MEMÓRIAS DE UM DIÁRIO FOTOGRÁFICO: O LIVRO DAS EMOÇÕES

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[:pt]Miguilim – Revista Eletrônica do Netlli | V. 4, N. 1, p. 18-32, jan.-jun. 2015

MEMÓRIAS DE UM DIÁRIO FOTOGRÁFICO: O LIVRO
DAS EMOÇÕES

MEMOIRS OF A DAILY PHOTO: THE BOOKS OF
EMOTIONS
Mauro Sergio APOLINÁRIO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO, Brasil
RESUMO | INDEXAÇÃO | TEXTO | REFERÊNCIAS | CITAR ESTE ARTIGO | O AUTOR
RECEBIDO EM 01/02/2015 ● APROVADO EM 04/08/2015

Miguilim – Revista Eletrônica do Netlli | V. 4, N. 1, p. 18-32, jan.-jun. 2015
Resumo
Este artigo busca trazer ao leitor algumas questões pertinentes ao estudo da fotografia como
questão literária. Se em nossos dias o uso da imagem fotográfica tomou proporções que
caminham para um tipo de cegueira motivada pelo exagero visual, é possível que na literatura
ainda se possa salvar o que se tem deixado de enxergar quando buscamos realizar aquilo que é
próprio do caminhar do homem no mundo: a arte. Assim, em O livro das emoções, de João
Almino, podemos ver acontecer o nascimento da imagem fotográfica no texto literário,
visualizando não imagens prontas no percurso que aqui nos dispomos, mas sim imagens vindas
das janelas da alma.
Entradas para indexação
KEYWORDS: Photography. Image. Realism.
PALAVRAS-CHAVE: Fotografia. Imagem. Realismo.
Texto integral
O autor, a fotografia e seus discursos
Poser la question des rapports entre littérature et photographie,
c’est forcément interroger la notion du réalisme. L’exploration des
rapports entre literature et photographie, photographie et realism
pourrait également fournir l’occasion de remettre en cause
l’hégémonie du référetiel, ou, tout au moins, de tracer les limites
au règne du reel.1
Ronald Shusterman
Desde o surgimento da fotografia, tornou-se muito comum na literatura a
quebra do domínio das paisagens naturais e culturais unicamente por meio da
escrita. As imagens técnicas deram novo rumo ao texto literário, principalmente
por propiciarem ao leitor uma nova interação de sentido com o discurso literário,
articulando texto e imagem em um único espaço narrativo, além da imersão nos
contextos artísticos, culturais e filosóficos que permeiam todo o universo da
imagem fotográfica. Numa linha que nos permite pensar a fotografia como algo
grande, uma inesgotável fonte de discursos e recursos muito maiores que a
generalização de “instante qualquer” extraído de um acontecimento real, João
Almino nos propõe em O livro das emoções muito mais que um simples romance
que trata da fotografia. Ninguém melhor que um escritor que também é fotógrafo
para criar uma narrativa que busque a união de dois universos aparentemente tão
diferentes: texto literário e imagem fotográfica.
O livro das emoções é um romance narrado em primeira pessoa, que conta
as memórias de um fotógrafo cego que decide escrever um livro baseado em seu
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antigo diário fotográfico, diário este que contém, na sua maioria, fotografias __ com
motivos pessoais e artísticos permeados por emoções e sensações __ feitas em
Brasília, onde se passa a trama. Com uma narrativa fragmentada e melancólica,
com vários personagens que acumulam suas próprias histórias à vida de Cadu,
protagonista do romance, O livro das emoções apresenta duas estruturas distintas
que se entrelaçam em seu desenvolvimento, criando uma espécie de diálogo
alternado que, mais à frente, faz com que os acontecimentos formem uma
estrutura coesa. A primeira estrutura é uma narrativa em formato de diário, escrita
pelo próprio Cadu, iniciada na madrugada de seis de Junho de 2022, quando ele
começa a registrar o intento de escrever um livro baseado em seu antigo diário
fotográfico, iniciado vinte anos antes, em 2002. Esse diário registra os momentos
vividos por um personagem já cego e com setenta anos ao longo da escritura de
suas memórias. O registro desses momentos é marcado pelo processo de
composição do livro, em que Cadu, ao escolher as fotografias que comporão o
acervo memorialístico, articula seus conceitos sobre a arte fotográfica, literatura,
seus amores, decepções e visão política, fazendo constantes releituras de sua vida
durante toda a narrativa. Ainda nessa parte é possível perceber que os
personagens que compõem a realidade de Cadu aparecem de repente, como se
suas aparições fossem relacionadas a flashes emanados de uma câmera fotográfica.
Tal impressão é dada devido ao modo fragmentado e inusitado com que os
acontecimentos vão sendo registrados, afinal, a memória é curta, falha, e os
acontecimentos são dispostos, dentro da contagem dos dias, de acordo com sua
importância emotiva para o narrador:
Noite de São João, 2 horas da manhã
Não somente no livro que pretendo escrever, mas também neste
novo diário, vou comentar o que for surgindo, na ordem em que for
surgindo. (ALMINO, 2008, p. 13).
A segunda estrutura apresenta o próprio texto memorialístico escrito pelo
personagem, O livro das emoções, com interessantes características que podemos
observar durante toda a narrativa. Por mais que João Almino tenha procurado
apresentar diferenças quanto ao estilo da letra impressa entre a estrutura do
diário e do texto memorialístico, logicamente para diferenciar o tipo de estrutura
na qual cada parte foi escrita, não deixou de encaixar o texto memorialístico dentro
do diário ao continuar a ordem cronológica dos dias, sempre entre colchetes acima
dos títulos de cada foto, como se aquele deste fizesse parte:
[29 de junho]
1. Geometria da vida
Quando Joana e eu descobrimos que não poderíamos ter filhos,
não nos submetemos a exames para saber de quem era o
problema.
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Tentávamos conviver apenas no prazer e nos desvencilhar das
obrigações, problemas e preocupações do dia-dia. (ALMINO, 2008,
p. 16).
Logicamente que, para o personagem, O livro das emoções diferencia-se do
seu diário, ficando para o leitor a tarefa de junção das partes para compor o
romance. Vale também destacar que a divisão do texto memorialístico segue como
um álbum de fotografias. As partes que o compõem são numeradas de 1 a 62, ou
seja, o total de fotografias escolhidas por Cadu para compor seu livro: “O livro que
pretendo escrever com base no meu velho diário fotográfico poderá ser
considerado um álbum de minhas memórias sentimentais e incompletas, de uma
época em que eu via, e via demais” (ALMINO, 2008, p. 15). Mas o interessante é
que, em todo o romance, não encontramos sequer uma imagem. A cada fotografia
apresentada são adicionados elementos que, numa realidade empírica, lembram o
modo pelo qual elas são dispostas num álbum cuidadosamente elaborado, com
datas, numeração e títulos próprios, cada uma simbolizando um momento na vida
do personagem, articuladas com os variados acontecimentos que dão vida à
narrativa.
De um modo geral, O livro das emoções apresenta em sua estrutura muitos
conceitos que nos remetem ao estudo da escrita diarística2 dentro de um romance
memorialístico, formando uma grande massa que é fortificada pala destreza de
articulação do autor ao lidar com manifestações neste momento tão usuais na
literatura brasileira. Mas não é a proposta deste estudo seguir pelas linhas do
diário e suas possibilidades e da mescla com a narrativa memorialística, mas sim o
processo de composição do romance em questão e o diálogo do texto literário com
a imagem fotográfica, aos textos a ver e às imagens a ler, um dueto
interessantíssimo que tem crescido no âmbito dos estudos e discussões sobre
literatura.
