmente um local privilegiado para seguir a política norte-americana, muito especialmente a candidatura Obama. Muitos dos norte-americanos com quem tenho conversado acham que o próximo Presidente, quem quer que seja, enfrentará enormes desafios internos e internacionais. Mas ao mesmo tempo crêem ter a sorte de contar com bons candidatos a Presidente. Sem entrar nos méritos de cada um e apenas reproduzindo a percepção de analistas ou gente do povo nos Estados Unidos, McCain teve inicialmente alguma dificuldade de seduzir a ala mais conservadora de seu partido, mas é uma figura amplamente respeitada, com uma história parlamentar reconhecida mesmo por seus adversários e que tende ao centro do espectro político. E Obama sem dúvida entusiasmou e continua entusiasmando a base do Partido Democrata ao encarnar a novidade.

RB: Há mais preconceito racial no Brasil ou nos EUA? Haveria um candidato negro forte à Presidência da República no Brasil como Obama? A crítica norte-americana Marjorie Perloff considera “Dreams from my father”, de Obama, um livro de arte, filiado à prosa auto-biográfica negra de Malcolm X. Já leu algum dos livros de Obama? Qual a sua opinião sobre seus livros?

JA: A segregação racial deixou marcas fortes na sociedade norte-americana, de uma forma como não existiu no Brasil. Por outro lado, as oportunidades para os negros são maiores nos EUA, e isso foi resultado do movimento dos direitos civis – uma reação ao racismo e também às políticas segregacionistas. No nosso caso, o racismo disfarçado, a ausência de segregação e a miscigenação racial que data da época da Colônia explicam a inexistência de uma reação de tal magnitude. Na minha literatura, há um negro Presidente da República, personagem presente em todo o Quarteto de Brasília, desde o primeiro livro, “Idéias para Onde Passar o Fim do Mundo.” Creio que o personagem foi aceito como verossímil. Não sei se seria uma indicação de que o Brasil estaria preparado para um negro na Presidência. Restaria saber se a sociedade “embranqueceria” ou não um negro que se tornasse um candidato viável. Quanto aos livros de Obama, “The Audacity of Hope” é bem escrito e, embora não entre em detalhes sobre seu programa político, creio ser uma leitura importante para quem deseja conhecer os fundamentos de suas posições e algo se seu pensamento. Há, por exemplo, um longo capítulo dedicado a questões econômicas; há um outro sobre a questão racial; há também retratos mais pessoais, não apenas dele mas também de sua família. É, contudo, um livro menos estruturado em forma autobiográfica e narrativa do que “Dreams From My Father”, publicado em 1995, que cobre sua infância, com descrições, por exemplo, de sua vivência no Havaí e na Indonésia e de como ele lidou com as questões raciais; cobre também os seus anos de Chicago como organizador comunitário e sua viagem à África para melhor conhecer suas raízes. Marjorie Perloff tem razão: é uma melhor peça literária.

João Almino acaba de lançar seu quarto romance “O livro das Emoções”, aos cinquenta e oito anos. Erudito e ativo Embaixador, é o Cônsul Geral do Brasil em Chicago, cidade adotiva de Barack Obama, onde há estábiles de Alexander Calder pelas ruas e edifícios do alemão-americano Mies van der Rohe, refletindo, em seus espelhos, o dinamismo e a beleza dessa metrópole.

Almino escreve sem pressa sua prosa de arte. Seus livros anteriores são: “Idéias para onde Passar o Fim do Mundo” (1987), “Samba-Enredo” (1994) e “As Cinco Estações do Amor” (2001). Em vinte e um anos publicou apenas quatro livros, o que mostra, em seu caso, preocupação de apuro. É, igualmente, um pensador político em obras como “O Segredo e a Informação” (1986). O crítico Silviano Santiago define “O Livro das Emoções” como “um moer no áspero”. Nessa entrevista, João Almino discorre sobre seu mais recente livro, sobre autores de sua preferência, como o extraordinário poeta norte-americano Robert Creeley (1926-2003), a questão do preconceito racial no Brasil e nos EUA, e a respeito de John McCain e Barack Obama. Para ele, o vencedor das eleições de novembro, vai enfrentar intricados problemas internos e internacionais.