Para que possamos compreender o modo pelo qual se dá o acesso às
imagens propostas por João Almino no livro que é escrito por Cadu, seu
protagonista, e à junção das várias histórias evocadas por cada pequeno capítulo
que é disposto como uma fotografia – mas que não cumpre uma disposição linear
dos acontecimentos ao deixar de prender o leitor pela sequência dos episódios e
sim pela coleta de dados durante a fragmentada narrativa –, formando assim um
álbum fotográfico, temos que dialogar com conceitos próprios do estudo da
imagem fotográfica e como eles se dão no texto literário. Essas colocações estão, de
início, no diário mantido pelo personagem, que se estende de modo fragmentado
durante toda a narrativa. Primeiramente, nas linhas iniciais do romance, é colocada
uma pequena explanação em que o personagem parece conduzir o leitor durante a
leitura: “(…) Fotografar é ver com olho treinado; recortar e guardar o que se vê. Ao
disparar a máquina, as fotos ficaram gravadas na mente, como espelhos do que fui.
São instantes eternos, espalhados num museu íntimo” (ALMINO, 2008, p. 9). Assim,
é necessário que o leitor reflita sobre o modo como o fotógrafo interage com o
mundo na busca daquilo que procura trazer à vista do olhar desatento do
observador ao valorizar cada instante, cor, espaço e distribuição de elementos no
mesmo, e na maneira como tais imagens podem ser articuladas na memória ao
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mostrar um acontecimento passado, fonte então de inúmeras possibilidades de
releitura e significação de momentos vividos: “Suas fotos evocam hoje em mim
interpretações mais secas e realistas. Mais do que fosse possível vê-las, aquelas
fotografias se mostram na lembrança em riqueza de detalhes” (ALMINO, 2008, p.
10).
Ao observarmos o modo como foi elaborado O livro das emoções, deparamonos
com o detalhe da falta de imagens no corpo do texto memorialístico, já que o
mesmo propõe a disposição de um álbum fotográfico. Para que tal impressão
cumprisse o seu objetivo – induzir o leitor a formar imagens ao ler o texto literário
–, o autor se valeu do recurso retórico da ecfrase, utilizando a palavra escrita como
processo de formação de imagens. Praticamente ao final de cada uma das 69
fotografias (em que todas abrigam uma série de acontecimentos que culminam na
imagem que carrega o título do capítulo), o narrador descreve, além da fotografia,
o momento no qual elas foram feitas, assinalando os meios de composição de cada
uma e, geralmente, se referindo à numeração das mesmas como se
verdadeiramente estivessem entre o título proposto e o texto:
[1º de julho, tarde]
3. Noturno à beira-mar
(…)
Meu problema era que os outros, me considerando um fotógrafo
medíocre, não reconheciam o grande artista que vivia dentro de
mim. Era que Joana, me tomando por homem vulgar, era incapaz
de enxergar em mim o grande amante. Era que eu não conseguia
esquecer Eduardo Kaufman. Problema maior, que me afligia
naquela madrugada, era que pensava em ligar para ele para
cobrar o emprego oferecido.
“Você é mesmo um artista”, às vezes me diziam em tom de ironia.
Eu me sentia artista quando às quatro da madrugada separava
minhas poucas roupas, o equipamento fotográfico e o laptop;
quando arrumava a mala, olhava carteira de dinheiro vazia e
previa fome, doença e decadência. Sentia-me artista quando me
despedia do Rio com uma foto noturna, a de número 3, que colei
acima.
Naquela fotografia entre preto e cinza-escuro, a água desenha
curvas de espuma sobre a praia vazia. Percebem-se, em vista
panorâmica, as ondulações do mar e uma claridade difusa no
horizonte. Sobre o granulado da areia se veem marcas de passos
quase apagadas. Como as outras que tirei desde que começara a
me preparar para partir, aquela era uma foto de meu medo.
(ALMINO, 2008, p. 24).
Vemos que a descrição da imagem proposta leva o leitor a compor suas
próprias imagens fotográficas. A mediação com a linguagem verbal através da
ecfrase induz àquilo que não existe, assim como também pode descrever uma
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imagem real, como é feito pelo narrador ao comparar uma imagem sua com a
pintura A criação do mundo, de Gustave Courbet, evocando assim esta imagem
junto à sua construção mental. Ao ler o texto, o leitor experimenta a imersão num
mundo imaginário com leis próprias, mais ou menos parecidas com as leis do
mundo real, confrontando deste modo as informações fornecidas pelo texto com
seu repertório pessoal, cultural, “seus conhecimentos, suas concepções ideológicas,
suas convicções morais, éticas, religiosas, seus interesses econômicos,
profissionais, seus mitos” (KOSSOY, 1999, p. 44). Assim, cada fotografia
mentalizada terá forma e significados diferentes segundo quem a constrói:
Não é uma fotografia [a de número 1] para ser apreciada por suas
qualidades estéticas ou informação que transmite. Diante dela,
sou como um poeta que chora ao ler seu patético poema de amor e
sente pulsar nos versos o próprio corpo da amada, embora
consciente de que o mesmo poema pode parecer insosso aos
demais leitores. Ou então como o autor do romance autobiográfico
que, tendo revelado tanto de si e escrito com tanta emoção, não
sensibiliza quem se chateia com uma história sem trama. De fato,
o observador isento não percebe a coragem nem o desespero
presentes naquela fotografia. Cada foto é distinta segundo quem a
vê. Depois que disparei a objetiva, deixei passar vinte minutos e
subi ao apartamento. (ALMINO, 2008, p. 19).
Assim o autor coloca em evidência a permanente estada da humanidade na
caverna de Platão, ansiando pelas imagens da verdade. Ele então direciona seu foco
para a aprendizagem de um novo código, não meramente visual, mas também
emocional, sensitivo. Isso nos remete para as bases do Surrealismo, que, com sua
intenção de retirar o homem de uma alienação oriunda de uma sociedade calcada
na razão e em seus preceitos dogmáticos, procurou abrir espaços para que o
mesmo se voltasse para dentro de si e sua imaginação mergulhasse no
desconhecido, formando assim plenas possibilidades de criatividade. Diluídas
nossas certezas racionais, o autor aponta para uma outra realidade, permeada pela
ficção e pelo imaginário, desfazendo o vínculo do homem com o mundo empírico:
Numa parede, montaria três painéis gigantescos de fotos
geométricas, lembrando Volpis3 multicoloridos, uma floresta de
pêlo púbico, em várias formas: triangulares, retangulares,
losangulares, elípticas, góticas, barrocas, de bigodes breves ou de
pêlos exuberantes. Disparei a câmera milhares de vezes como
quem toma posse do objeto fotografado. Colecionei aquelas
formas como quem arquiva e cataloga experiências; como quem
quer preservar para si um pedaço do mundo. Para simplificar, eu
chamaria todas aquelas formas, até mesmo os retângulos e as
elipses, apenas de triângulos. (ALMINO, 2008, p. 76).
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Na representação escrita de imagens pessoais, a imagem vem ao leitor como
algo que está para ser observado, reconhecido e interpretado, dando a ele a
inserção em um campo de interpretação mediado por seu meio cultural e por suas
reações emocionais.
O sugestivo título do romance, O livro das emoções, remete-nos a instâncias
psicológicas que confirmam sua intenção. Não é um livro meramente proposto a
apresentar ao leitor as aflições de um personagem ora fotógrafo, ora teórico de sua
fotografia; ora amado, ora ignorado; ora racional ora irracional, o que ele sente ou
deixa de sentir. É um romance que nos leva a pensar nossa própria existência junto
a uma realidade ficcional que caminha para lugares desconhecidos e a modificá-los
conforme aquilo que em nós é despertado. Para Merleau-Ponty,
Estar emocionado é achar-se engajado em uma situação que não
se consegue enfrentar e que todavia não se quer abandonar. Antes
de aceitar o fracasso ou voltar atrás, o sujeito, nesse impasse
existencial, faz voar em pedaços o mundo objetivo que lhe barra
caminho e procura, em atos mágicos, uma satisfação simbólica.
(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 126).
Por estarmos tratando da construção de imagens fotográficas por meio da
ecfrase num romance que está disposto como um álbum de fotografias, mas que
não contém imagens, é interessante lembrarmos a influência que os nomes dados
às fotografias descritas pelo narrador exercem sobre a construção diegética
produzida pelo leitor. No romance, a legenda da fotografia traz uma numeração
seguida de expressões que nomeiam a foto. Deste modo, ao final dos capítulos em
formato de fotografias ecfrásticas, temos a descrição dos acontecimentos que
culminaram no instantâneo fotográfico, onde podemos tentar a associação da
imagem que formamos durante a leitura à legenda proposta pelo narrador:
[15 de julho, à tarde]
11. Quincas anunciando o perigo
Seria eu capaz de trair um amigo? pensava, andando ao lado de
Tânia. Ela parecia gostar de Paulo Marcos, ele confiava em mim…
Desviara meu olhar de Tânia para a paisagem e, por segundos,
meu pensamento era levado para uma zona de medo e prudência
por diabos apontando seus tridentes para mim. Mas eram só
alguns segundos. A culpa era dela, por ser tão graciosa… (…)
Quincas começou a latir, censurando minhas intenções. Depois se
calou. Parecia consentir. Segurei firme as mãos de Tânia, puxei-a
em minha direção, deslizei aas mãos pó suas costas e baixei-as por
suas curvas (…)
– O que você pensa que está fazendo?
Eu não pensava nada, a menos que confusão de ideias seja
pensamento. Queria e não queira. Quincas sentiu o perigo e latiu
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novamente. Fiquei aliviado. Aproveitei para fotografá-lo. É a foto
de número 11. Levanta a cabeça em direção à câmera e mostra os
dentes como uma fera. Decidi deixar as coisas naquele ponto, me
despedindo de Tânia com beijinhos no rosto. O sábio cão me
salvara de uma situação constrangedora, que teria atrapalhado
para sempre minha amizade com Paulo Marcos. (ALMINO, 2008,
p. 57).
Apesar da liberdade que cada leitor tem de formular suas próprias imagens,
baseadas em seu repertório emotivo e particular, ele é induzido a ter também
como referência o título de cada fotografia, sua legenda. Para Walter Benjamin, as
legendas são meios que salvam a imagem fotográfica de significados vagos, pois,
segundo ele, a “câmera se tornou cada vez menor, cada vez mais apta a fixar
imagens efêmeras e secretas, cujo efeito de choque paralisa o mecanismo
associativo do espectador” (BENJAMIN, 1994, p. 107). Por um lado, esta afirmação
de Benjamin é muito válida quando diz ainda que um fotógrafo que não sabe ler
suas próprias imagens não é tão diferente de um analfabeto. Logicamente, é
importante para o fotógrafo expor consciência naquilo que procura criar _ a
imagem fotográfica _
, mostrando ao observador sua intenção e interpretação de
mundo pelo artifício da legenda que atribui à foto. No entanto, mesmo sendo a
legenda um agente de relevância para interpretação da imagem, ao transferirmos
para ela toda a responsabilidade de significação, estaremos restringindo a
capacidade de criação poética da imagem, apegando diretamente o objeto à
palavra. Assim como Magritte negou na pintura Ceci n’est pas une pipe que o
desenho de um cachimbo nela contido era um cachimbo, mesmo que tivesse a
aparência de um, podemos negar que a imagem signifique justamente aquilo que a
legenda diz. À significação da imagem, além do que pode induzir a legenda, o
observador vai formulá-la de acordo com seus motivos próprios de criação. A
legenda serve então como mais um componente no processo de significação da
imagem, mesmo sendo esta uma imagem mental formada com o artifício da
ecfrase.
Fotografias de cegos para uso dos que veem: a imagem nas janelas da alma
Uma das grandes questões relevantes no que diz respeito à fotografia é a
sua relação com a luz. Escritura luminosa, originalmente fruto de um processo
físico-químico, a fotografia tem na luz a propriedade fundamental de sua
existência, assim como o oxigênio para o ser humano. Mas também pela luz
presenciamos o aniquilamento da imagem latente que, sobre o papel fotográfico,
espera na escuridão a condição necessária para torna-se patente. Esse paradoxo
tão interessante _ o excesso como fator destruidor _ perpassa de maneira silenciosa
a sociedade atual, que privilegia a visão mais que qualquer outro sentido ao buscar
na luz os meios para ver ainda mais, sem se dar conta de que a inundação de
imagens a que hoje é acometida pode torná-la cega. É como a cegueira apontada
por Saramago (1995) em seu Ensaio sobre a cegueira.
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Nestas condições, João Almino nos apresenta em seu romance análises do
excesso experimentado pela sociedade contemporânea ao lidar com a imagem. Ao
trazer um cego como protagonista de seu romance, principalmente quando este já
foi um homem que vivia em função da imagem fotográfica (um fotógrafo), o autor
parece buscar na escuridão da cegueira o meio preciso para se chegar à luz. Na
fotografia de número 2 (O homem que via demais), Cadu, após receber uma
proposta de Eduardo Kaufman – um político mau-caráter que faz parte de um dos
vários triângulos amorosos vividos pelo protagonista – para um projeto a respeito
de fotografias sobre Paulo Antônio, um falecido presidente do Brasil, reflete em
uma das situações vividas dentro do triângulo amoroso formado por ele, Joana e
Eduardo, e lança, de modo discreto dentro da cena rememorada, seus conceitos de
visão à época baseados na maneira de uma sociedade que procura sempre ver
demais:
Ao contrário de hoje, meu problema era ver demais. Via tudo o
que se passava à volta, nos mínimos detalhes. O visível era o real, e
o real era o visível. Conhecer e ver eram a mesma coisa. O que eu
não via, provavelmente não existia. Naquele momento eu via e
melhor não ter visto. Não ter visto Joana, não ter visto Eduardo
Kaufman. Desviava o olhar, mas os ombros nus de Joana
dançavam para o movimento das mãos de Eduardo. (ALMINO,
2008, p. 20).
Após descrever a fotografia, ele finaliza o texto com alguns conceitos
atualizados sobre o sentido da visão:
Fotografia não é parte de um filme, nem momento numa
sequência de fatos. É tempo de reflexão, observação e descoberta.
Diante de uma fotografia, é possível fechar os olhos, não para
deixar de ver, mas para ver mais. Por isso não surpreende que,
embora cego, continue vendo – vendo mais – aquela foto de Joana
e Eduardo Kaufman, que, com seus reflexos e planos superpostos,
é também a foto de um pesadelo. (ALMINO, 2008, p. 21).
Antes que avancemos mais na análise do romance, faz-se necessário
mergulharmos no século XVIII e refletirmos sobre o que Diderot nos diz em sua
Carta sobre os cegos para uso dos que veem, em que trata a questão do cego e a sua
maneira de perceber o mundo. Quando discute as maneiras como o cego de
nascença de Puisaux reage quanto às atividades do cotidiano, comparando-as com
as atividades daqueles que possuem a visão, Diderot o coloca em posição superior
ao contar como ele se conduz num mundo que a ele é oculto. As colocações sobre a
maneira perceptiva com que o cego analisa e reage a cada estímulo da realidade
são pontuadas sempre de modo conceitual pelo filósofo, pois, a cada indagação
feita sobre pormenores afetos aos que veem, respostas adequadas à realidade do
cego são dadas de modo a fazer com que percebamos a existência de um mundo
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imerso na escuridão que se adéqua, à sua maneira, ao mundo dos que veem.
Quando ao cego é perguntado o que são os olhos, sua resposta é clara e adequada a
sua realidade: “E o que são, em vosso parecer, os olhos?, disse-lhe o Sr. de… ‘São,
respondeu-lhe o cego, um órgão sobre o qual o ar produz o efeito de minha bengala
sobre minha mão’. Esta resposta nos fez cair das nuvens, enquanto nos
entreolhávamos com admiração” (DIDEROT, 1979, p. 29). Diderot também cita o
matemático cego Saunderson4 e o seu aparato para calcular e apreender formas
geométricas, estabelecendo assim um diálogo com o homem cego citado
anteriormente:
Concebe-se sem dificuldade que o uso de um dos sentidos pode
ser aperfeiçoado e acelerado pelas observações do outro; mas de
modo algum que haja entre suas funções uma dependência
essencial. Há seguramente nos corpos qualidades que jamais
perceberíamos sem o toque; é o tato que nos instrui acerca da
presença de certas modificações insensíveis aos olhos, que só as
percebem quando foram advertidos por este sentido; mas tais
serviços são recíprocos; e naqueles que possuem a vista mais fina
do que o tato, o primeiro desses sentidos é que instrui o outro da
existência de objetos e das modificações que lhe escapariam
devido à sua pequeneza. (DIDEROT, 1979, p. 24).