Régis Bonvicino: O crítico Alcir Pécora afirma que, ao longo de seus romances, há o projeto “de uma fundação escritural de Brasília”. Esse projeto não seria ainda modernista, sobretudo agora, quando se faz severa crítica ao conceito de metrópole e mesmo de cidade? Por que elege Brasília e não sua cidade natal Mossoró, Rio Grande do Norte, ou Fortaleza, onde estudou, como ponto de partida para suas reflexões em prosa de arte?

João Almino: Brasília é a cidade modernista por excelência. Serve como ponto de partida não para enaltecer o projeto modernista, mas, a partir de uma perspectiva pós-utópica, para refletir sobre seu sentido e seus limites. Passei minha infância em Mossoró e minha adolescência em Fortaleza. Muito cedo fui um leitor ávido dos regionalistas nordestinos e até hoje admiro profundamente a obra de Graciliano Ramos e especialmente seu estilo apurado. Por isso mesmo, quando comecei a produzir minha ficção, procurei evitar ser tragado pela forte tradição do romance nordestino. Brasília me dava mais liberdade, me ajudava a fugir dos estereótipos e me ajudava a pôr minha literatura num patamar que eu acreditava ser novo. Além disso, Brasília é um mito cuja história coincide com a história do Brasil independente, e para Brasília eu podia trazer vários brasis, entre os quais o Nordeste.

RB: Em “O Livro da Emoções” um fotógrafo, que se tornou cego, escreve suas memórias a partir da lembrança das fotografias que tirou de Brasília. O livro debate a fotografia como método de registro um tanto envelhecido pela tevê, pelos celulares e pela internet. O senhor também é fotógrafo. Há algo de auto-biográfico no romance?

JA: Há muito pensava em incorporar de maneira mais sistemática a um de meus romances uma reflexão sobre a fotografia, que já fora um ponto de partida de meu primeiro romance, “Idéias para Onde Passar o Fim do Mundo”. De fato aquele romance pode ser lido como o comentário de uma única fotografia. No “Livro das Emoções” o autor e o narrador convergem no que diz respeito à reflexão sobre visualidade e memória. Mas a auto-biografia não se estende aos fatos narrados nem à dimensão existencial da obra. Nos meus livros de ficção desenvolvi personagens muito diferentes de mim e muito diferentes uns dos outros. Quando os leitores vêem neles pessoas de carne-e-osso ou confundem o narrador com o autor me deixam contente, pois significa que consegui tornar esses personagens verossímeis. E na ficção a verossimilhança é mais importante do que a verdade factual.

RB: Pécora ressalta que o romance não se atem a fatos mas que se caracteriza por “um longo disparo, sem cortes e sem ajuste automático de foco”, criando personagens que se vinculam mais pela sintaxe do que pela linearidade narrativa. Pode-se concluir que seu trabalho é prosa feita com base em colagem?

JA: Alcir Pécora é um de nossos mais argutos e requintados críticos. Como seria de esperar, fez, de forma sintética, uma crítica precisa e inteligente do romance. Digamos que o que está sendo narrado não é o que se vislumbra à primeira vista. Posto de outra forma: a linearidade narrativa vai sendo traçada pelo leitor a partir dos fragmentos aparentes, cada um deles centrado numa imagem. A colagem, portanto, é também apenas aparente, pois as linhas de continuidade se tornam evidentes à medida que as peças se encaixam. Os fatos emocionalmente profundos, que projetam a dimensão interior do personagem central, ganham consistência a partir da coleta de detalhes e fatos menores. Este, como todos os meus outros romances, pode ser lido como um comentário sobre o instante, neste caso o instante fotográfico.