Entendemos que Diderot, assim como na tradição da antiguidade clássica,
reconhecia a sabedoria do cego como um sábio dentro da escuridão, valorizando
sua grandiosidade pelo uso apurado de seus sentidos e a superficialidade e vaidade
daqueles que veem, e veem demais. E, comparando o pensamento de Diderot à
análise feita por João Almino, temos o retrato do mundo contemporâneo, saturado
por imagens que procuram mostrar a realidade de forma perfeita, reproduzindo
todas as circunstâncias comuns ao homem, colocando-o num estado letárgico
diante do mundo, não enxergando mais o sentido visual como um caminho ao
imaginário da imagem e do mundo. Temos então novamente a questão do excesso
como fator destruidor, o excesso de luz que causa a cegueira da visão seletiva e a
atrofia dos demais sentidos.
João Almino constrói um personagem que se coloca dentro de um mundo
saturado pela questão mimética da imagem fotográfica e que reflete sobre tal
problemática. Na fotografia de número 56, Cadu discorre sobre o início de seus
problemas de visão. De modo breve, conta sua imersão no novo mundo que se
anunciava com a chegada da cegueira e analisa as particularidades desse novo
modo de ver:
Meus problemas de visão foram um divisor de águas radical em
minha vida e em minha fotografia. Mudei meus hábitos. Por
obrigação, passei a usufruir do repouso sistemático. Por
necessidade adquiri paciência. A doença me fez escapar dos maus
livros e foi pouco a pouco me retirando do mundo superficial e
apressado das imagens para o da reflexão. Com isso passei a ouvir
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com liberdade os ecos de meu próprio pensamento. (ALMINO,
2008, p. 221).
Ao novo modo de ver, que se apurava mais e mais com a chegada da
cegueira, somam-se as modificações no modo de Cadu se relacionar com a arte
fotográfica. A questão sensitiva e o uso diferenciado da memória passam a
permear a composição de suas fotografias. A partir daí temos um personagem que
não só vive momentos lançados ao longo de um álbum de fotografias, mas também
um criador de imagens através das emoções. Fazendo referência a uma citação de
Esaú e Jacó, de Machado de Assis, sempre dita por Guga, seu irmão, Cadu busca o
distanciamento das questões miméticas outorgadas à fotografia e se envereda pelo
caminho da construção sensorial da foto: “Com o tempo me convenci que a
verdade pode ser mais nítida no escuro da mais negra noite e divisei outro sentido
para aquela frase que Guga uma vez me pronunciara e que eu nunca esquecera: ‘O
olho do homem serve de fotografia ao invisível, como o ouvido serve de eco ao
silêncio’” (ALMINO, 2008, p. 226). Na fotografia de número 59, Cadu, bêbado e já
cambaleante, é atropelado por um carro. Neste momento ele é tomado de um
impulso que o leva a exercitar, no auge de uma forte emoção, sua nova prática
artística de composição da imagem fotográfica, fazendo referência a meios
surrealistas de produção artística, citando também a propriedade de a imagem
fotográfica nos mostrar detalhes da realidade não percebidos pelo olhar limitado e
desatento do homem:
(…) Um dia, cambaleante, fui atropelado por um carro. Jogado
contra a calçada, bati com a cabeça no meio-fio. Esbravejei contra
o motorista. Ainda com a máquina na mão, que eu teimava em
levar comigo, contando com minha sorte em não ser roubado,
tentava em vão fotografar o que não via, o carro que partia sem
me prestar socorro.
(…) Uma vez mais o improvável acontecia comigo: minha câmara
ficou intacta e, respondendo aos movimentos nervosos de meu
dedo indicador, registrou algumas cenas. Dizem que na fotografia
desfocada reproduzida acima, a de número 59, que prova a
hipótese de um inconsciente ótico, a luz é misteriosa, há um
movimento colorido em forma de esse [letra s] e uma plasticidade
de obra de arte. Uma foto mecânica, de enquadramento
adivinhado pelo olhar da máquina, um olhar que às vezes
surpreende, que pode ver mais do que o olhar humano e que
conseguiu fixar para sempre não apenas aquele exato momento,
mas também o que veio depois. (ALMINO, 2008, p. 227).
A alusão a um fotógrafo cego que exercita na escuridão o seu olhar emotivo
apurado por sentidos até então adormecidos pela luz toca em mais alguns pontos
essenciais para a compreensão da proposta de João Almino em O livro das emoções.
Primeiramente, quando o personagem é levado a formular uma nova instância
criativa diante da situação na qual se encontra, temos a contestação de seu
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afastamento da realidade e de sua imersão num momento próprio de processo
criativo por meio da fotografia. Então, por faltar-lhe a visão, tudo passa a ser
criação, afastando então o estigma da conceituação mimética que sempre
acompanhou a imagem fotográfica. Temos aí uma fuga ante o real e a submissão da
matéria ao imaginário, e a evidência tanto do personagem quanto do leitor na
criação de suas fotografias. Essas referências se baseiam nos dois manifestos
surrealistas, que sempre privilegiaram o distanciamento da racionalidade e a
imersão num mundo inconsciente que revela o ser por trás de sua aparente
realidade racional, dando ao homem um encontro consigo mesmo. E, em segundo
lugar, é provável que o autor tenha usado a figura de Evgen Bavcar5 para dar
ênfase à sua análise entre a luz da fotografia e a escuridão da cegueira.
Evgen Bavcar fundamenta-se, basicamente,
em função do conceito da memória conectado aos sentidos, não a
memória conceitualmente histórica e usualmente usada por nós.
Assim como as pessoas que enxergam possuem a memória visual
das coisas (muitas vezes tida como ‘memória fotográfica’), o cego
exercita a sua memória através do olfato, da audição, das
sensações de frio e quente, do sopro do vento sobre as coisas […]
e, principalmente através do tato, que pode tornar-se
extremamente refinado em decorrência de constantes exercícios.
(BRAUNE, 2000, p. 137).
Para Bavcar, não há suficiente prazer artístico somente com a impressão do
instantâneo fotográfico sobre o papel. Os negativos revelados são arranhados com
instrumentos pontiagudos, onde então procura desenhar ícones do mundo real
(estrelas, árvores, pássaros, et.), finalizando assim seu processo de composição
baseado no todo dos seus sentidos.
De igual maneira João Almino nos prepara semelhante caminho para que
possamos compreender como se dá o processo de formação de imagens para o
cego. Assim como Bavcar, Cadu não é um cego de nascença. Acompanhando a
forma fragmentada como de modo geral está disposta a narrativa, tanto a diarística
quanto o romance que é escrito dentro do próprio diário, observamos que tais
conceitos vão sendo lançados na prosa: “Minha cegueira me impede de ver
Carolina. Mas é como se a visse. Sua voz atualiza o rosto e o corpo que vi crescer.
Terá os mesmos cabelos lisos e escuros; os mesmos olhos negros e espertos; a
mesma tez branca” (ALMINO, 2008, p. 10). É como se os sentidos acompanhassem
as evoluções da realidade, como uma atualização que se manifesta no imaginário
do personagem. Ainda refletindo sobre a composição das imagens em O livro das
emoções, temos na fotografia de número 60 (Tateando Tânia) uma cena
semelhante à que se encontra no documentário Janela da Alma (2002), quando
Evgen Bavcar realiza a sessão fotográfica de uma atriz. Ele tateia seu rosto para
buscar “visualizar” sua fisionomia e o enquadramento. Parece que João Almino
reproduz no romance cena similar à do documentário, e a finaliza com mais um
conceito sobre fotografia lançado em prosa:
Miguilim – Revista Eletrônica do Netlli | V. 4, N. 1, p. 18-32, jan.-jun. 2015
Tânia testemunhou tudo. Foi compreensiva e – creio ser esta a
palavra certa – amorosa. Tendo sua fiel amizade, me parecia que a
vida rodava como um filme leve, sonho matutino que deixava luzir
um facho de realidade – a que já não iludia nem podia desapontar.
Quando ela veio me confortar no dia seguinte, pedi que posasse
para mim. Toquei com os dedos os seus cabelos, para ter certeza
do enquadramento de seu rosto, e os lábios, para medir a
expressão de seu sorriso. Se me dissessem que já não era bela, não
acreditaria, pois meu tato confirmava a imagem que meus olhos
haviam preservado intacta. A fotografia faz parar o tempo e pode
guardar o sentimento para que seja revivido na lembrança. A foto
acima, a de número 60, foi a última que fiz de Tânia. (ALMINO,
2008, p. 232).
Entender algo que foge aos conceitos visuais impostos por uma sociedade
calcada no olhar não parece tarefa fácil. O distanciamento daquilo que se entende
como racionalidade é o artifício necessário ao entendimento das fotografias de
Evgen Bavcar e das que são sugeridas (ou induzidas) por João Almino em O livro
das emoções:
A constante atualização e, portanto, a grande contemporaneidade
da fotografia encontra-se justamente nessa capacidade de ela
carregar, já impregnada em sua linguagem, toda uma carga
surrealista de oscilar constantemente entre o real e o imaginário,
em convivência mútua. (BRAUNE, 2000, p. 145).
O próprio princípio de funcionamento da câmera nos leva a pensar que,
para que o processo fotográfico seja realizado, torna-se necessária uma cegueira
momentânea da lente diante do objeto até que seja consumado o ato fotográfico.
Diferente de um cego, temos a visão carregada de vícios e regras que nos levam a
restringir significações excêntricas à nossa realidade racional. Muito se disse (e
ainda se diz) que o nascimento da fotografia tornaria a pintura livre do
referencialismo mimético. Mas o que está surgindo na cultura do olhar na
contemporaneidade que também liberta a fotografia? Esse é o grande paradoxo
que a envolve hoje: sua libertação dos valores miméticos em busca de um ciclo de
ressignificações contrapostos ao acúmulo visual que cega o observador pelo
excesso da luz acionada pelo click fácil e rápido da câmera digital, acumulando
incontáveis gigabytes em mídias fixas e removíveis. Não somente o que estamos
vendo, mas também “o que isto significa ou pode significar”, é o que nos propõe o
autor. É nessa porção de alteridade que, à luz das imagens fotográficas que ora
inundam a paisagem, o homem se encontra e nega-se a si mesmo.
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Notas
1 Colocar em questão as relações entre literatura e fotografia é necessariamente interrogar a
noção de realismo. A exploração das relações entre literatura e fotografia, fotografia e
realismo poderia igualmente fornecer a ocasião de desafiar a hegemonia do referencial ou,
pelo menos, de traçar os limites do reino do real. In: SHUSTERMAN, Ronald. 2008. p. 529.
Tradução nossa.
2
Logicamente que tais linhas têm relevante importância para o romance e podem conduzir a
interessantes estudos com importantes resultados no que diz respeito à escrita diarística.
3 Referência a Alfredo Volpi, pintor italiano radicado no Brasil, que desenvolveu um estilo
próprio de pintura dominado pela diversidade de cores e por um abstracionismo geométrico.
4 Nicholas Saunderson (1682-1739), um dos mais renomados cientistas cegos. Matemático, foi
professor em Cambridge e membro da Royal Society.
5 Doutor em Estética pela Sorbonne, filósofo e fotógrafo. Cego aos doze anos, deixa a Eslovênia
e radica-se na França, onde passa a desenvolver seu próprio modo de fotografar. Além de
filósofo da arte, é reconhecido mundialmente como importante artista contemporâneo. Foi
um dos protagonistas do documentário brasileiro Janela da alma, de João Jardim e Walter
Carvalho, lançado em 2002.
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Miguilim – Revista Eletrônica do Netlli | V. 4, N. 1, p. 18-32, jan.-jun. 2015
JANELA DA ALMA. Direção: João Jardim e Walter Carvalho. Produção: Flávio R. Tambellini.
Intérpretes: José Saramago; Wim Wenders; Hermeto Pascoal; Antônio Cícero; Eugen Bavcar;
Oliver Sacks e outros. Rio de Janeiro: Copacabana Filmes, 2002. Legendas em português e
inglês. 1DVD vídeo (73 min), NTSC, p&b.
KOSSOY, Boris. Mecanismos internos de construção da realidade. In:______. Realidades e
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Universitaires de Rennes, 2008. p. 529-539.
SONTAG, Susan. Sobre a fotografia. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia
das Letras, 2004.
Para citar este artigo
APOLINÁRIO, Mauro Sergio. Memórias de um diário fotográfico: O Livro das Emoções.
Miguilim – Revista Eletrônica do Netlli, Crato, v. 4, n. 1, p. 18-32, jan.-abr. 2015.
O autor
Mauro Sergio Apolinário é doutorando em Poética pelo Programa de Pós
Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Este trabalho recebeu apoio/financiamento da CAPES

http://periodicos.urca.br/ojs/index.php/MigREN/article/viewFile/839/813[:en]Miguilim – Revista Eletrônica do Netlli | V. 4, N. 1, p. 18-32, jan.-jun. 2015

MEMÓRIAS DE UM DIÁRIO FOTOGRÁFICO: O LIVRO
DAS EMOÇÕES

MEMOIRS OF A DAILY PHOTO: THE BOOKS OF
EMOTIONS
Mauro Sergio APOLINÁRIO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO, Brasil
RESUMO | INDEXAÇÃO | TEXTO | REFERÊNCIAS | CITAR ESTE ARTIGO | O AUTOR
RECEBIDO EM 01/02/2015 ● APROVADO EM 04/08/2015

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Resumo
Este artigo busca trazer ao leitor algumas questões pertinentes ao estudo da fotografia como
questão literária. Se em nossos dias o uso da imagem fotográfica tomou proporções que
caminham para um tipo de cegueira motivada pelo exagero visual, é possível que na literatura
ainda se possa salvar o que se tem deixado de enxergar quando buscamos realizar aquilo que é
próprio do caminhar do homem no mundo: a arte. Assim, em O livro das emoções, de João
Almino, podemos ver acontecer o nascimento da imagem fotográfica no texto literário,
visualizando não imagens prontas no percurso que aqui nos dispomos, mas sim imagens vindas
das janelas da alma.
Entradas para indexação
KEYWORDS: Photography. Image. Realism.
PALAVRAS-CHAVE: Fotografia. Imagem. Realismo.
Texto integral
O autor, a fotografia e seus discursos
Poser la question des rapports entre littérature et photographie,
c’est forcément interroger la notion du réalisme. L’exploration des
rapports entre literature et photographie, photographie et realism
pourrait également fournir l’occasion de remettre en cause
l’hégémonie du référetiel, ou, tout au moins, de tracer les limites
au règne du reel.1
Ronald Shusterman
Desde o surgimento da fotografia, tornou-se muito comum na literatura a
quebra do domínio das paisagens naturais e culturais unicamente por meio da
escrita. As imagens técnicas deram novo rumo ao texto literário, principalmente
por propiciarem ao leitor uma nova interação de sentido com o discurso literário,
articulando texto e imagem em um único espaço narrativo, além da imersão nos
contextos artísticos, culturais e filosóficos que permeiam todo o universo da
imagem fotográfica. Numa linha que nos permite pensar a fotografia como algo
grande, uma inesgotável fonte de discursos e recursos muito maiores que a
generalização de “instante qualquer” extraído de um acontecimento real, João
Almino nos propõe em O livro das emoções muito mais que um simples romance
que trata da fotografia. Ninguém melhor que um escritor que também é fotógrafo
para criar uma narrativa que busque a união de dois universos aparentemente tão
diferentes: texto literário e imagem fotográfica.