Fazer ver o invisível

RB: Susan Sontag afirma que a fotografia é, essencialmente, uma antecipação da morte. Em “O Livro das Emoções” o senhor antecipa a morte da literatura? Ou de qual morte? Qual é o lugar da prosa de arte hoje no mundo?

JA: A relação entre fotografia e morte também foi estabelecida por Barthes quando comentou uma foto de sua mãe, já então morta, foto feita quando ele era criança. De fato, a fotografia congela o tempo, fixa um instante que imediatamente desaparece e nunca será repetido: a imagem mesma da morte. Por outro lado, tem o dom de fazer retornar os mortos. Não importa quando a foto do ser desaparecido foi feita, as irradiações do corpo vivo e real podem vir nos tocar através de sua imagem fotográfica. A fotografia também imortaliza a própria morte. E ao fixar-se a imagem da morte, ultrapassa-se a morte. A literatura que tentasse demonstrar sua própria morte estaria lutando por sua reinvenção e sobrevivência. Há uma frase citada por um dos personagens do livro: “A morte é muda. Quando a morte fala, é porque é vida”. “O Livro das Emoções” quer se mostrar não como um romance, mas como um álbum de fotografias. O tema das aparências, da representação da realidade, está presente na descrição desse álbum fotográfico. Mas é irônico o processo de dar às palavras uma função auxiliar para a imagem, pois o álbum de fotografias não existe fora das palavras; a imagem somente aparece mediante sua descrição. Por outro lado, dependendo de como o definamos, pode ser que não haja romance. Para mim, portanto, se trata menos de decretar a morte da literatura do que ressaltar a possibilidade de uma narrativa que se faz não apenas de presença, mas também de ausência, de vazio, de elipses e de silêncio. E aqui há também um paralelo com a fotografia, e suas ligações com a ausência, o escuro e a cegueira. Ela salva algo do vazio e o revela, fixando-o no tempo. Por outro lado, por acúmulo de imagens, pode cegar, como na cegueira produzida por excesso de luz. De fato, o bombardeio de imagens pode levar, não à maior consciência e à definição das responsabilidades pelo mal praticado, mas a uma banalização do mal e à percepção de que ele é comum e generalizado. Em vez de provocar indignação, pode levar ao conformismo. Deixamos de perceber o fato quando ele está em toda a parte. Ou seja, precisamos do silêncio para ouvir as palavras, assim como precisamos do escuro – da cegueira – para perceber a luz e a imagem. Para assistir à peça, dizia Merleau-Ponty, é necessário o escuro do teatro. No “Livro das Emoções”, através da cegueira do personagem central, se ressalta o caráter objetivo da fotografia, que a máquina, com sua neutralidade, pode captar, mesmo quando o fotógrafo é cego; e sobretudo o caráter subjetivo da fotografia, que requer, mais do que olho, memória; o mais importante não é o que é fotografado, mas o que o espectador escolhe ver, e o que ele escolhe ver pode estar além da própria imagem. Voltando a sua pergunta, continuo acreditando no papel insubstituível da literatura quando não renuncia a seu papel de fazer ver o invisível, dizer o indizível; e sobretudo quando não renuncia a sua dimensão reflexiva e a sua possibilidade de explorar por dentro os personagens.

Creeley e Cabral

RB: Há muito tempo o senhor reside no exterior, em razão de ser diplomata. Conheceu, portanto, muitas literaturas e muitos autores. Quais foram os que mais lhe marcaram? Se o poeta norte-americano Robert Creeley foi um deles, discorra sobre ele igualmente.