O livro das emoções é um romance narrado em primeira pessoa, que conta
as memórias de um fotógrafo cego que decide escrever um livro baseado em seu
Miguilim – Revista Eletrônica do Netlli | V. 4, N. 1, p. 18-32, jan.-jun. 2015
antigo diário fotográfico, diário este que contém, na sua maioria, fotografias __ com
motivos pessoais e artísticos permeados por emoções e sensações __ feitas em
Brasília, onde se passa a trama. Com uma narrativa fragmentada e melancólica,
com vários personagens que acumulam suas próprias histórias à vida de Cadu,
protagonista do romance, O livro das emoções apresenta duas estruturas distintas
que se entrelaçam em seu desenvolvimento, criando uma espécie de diálogo
alternado que, mais à frente, faz com que os acontecimentos formem uma
estrutura coesa. A primeira estrutura é uma narrativa em formato de diário, escrita
pelo próprio Cadu, iniciada na madrugada de seis de Junho de 2022, quando ele
começa a registrar o intento de escrever um livro baseado em seu antigo diário
fotográfico, iniciado vinte anos antes, em 2002. Esse diário registra os momentos
vividos por um personagem já cego e com setenta anos ao longo da escritura de
suas memórias. O registro desses momentos é marcado pelo processo de
composição do livro, em que Cadu, ao escolher as fotografias que comporão o
acervo memorialístico, articula seus conceitos sobre a arte fotográfica, literatura,
seus amores, decepções e visão política, fazendo constantes releituras de sua vida
durante toda a narrativa. Ainda nessa parte é possível perceber que os
personagens que compõem a realidade de Cadu aparecem de repente, como se
suas aparições fossem relacionadas a flashes emanados de uma câmera fotográfica.
Tal impressão é dada devido ao modo fragmentado e inusitado com que os
acontecimentos vão sendo registrados, afinal, a memória é curta, falha, e os
acontecimentos são dispostos, dentro da contagem dos dias, de acordo com sua
importância emotiva para o narrador:
Noite de São João, 2 horas da manhã
Não somente no livro que pretendo escrever, mas também neste
novo diário, vou comentar o que for surgindo, na ordem em que for
surgindo. (ALMINO, 2008, p. 13).
A segunda estrutura apresenta o próprio texto memorialístico escrito pelo
personagem, O livro das emoções, com interessantes características que podemos
observar durante toda a narrativa. Por mais que João Almino tenha procurado
apresentar diferenças quanto ao estilo da letra impressa entre a estrutura do
diário e do texto memorialístico, logicamente para diferenciar o tipo de estrutura
na qual cada parte foi escrita, não deixou de encaixar o texto memorialístico dentro
do diário ao continuar a ordem cronológica dos dias, sempre entre colchetes acima
dos títulos de cada foto, como se aquele deste fizesse parte:
[29 de junho]
1. Geometria da vida
Quando Joana e eu descobrimos que não poderíamos ter filhos,
não nos submetemos a exames para saber de quem era o
problema.
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Tentávamos conviver apenas no prazer e nos desvencilhar das
obrigações, problemas e preocupações do dia-dia. (ALMINO, 2008,
p. 16).
Logicamente que, para o personagem, O livro das emoções diferencia-se do
seu diário, ficando para o leitor a tarefa de junção das partes para compor o
romance. Vale também destacar que a divisão do texto memorialístico segue como
um álbum de fotografias. As partes que o compõem são numeradas de 1 a 62, ou
seja, o total de fotografias escolhidas por Cadu para compor seu livro: “O livro que
pretendo escrever com base no meu velho diário fotográfico poderá ser
considerado um álbum de minhas memórias sentimentais e incompletas, de uma
época em que eu via, e via demais” (ALMINO, 2008, p. 15). Mas o interessante é
que, em todo o romance, não encontramos sequer uma imagem. A cada fotografia
apresentada são adicionados elementos que, numa realidade empírica, lembram o
modo pelo qual elas são dispostas num álbum cuidadosamente elaborado, com
datas, numeração e títulos próprios, cada uma simbolizando um momento na vida
do personagem, articuladas com os variados acontecimentos que dão vida à
narrativa.
De um modo geral, O livro das emoções apresenta em sua estrutura muitos
conceitos que nos remetem ao estudo da escrita diarística2 dentro de um romance
memorialístico, formando uma grande massa que é fortificada pala destreza de
articulação do autor ao lidar com manifestações neste momento tão usuais na
literatura brasileira. Mas não é a proposta deste estudo seguir pelas linhas do
diário e suas possibilidades e da mescla com a narrativa memorialística, mas sim o
processo de composição do romance em questão e o diálogo do texto literário com
a imagem fotográfica, aos textos a ver e às imagens a ler, um dueto
interessantíssimo que tem crescido no âmbito dos estudos e discussões sobre
literatura.
Para que possamos compreender o modo pelo qual se dá o acesso às
imagens propostas por João Almino no livro que é escrito por Cadu, seu
protagonista, e à junção das várias histórias evocadas por cada pequeno capítulo
que é disposto como uma fotografia – mas que não cumpre uma disposição linear
dos acontecimentos ao deixar de prender o leitor pela sequência dos episódios e
sim pela coleta de dados durante a fragmentada narrativa –, formando assim um
álbum fotográfico, temos que dialogar com conceitos próprios do estudo da
imagem fotográfica e como eles se dão no texto literário. Essas colocações estão, de
início, no diário mantido pelo personagem, que se estende de modo fragmentado
durante toda a narrativa. Primeiramente, nas linhas iniciais do romance, é colocada
uma pequena explanação em que o personagem parece conduzir o leitor durante a
leitura: “(…) Fotografar é ver com olho treinado; recortar e guardar o que se vê. Ao
disparar a máquina, as fotos ficaram gravadas na mente, como espelhos do que fui.
São instantes eternos, espalhados num museu íntimo” (ALMINO, 2008, p. 9). Assim,
é necessário que o leitor reflita sobre o modo como o fotógrafo interage com o
mundo na busca daquilo que procura trazer à vista do olhar desatento do
observador ao valorizar cada instante, cor, espaço e distribuição de elementos no
mesmo, e na maneira como tais imagens podem ser articuladas na memória ao
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mostrar um acontecimento passado, fonte então de inúmeras possibilidades de
releitura e significação de momentos vividos: “Suas fotos evocam hoje em mim
interpretações mais secas e realistas. Mais do que fosse possível vê-las, aquelas
fotografias se mostram na lembrança em riqueza de detalhes” (ALMINO, 2008, p.
10).
Ao observarmos o modo como foi elaborado O livro das emoções, deparamonos
com o detalhe da falta de imagens no corpo do texto memorialístico, já que o
mesmo propõe a disposição de um álbum fotográfico. Para que tal impressão
cumprisse o seu objetivo – induzir o leitor a formar imagens ao ler o texto literário
–, o autor se valeu do recurso retórico da ecfrase, utilizando a palavra escrita como
processo de formação de imagens. Praticamente ao final de cada uma das 69
fotografias (em que todas abrigam uma série de acontecimentos que culminam na
imagem que carrega o título do capítulo), o narrador descreve, além da fotografia,
o momento no qual elas foram feitas, assinalando os meios de composição de cada
uma e, geralmente, se referindo à numeração das mesmas como se
verdadeiramente estivessem entre o título proposto e o texto:
[1º de julho, tarde]
3. Noturno à beira-mar
(…)
Meu problema era que os outros, me considerando um fotógrafo
medíocre, não reconheciam o grande artista que vivia dentro de
mim. Era que Joana, me tomando por homem vulgar, era incapaz
de enxergar em mim o grande amante. Era que eu não conseguia
esquecer Eduardo Kaufman. Problema maior, que me afligia
naquela madrugada, era que pensava em ligar para ele para
cobrar o emprego oferecido.
“Você é mesmo um artista”, às vezes me diziam em tom de ironia.
Eu me sentia artista quando às quatro da madrugada separava
minhas poucas roupas, o equipamento fotográfico e o laptop;
quando arrumava a mala, olhava carteira de dinheiro vazia e
previa fome, doença e decadência. Sentia-me artista quando me
despedia do Rio com uma foto noturna, a de número 3, que colei
acima.
Naquela fotografia entre preto e cinza-escuro, a água desenha
curvas de espuma sobre a praia vazia. Percebem-se, em vista
panorâmica, as ondulações do mar e uma claridade difusa no
horizonte. Sobre o granulado da areia se veem marcas de passos
quase apagadas. Como as outras que tirei desde que começara a
me preparar para partir, aquela era uma foto de meu medo.
(ALMINO, 2008, p. 24).
Vemos que a descrição da imagem proposta leva o leitor a compor suas
próprias imagens fotográficas. A mediação com a linguagem verbal através da
ecfrase induz àquilo que não existe, assim como também pode descrever uma
Miguilim – Revista Eletrônica do Netlli | V. 4, N. 1, p. 18-32, jan.-jun. 2015
imagem real, como é feito pelo narrador ao comparar uma imagem sua com a
pintura A criação do mundo, de Gustave Courbet, evocando assim esta imagem
junto à sua construção mental. Ao ler o texto, o leitor experimenta a imersão num
mundo imaginário com leis próprias, mais ou menos parecidas com as leis do
mundo real, confrontando deste modo as informações fornecidas pelo texto com
seu repertório pessoal, cultural, “seus conhecimentos, suas concepções ideológicas,
suas convicções morais, éticas, religiosas, seus interesses econômicos,
profissionais, seus mitos” (KOSSOY, 1999, p. 44). Assim, cada fotografia
mentalizada terá forma e significados diferentes segundo quem a constrói:
Não é uma fotografia [a de número 1] para ser apreciada por suas
qualidades estéticas ou informação que transmite. Diante dela,
sou como um poeta que chora ao ler seu patético poema de amor e
sente pulsar nos versos o próprio corpo da amada, embora
consciente de que o mesmo poema pode parecer insosso aos
demais leitores. Ou então como o autor do romance autobiográfico
que, tendo revelado tanto de si e escrito com tanta emoção, não
sensibiliza quem se chateia com uma história sem trama. De fato,
o observador isento não percebe a coragem nem o desespero
presentes naquela fotografia. Cada foto é distinta segundo quem a
vê. Depois que disparei a objetiva, deixei passar vinte minutos e
subi ao apartamento. (ALMINO, 2008, p. 19).
Assim o autor coloca em evidência a permanente estada da humanidade na
caverna de Platão, ansiando pelas imagens da verdade. Ele então direciona seu foco
para a aprendizagem de um novo código, não meramente visual, mas também
emocional, sensitivo. Isso nos remete para as bases do Surrealismo, que, com sua
intenção de retirar o homem de uma alienação oriunda de uma sociedade calcada
na razão e em seus preceitos dogmáticos, procurou abrir espaços para que o
mesmo se voltasse para dentro de si e sua imaginação mergulhasse no
desconhecido, formando assim plenas possibilidades de criatividade. Diluídas
nossas certezas racionais, o autor aponta para uma outra realidade, permeada pela
ficção e pelo imaginário, desfazendo o vínculo do homem com o mundo empírico:
Numa parede, montaria três painéis gigantescos de fotos
geométricas, lembrando Volpis3 multicoloridos, uma floresta de
pêlo púbico, em várias formas: triangulares, retangulares,
losangulares, elípticas, góticas, barrocas, de bigodes breves ou de
pêlos exuberantes. Disparei a câmera milhares de vezes como
quem toma posse do objeto fotografado. Colecionei aquelas
formas como quem arquiva e cataloga experiências; como quem
quer preservar para si um pedaço do mundo. Para simplificar, eu
chamaria todas aquelas formas, até mesmo os retângulos e as
elipses, apenas de triângulos. (ALMINO, 2008, p. 76).
Miguilim – Revista Eletrônica do Netlli | V. 4, N. 1, p. 18-32, jan.-jun. 2015
Na representação escrita de imagens pessoais, a imagem vem ao leitor como
algo que está para ser observado, reconhecido e interpretado, dando a ele a
inserção em um campo de interpretação mediado por seu meio cultural e por suas
reações emocionais.
O sugestivo título do romance, O livro das emoções, remete-nos a instâncias
psicológicas que confirmam sua intenção. Não é um livro meramente proposto a
apresentar ao leitor as aflições de um personagem ora fotógrafo, ora teórico de sua
fotografia; ora amado, ora ignorado; ora racional ora irracional, o que ele sente ou
deixa de sentir. É um romance que nos leva a pensar nossa própria existência junto
a uma realidade ficcional que caminha para lugares desconhecidos e a modificá-los
conforme aquilo que em nós é despertado. Para Merleau-Ponty,
Estar emocionado é achar-se engajado em uma situação que não
se consegue enfrentar e que todavia não se quer abandonar. Antes
de aceitar o fracasso ou voltar atrás, o sujeito, nesse impasse
existencial, faz voar em pedaços o mundo objetivo que lhe barra
caminho e procura, em atos mágicos, uma satisfação simbólica.
(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 126).
Por estarmos tratando da construção de imagens fotográficas por meio da
ecfrase num romance que está disposto como um álbum de fotografias, mas que
não contém imagens, é interessante lembrarmos a influência que os nomes dados
às fotografias descritas pelo narrador exercem sobre a construção diegética
produzida pelo leitor. No romance, a legenda da fotografia traz uma numeração
seguida de expressões que nomeiam a foto. Deste modo, ao final dos capítulos em
formato de fotografias ecfrásticas, temos a descrição dos acontecimentos que
culminaram no instantâneo fotográfico, onde podemos tentar a associação da
imagem que formamos durante a leitura à legenda proposta pelo narrador:
[15 de julho, à tarde]
11. Quincas anunciando o perigo
Seria eu capaz de trair um amigo? pensava, andando ao lado de
Tânia. Ela parecia gostar de Paulo Marcos, ele confiava em mim…
Desviara meu olhar de Tânia para a paisagem e, por segundos,
meu pensamento era levado para uma zona de medo e prudência
por diabos apontando seus tridentes para mim. Mas eram só
alguns segundos. A culpa era dela, por ser tão graciosa… (…)
Quincas começou a latir, censurando minhas intenções. Depois se
calou. Parecia consentir. Segurei firme as mãos de Tânia, puxei-a
em minha direção, deslizei aas mãos pó suas costas e baixei-as por
suas curvas (…)
– O que você pensa que está fazendo?
Eu não pensava nada, a menos que confusão de ideias seja
pensamento. Queria e não queira. Quincas sentiu o perigo e latiu
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novamente. Fiquei aliviado. Aproveitei para fotografá-lo. É a foto
de número 11. Levanta a cabeça em direção à câmera e mostra os
dentes como uma fera. Decidi deixar as coisas naquele ponto, me
despedindo de Tânia com beijinhos no rosto. O sábio cão me
salvara de uma situação constrangedora, que teria atrapalhado
para sempre minha amizade com Paulo Marcos. (ALMINO, 2008,
p. 57).