JA: A lista é grande e não toda ela tem a ver com os lugares onde morei. Por exemplo, Dostoiévski e Borges são autores cuja leitura me marcou e continua me marcando, e nunca vivi na Rússia nem na Argentina. Por outro lado, pode ser que se não tivesse morado no México não tivesse tido a oportunidade de admirar tanto a obra de Juan Rulfo e de Octavio Paz. Tanto num caso como no outro tive o privilégio de travar conhecimento não apenas com suas obras, mas também com os próprios autores. Proust é para mim uma referência fundamental e creio que teria sido, mesmo se não tivesse vivido na França. Mas minhas principais referências literárias estão mesmo no Brasil: Machado de Assis, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, João Cabral… Quanto a Creeley, sou um admirador tanto de sua poética quanto de sua poesia, e cheguei a escrever um ensaio sobre ele. Foi um inovador, criando novos padrões rítmicos com sua poesia concisa e elíptica, misturando o lírico e o não lírico. De certa forma ele reinventou a linguagem banal e coloquial, e o fez não enfeitando-a, mas, ao contrário, simplificando-a ainda mais. Talvez seja esse seu maior mérito: o de mostrar a possibilidade de uma simplicidade radical que é, ao mesmo tempo, rica, complexa e aberta a múltiplas interpretações.

Crítica literária

RB: O senhor é um crítico literário. Penso que há uma queda de qualidade em toda a cultura em razão da ausência justamente de crítica e de sua substituição pelo marketing. Concorda com essa afirmação?

JA: Não sou crítico literário, mas apenas um escritor que, quando convidado a fazê-lo, às vezes aceita o desafio de escrever sobre literatura, como se fosse uma escrita em contraponto a meu próprio trabalho de ficção. Quanto a sua afirmação sobre a ausência da crítica, pode ser que o mercado, em um caso ou em outro, faça as escolhas certas. E pode ser que a crítica, mesmo a mais exigente, tenha percepções que se mostrem, com o tempo, erradas. Mas em geral concordo com seu comentário. Lamento, sobretudo, que parte da melhor crítica literária tenha passado a encarar a literatura apenas como um instrumento de suas análises culturais, sociológicas ou antropológicas, mesclando por vezes textos de qualidade estética variada e desigual. Algo desse trabalho revela pouco das obras analisadas, porque está focalizado em questões muito específicas de suas disciplinas, e algumas dessas questões são passageiras, logo ficam datadas, enquanto as boas obras literárias permanecem vivas e abertas à interpretação.

McCain, Obama e o racismo brasileiro disfarçado

RB: O senhor reside hoje em Chicago, uma cidade, no mapa político norte-americano, do Partido Democrata e de Barack Obama. Como vê Chicago? O que os norte-americanos pensam sobre Barack Obama e John McCain?

JA: Chicago é considerada por muitos a capital agrícola e industrial do meio-oeste e do próprio país, é pioneira da arquitetura moderna e a sede da maior bolsa de mercadorias e futuros do mundo. Mas hoje em dia é sem dúvida principalmente um local privilegiado para seguir a política norte-americana, muito especialmente a candidatura Obama. Muitos dos norte-americanos com quem tenho conversado acham que o próximo Presidente, quem quer que seja, enfrentará enormes desafios internos e internacionais. Mas ao mesmo tempo crêem ter a sorte de contar com bons candidatos a Presidente. Sem entrar nos méritos de cada um e apenas reproduzindo a percepção de analistas ou gente do povo nos Estados Unidos, McCain teve inicialmente alguma dificuldade de seduzir a ala mais conservadora de seu partido, mas é uma figura amplamente respeitada, com uma história parlamentar reconhecida mesmo por seus adversários e que tende ao centro do espectro político. E Obama sem dúvida entusiasmou e continua entusiasmando a base do Partido Democrata ao encarnar a novidade.

RB: Há mais preconceito racial no Brasil ou nos EUA? Haveria um candidato negro forte à Presidência da República no Brasil como Obama? A crítica norte-americana Marjorie Perloff considera “Dreams from my father”, de Obama, um livro de arte, filiado à prosa auto-biográfica negra de Malcolm X. Já leu algum dos livros de Obama? Qual a sua opinião sobre seus livros?

JA: A segregação racial deixou marcas fortes na sociedade norte-americana, de uma forma como não existiu no Brasil. Por outro lado, as oportunidades para os negros são maiores nos EUA, e isso foi resultado do movimento dos direitos civis – uma reação ao racismo e também às políticas segregacionistas. No nosso caso, o racismo disfarçado, a ausência de segregação e a miscigenação racial que data da época da Colônia explicam a inexistência de uma reação de tal magnitude. Na minha literatura, há um negro Presidente da República, personagem presente em todo o Quarteto de Brasília, desde o primeiro livro, “Idéias para Onde Passar o Fim do Mundo.” Creio que o personagem foi aceito como verossímil. Não sei se seria uma indicação de que o Brasil estaria preparado para um negro na Presidência. Restaria saber se a sociedade “embranqueceria” ou não um negro que se tornasse um candidato viável. Quanto aos livros de Obama, “The Audacity of Hope” é bem escrito e, embora não entre em detalhes sobre seu programa político, creio ser uma leitura importante para quem deseja conhecer os fundamentos de suas posições e algo se seu pensamento. Há, por exemplo, um longo capítulo dedicado a questões econômicas; há um outro sobre a questão racial; há também retratos mais pessoais, não apenas dele mas também de sua família. É, contudo, um livro menos estruturado em forma autobiográfica e narrativa do que “Dreams From My Father”, publicado em 1995, que cobre sua infância, com descrições, por exemplo, de sua vivência no Havaí e na Indonésia e de como ele lidou com as questões raciais; cobre também os seus anos de Chicago como organizador comunitário e sua viagem à África para melhor conhecer suas raízes. Marjorie Perloff tem razão: é uma melhor peça literária.

João Almino acaba de lançar seu quarto romance “O livro das Emoções”, aos cinquenta e oito anos. Erudito e ativo Embaixador, é o Cônsul Geral do Brasil em Chicago, cidade adotiva de Barack Obama, onde há estábiles de Alexander Calder pelas ruas e edifícios do alemão-americano Mies van der Rohe, refletindo, em seus espelhos, o dinamismo e a beleza dessa metrópole.

Almino escreve sem pressa sua prosa de arte. Seus livros anteriores são: “Idéias para onde Passar o Fim do Mundo” (1987), “Samba-Enredo” (1994) e “As Cinco Estações do Amor” (2001). Em vinte e um anos publicou apenas quatro livros, o que mostra, em seu caso, preocupação de apuro. É, igualmente, um pensador político em obras como “O Segredo e a Informação” (1986). O crítico Silviano Santiago define “O Livro das Emoções” como “um moer no áspero”. Nessa entrevista, João Almino discorre sobre seu mais recente livro, sobre autores de sua preferência, como o extraordinário poeta norte-americano Robert Creeley (1926-2003), a questão do preconceito racial no Brasil e nos EUA, e a respeito de John McCain e Barack Obama. Para ele, o vencedor das eleições de novembro, vai enfrentar intricados problemas internos e internacionais.

Régis Bonvicino: O crítico Alcir Pécora afirma que, ao longo de seus romances, há o projeto “de uma fundação escritural de Brasília”. Esse projeto não seria ainda modernista, sobretudo agora, quando se faz severa crítica ao conceito de metrópole e mesmo de cidade? Por que elege Brasília e não sua cidade natal Mossoró, Rio Grande do Norte, ou Fortaleza, onde estudou, como ponto de partida para suas reflexões em prosa de arte?

João Almino: Brasília é a cidade modernista por excelência. Serve como ponto de partida não para enaltecer o projeto modernista, mas, a partir de uma perspectiva pós-utópica, para refletir sobre seu sentido e seus limites. Passei minha infância em Mossoró e minha adolescência em Fortaleza. Muito cedo fui um leitor ávido dos regionalistas nordestinos e até hoje admiro profundamente a obra de Graciliano Ramos e especialmente seu estilo apurado. Por isso mesmo, quando comecei a produzir minha ficção, procurei evitar ser tragado pela forte tradição do romance nordestino. Brasília me dava mais liberdade, me ajudava a fugir dos estereótipos e me ajudava a pôr minha literatura num patamar que eu acreditava ser novo. Além disso, Brasília é um mito cuja história coincide com a história do Brasil independente, e para Brasília eu podia trazer vários brasis, entre os quais o Nordeste.

RB: Em “O Livro da Emoções” um fotógrafo, que se tornou cego, escreve suas memórias a partir da lembrança das fotografias que tirou de Brasília. O livro debate a fotografia como método de registro um tanto envelhecido pela tevê, pelos celulares e pela internet. O senhor também é fotógrafo. Há algo de auto-biográfico no romance?

JA: Há muito pensava em incorporar de maneira mais sistemática a um de meus romances uma reflexão sobre a fotografia, que já fora um ponto de partida de meu primeiro romance, “Idéias para Onde Passar o Fim do Mundo”. De fato aquele romance pode ser lido como o comentário de uma única fotografia. No “Livro das Emoções” o autor e o narrador convergem no que diz respeito à reflexão sobre visualidade e memória. Mas a auto-biografia não se estende aos fatos narrados nem à dimensão existencial da obra. Nos meus livros de ficção desenvolvi personagens muito diferentes de mim e muito diferentes uns dos outros. Quando os leitores vêem neles pessoas de carne-e-osso ou confundem o narrador com o autor me deixam contente, pois significa que consegui tornar esses personagens verossímeis. E na ficção a verossimilhança é mais importante do que a verdade factual.

RB: Pécora ressalta que o romance não se atem a fatos mas que se caracteriza por “um longo disparo, sem cortes e sem ajuste automático de foco”, criando personagens que se vinculam mais pela sintaxe do que pela linearidade narrativa. Pode-se concluir que seu trabalho é prosa feita com base em colagem?

JA: Alcir Pécora é um de nossos mais argutos e requintados críticos. Como seria de esperar, fez, de forma sintética, uma crítica precisa e inteligente do romance. Digamos que o que está sendo narrado não é o que se vislumbra à primeira vista. Posto de outra forma: a linearidade narrativa vai sendo traçada pelo leitor a partir dos fragmentos aparentes, cada um deles centrado numa imagem. A colagem, portanto, é também apenas aparente, pois as linhas de continuidade se tornam evidentes à medida que as peças se encaixam. Os fatos emocionalmente profundos, que projetam a dimensão interior do personagem central, ganham consistência a partir da coleta de detalhes e fatos menores. Este, como todos os meus outros romances, pode ser lido como um comentário sobre o instante, neste caso o instante fotográfico.

Fazer ver o invisível

RB: Susan Sontag afirma que a fotografia é, essencialmente, uma antecipação da morte. Em “O Livro das Emoções” o senhor antecipa a morte da literatura? Ou de qual morte? Qual é o lugar da prosa de arte hoje no mundo?

JA: A relação entre fotografia e morte também foi estabelecida por Barthes quando comentou uma foto de sua mãe, já então morta, foto feita quando ele era criança. De fato, a fotografia congela o tempo, fixa um instante que imediatamente desaparece e nunca será repetido: a imagem mesma da morte. Por outro lado, tem o dom de fazer retornar os mortos. Não importa quando a foto do ser desaparecido foi feita, as irradiações do corpo vivo e real podem vir nos tocar através de sua imagem fotográfica. A fotografia também imortaliza a própria morte. E ao fixar-se a imagem da morte, ultrapassa-se a morte. A literatura que tentasse demonstrar sua própria morte estaria lutando por sua reinvenção e sobrevivência. Há uma frase citada por um dos personagens do livro: “A morte é muda. Quando a morte fala, é porque é vida”. “O Livro das Emoções” quer se mostrar não como um romance, mas como um álbum de fotografias. O tema das aparências, da representação da realidade, está presente na descrição desse álbum fotográfico. Mas é irônico o processo de dar às palavras uma função auxiliar para a imagem, pois o álbum de fotografias não existe fora das palavras; a imagem somente aparece mediante sua descrição. Por outro lado, dependendo de como o definamos, pode ser que não haja romance. Para mim, portanto, se trata menos de decretar a morte da literatura do que ressaltar a possibilidade de uma narrativa que se faz não apenas de presença, mas também de ausência, de vazio, de elipses e de silêncio. E aqui há também um paralelo com a fotografia, e suas ligações com a ausência, o escuro e a cegueira. Ela salva algo do vazio e o revela, fixando-o no tempo. Por outro lado, por acúmulo de imagens, pode cegar, como na cegueira produzida por excesso de luz. De fato, o bombardeio de imagens pode levar, não à maior consciência e à definição das responsabilidades pelo mal praticado, mas a uma banalização do mal e à percepção de que ele é comum e generalizado. Em vez de provocar indignação, pode levar ao conformismo. Deixamos de perceber o fato quando ele está em toda a parte. Ou seja, precisamos do silêncio para ouvir as palavras, assim como precisamos do escuro – da cegueira – para perceber a luz e a imagem. Para assistir à peça, dizia Merleau-Ponty, é necessário o escuro do teatro. No “Livro das Emoções”, através da cegueira do personagem central, se ressalta o caráter objetivo da fotografia, que a máquina, com sua neutralidade, pode captar, mesmo quando o fotógrafo é cego; e sobretudo o caráter subjetivo da fotografia, que requer, mais do que olho, memória; o mais importante não é o que é fotografado, mas o que o espectador escolhe ver, e o que ele escolhe ver pode estar além da própria imagem. Voltando a sua pergunta, continuo acreditando no papel insubstituível da literatura quando não renuncia a seu papel de fazer ver o invisível, dizer o indizível; e sobretudo quando não renuncia a sua dimensão reflexiva e a sua possibilidade de explorar por dentro os personagens.

Creeley e Cabral

RB: Há muito tempo o senhor reside no exterior, em razão de ser diplomata. Conheceu, portanto, muitas literaturas e muitos autores. Quais foram os que mais lhe marcaram? Se o poeta norte-americano Robert Creeley foi um deles, discorra sobre ele igualmente.

JA: A lista é grande e não toda ela tem a ver com os lugares onde morei. Por exemplo, Dostoiévski e Borges são autores cuja leitura me marcou e continua me marcando, e nunca vivi na Rússia nem na Argentina. Por outro lado, pode ser que se não tivesse morado no México não tivesse tido a oportunidade de admirar tanto a obra de Juan Rulfo e de Octavio Paz. Tanto num caso como no outro tive o privilégio de travar conhecimento não apenas com suas obras, mas também com os próprios autores. Proust é para mim uma referência fundamental e creio que teria sido, mesmo se não tivesse vivido na França. Mas minhas principais referências literárias estão mesmo no Brasil: Machado de Assis, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, João Cabral… Quanto a Creeley, sou um admirador tanto de sua poética quanto de sua poesia, e cheguei a escrever um ensaio sobre ele. Foi um inovador, criando novos padrões rítmicos com sua poesia concisa e elíptica, misturando o lírico e o não lírico. De certa forma ele reinventou a linguagem banal e coloquial, e o fez não enfeitando-a, mas, ao contrário, simplificando-a ainda mais. Talvez seja esse seu maior mérito: o de mostrar a possibilidade de uma simplicidade radical que é, ao mesmo tempo, rica, complexa e aberta a múltiplas interpretações.

Crítica literária

RB: O senhor é um crítico literário. Penso que há uma queda de qualidade em toda a cultura em razão da ausência justamente de crítica e de sua substituição pelo marketing. Concorda com essa afirmação?

JA: Não sou crítico literário, mas apenas um escritor que, quando convidado a fazê-lo, às vezes aceita o desafio de escrever sobre literatura, como se fosse uma escrita em contraponto a meu próprio trabalho de ficção. Quanto a sua afirmação sobre a ausência da crítica, pode ser que o mercado, em um caso ou em outro, faça as escolhas certas. E pode ser que a crítica, mesmo a mais exigente, tenha percepções que se mostrem, com o tempo, erradas. Mas em geral concordo com seu comentário. Lamento, sobretudo, que parte da melhor crítica literária tenha passado a encarar a literatura apenas como um instrumento de suas análises culturais, sociológicas ou antropológicas, mesclando por vezes textos de qualidade estética variada e desigual. Algo desse trabalho revela pouco das obras analisadas, porque está focalizado em questões muito específicas de suas disciplinas, e algumas dessas questões são passageiras, logo ficam datadas, enquanto as boas obras literárias permanecem vivas e abertas à interpretação.

McCain, Obama e o racismo brasileiro disfarçado

RB: O senhor reside hoje em Chicago, uma cidade, no mapa político norte-americano, do Partido Democrata e de Barack Obama. Como vê Chicago? O que os norte-americanos pensam sobre Barack Obama e John McCain?

JA: Chicago é considerada por muitos a capital agrícola e industrial do meio-oeste e do próprio país, é pioneira da arquitetura moderna e a sede da maior bolsa de mercadorias e futuros do mundo. Mas hoje em dia é sem dúvida principalmente um local privilegiado para seguir a política norte-americana, muito especialmente a candidatura Obama. Muitos dos norte-americanos com quem tenho conversado acham que o próximo Presidente, quem quer que seja, enfrentará enormes desafios internos e internacionais. Mas ao mesmo tempo crêem ter a sorte de contar com bons candidatos a Presidente. Sem entrar nos méritos de cada um e apenas reproduzindo a percepção de analistas ou gente do povo nos Estados Unidos, McCain teve inicialmente alguma dificuldade de seduzir a ala mais conservadora de seu partido, mas é uma figura amplamente respeitada, com uma história parlamentar reconhecida mesmo por seus adversários e que tende ao centro do espectro político. E Obama sem dúvida entusiasmou e continua entusiasmando a base do Partido Democrata ao encarnar a novidade.

RB: Há mais preconceito racial no Brasil ou nos EUA? Haveria um candidato negro forte à Presidência da República no Brasil como Obama? A crítica norte-americana Marjorie Perloff considera “Dreams from my father”, de Obama, um livro de arte, filiado à prosa auto-biográfica negra de Malcolm X. Já leu algum dos livros de Obama? Qual a sua opinião sobre seus livros?

JA: A segregação racial deixou marcas fortes na sociedade norte-americana, de uma forma como não existiu no Brasil. Por outro lado, as oportunidades para os negros são maiores nos EUA, e isso foi resultado do movimento dos direitos civis – uma reação ao racismo e também às políticas segregacionistas. No nosso caso, o racismo disfarçado, a ausência de segregação e a miscigenação racial que data da época da Colônia explicam a inexistência de uma reação de tal magnitude. Na minha literatura, há um negro Presidente da República, personagem presente em todo o Quarteto de Brasília, desde o primeiro livro, “Idéias para Onde Passar o Fim do Mundo.” Creio que o personagem foi aceito como verossímil. Não sei se seria uma indicação de que o Brasil estaria preparado para um negro na Presidência. Restaria saber se a sociedade “embranqueceria” ou não um negro que se tornasse um candidato viável. Quanto aos livros de Obama, “The Audacity of Hope” é bem escrito e, embora não entre em detalhes sobre seu programa político, creio ser uma leitura importante para quem deseja conhecer os fundamentos de suas posições e algo se seu pensamento. Há, por exemplo, um longo capítulo dedicado a questões econômicas; há um outro sobre a questão racial; há também retratos mais pessoais, não apenas dele mas também de sua família. É, contudo, um livro menos estruturado em forma autobiográfica e narrativa do que “Dreams From My Father”, publicado em 1995, que cobre sua infância, com descrições, por exemplo, de sua vivência no Havaí e na Indonésia e de como ele lidou com as questões raciais; cobre também os seus anos de Chicago como organizador comunitário e sua viagem à África para melhor conhecer suas raízes. Marjorie Perloff tem razão: é uma melhor peça literária.