Apesar da liberdade que cada leitor tem de formular suas próprias imagens,
baseadas em seu repertório emotivo e particular, ele é induzido a ter também
como referência o título de cada fotografia, sua legenda. Para Walter Benjamin, as
legendas são meios que salvam a imagem fotográfica de significados vagos, pois,
segundo ele, a “câmera se tornou cada vez menor, cada vez mais apta a fixar
imagens efêmeras e secretas, cujo efeito de choque paralisa o mecanismo
associativo do espectador” (BENJAMIN, 1994, p. 107). Por um lado, esta afirmação
de Benjamin é muito válida quando diz ainda que um fotógrafo que não sabe ler
suas próprias imagens não é tão diferente de um analfabeto. Logicamente, é
importante para o fotógrafo expor consciência naquilo que procura criar _ a
imagem fotográfica _
, mostrando ao observador sua intenção e interpretação de
mundo pelo artifício da legenda que atribui à foto. No entanto, mesmo sendo a
legenda um agente de relevância para interpretação da imagem, ao transferirmos
para ela toda a responsabilidade de significação, estaremos restringindo a
capacidade de criação poética da imagem, apegando diretamente o objeto à
palavra. Assim como Magritte negou na pintura Ceci n’est pas une pipe que o
desenho de um cachimbo nela contido era um cachimbo, mesmo que tivesse a
aparência de um, podemos negar que a imagem signifique justamente aquilo que a
legenda diz. À significação da imagem, além do que pode induzir a legenda, o
observador vai formulá-la de acordo com seus motivos próprios de criação. A
legenda serve então como mais um componente no processo de significação da
imagem, mesmo sendo esta uma imagem mental formada com o artifício da
ecfrase.
Fotografias de cegos para uso dos que veem: a imagem nas janelas da alma
Uma das grandes questões relevantes no que diz respeito à fotografia é a
sua relação com a luz. Escritura luminosa, originalmente fruto de um processo
físico-químico, a fotografia tem na luz a propriedade fundamental de sua
existência, assim como o oxigênio para o ser humano. Mas também pela luz
presenciamos o aniquilamento da imagem latente que, sobre o papel fotográfico,
espera na escuridão a condição necessária para torna-se patente. Esse paradoxo
tão interessante _ o excesso como fator destruidor _ perpassa de maneira silenciosa
a sociedade atual, que privilegia a visão mais que qualquer outro sentido ao buscar
na luz os meios para ver ainda mais, sem se dar conta de que a inundação de
imagens a que hoje é acometida pode torná-la cega. É como a cegueira apontada
por Saramago (1995) em seu Ensaio sobre a cegueira.
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Nestas condições, João Almino nos apresenta em seu romance análises do
excesso experimentado pela sociedade contemporânea ao lidar com a imagem. Ao
trazer um cego como protagonista de seu romance, principalmente quando este já
foi um homem que vivia em função da imagem fotográfica (um fotógrafo), o autor
parece buscar na escuridão da cegueira o meio preciso para se chegar à luz. Na
fotografia de número 2 (O homem que via demais), Cadu, após receber uma
proposta de Eduardo Kaufman – um político mau-caráter que faz parte de um dos
vários triângulos amorosos vividos pelo protagonista – para um projeto a respeito
de fotografias sobre Paulo Antônio, um falecido presidente do Brasil, reflete em
uma das situações vividas dentro do triângulo amoroso formado por ele, Joana e
Eduardo, e lança, de modo discreto dentro da cena rememorada, seus conceitos de
visão à época baseados na maneira de uma sociedade que procura sempre ver
demais:
Ao contrário de hoje, meu problema era ver demais. Via tudo o
que se passava à volta, nos mínimos detalhes. O visível era o real, e
o real era o visível. Conhecer e ver eram a mesma coisa. O que eu
não via, provavelmente não existia. Naquele momento eu via e
melhor não ter visto. Não ter visto Joana, não ter visto Eduardo
Kaufman. Desviava o olhar, mas os ombros nus de Joana
dançavam para o movimento das mãos de Eduardo. (ALMINO,
2008, p. 20).
Após descrever a fotografia, ele finaliza o texto com alguns conceitos
atualizados sobre o sentido da visão:
Fotografia não é parte de um filme, nem momento numa
sequência de fatos. É tempo de reflexão, observação e descoberta.
Diante de uma fotografia, é possível fechar os olhos, não para
deixar de ver, mas para ver mais. Por isso não surpreende que,
embora cego, continue vendo – vendo mais – aquela foto de Joana
e Eduardo Kaufman, que, com seus reflexos e planos superpostos,
é também a foto de um pesadelo. (ALMINO, 2008, p. 21).
Antes que avancemos mais na análise do romance, faz-se necessário
mergulharmos no século XVIII e refletirmos sobre o que Diderot nos diz em sua
Carta sobre os cegos para uso dos que veem, em que trata a questão do cego e a sua
maneira de perceber o mundo. Quando discute as maneiras como o cego de
nascença de Puisaux reage quanto às atividades do cotidiano, comparando-as com
as atividades daqueles que possuem a visão, Diderot o coloca em posição superior
ao contar como ele se conduz num mundo que a ele é oculto. As colocações sobre a
maneira perceptiva com que o cego analisa e reage a cada estímulo da realidade
são pontuadas sempre de modo conceitual pelo filósofo, pois, a cada indagação
feita sobre pormenores afetos aos que veem, respostas adequadas à realidade do
cego são dadas de modo a fazer com que percebamos a existência de um mundo
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imerso na escuridão que se adéqua, à sua maneira, ao mundo dos que veem.
Quando ao cego é perguntado o que são os olhos, sua resposta é clara e adequada a
sua realidade: “E o que são, em vosso parecer, os olhos?, disse-lhe o Sr. de… ‘São,
respondeu-lhe o cego, um órgão sobre o qual o ar produz o efeito de minha bengala
sobre minha mão’. Esta resposta nos fez cair das nuvens, enquanto nos
entreolhávamos com admiração” (DIDEROT, 1979, p. 29). Diderot também cita o
matemático cego Saunderson4 e o seu aparato para calcular e apreender formas
geométricas, estabelecendo assim um diálogo com o homem cego citado
anteriormente:
Concebe-se sem dificuldade que o uso de um dos sentidos pode
ser aperfeiçoado e acelerado pelas observações do outro; mas de
modo algum que haja entre suas funções uma dependência
essencial. Há seguramente nos corpos qualidades que jamais
perceberíamos sem o toque; é o tato que nos instrui acerca da
presença de certas modificações insensíveis aos olhos, que só as
percebem quando foram advertidos por este sentido; mas tais
serviços são recíprocos; e naqueles que possuem a vista mais fina
do que o tato, o primeiro desses sentidos é que instrui o outro da
existência de objetos e das modificações que lhe escapariam
devido à sua pequeneza. (DIDEROT, 1979, p. 24).
Entendemos que Diderot, assim como na tradição da antiguidade clássica,
reconhecia a sabedoria do cego como um sábio dentro da escuridão, valorizando
sua grandiosidade pelo uso apurado de seus sentidos e a superficialidade e vaidade
daqueles que veem, e veem demais. E, comparando o pensamento de Diderot à
análise feita por João Almino, temos o retrato do mundo contemporâneo, saturado
por imagens que procuram mostrar a realidade de forma perfeita, reproduzindo
todas as circunstâncias comuns ao homem, colocando-o num estado letárgico
diante do mundo, não enxergando mais o sentido visual como um caminho ao
imaginário da imagem e do mundo. Temos então novamente a questão do excesso
como fator destruidor, o excesso de luz que causa a cegueira da visão seletiva e a
atrofia dos demais sentidos.
João Almino constrói um personagem que se coloca dentro de um mundo
saturado pela questão mimética da imagem fotográfica e que reflete sobre tal
problemática. Na fotografia de número 56, Cadu discorre sobre o início de seus
problemas de visão. De modo breve, conta sua imersão no novo mundo que se
anunciava com a chegada da cegueira e analisa as particularidades desse novo
modo de ver:
Meus problemas de visão foram um divisor de águas radical em
minha vida e em minha fotografia. Mudei meus hábitos. Por
obrigação, passei a usufruir do repouso sistemático. Por
necessidade adquiri paciência. A doença me fez escapar dos maus
livros e foi pouco a pouco me retirando do mundo superficial e
apressado das imagens para o da reflexão. Com isso passei a ouvir
Miguilim – Revista Eletrônica do Netlli | V. 4, N. 1, p. 18-32, jan.-jun. 2015
com liberdade os ecos de meu próprio pensamento. (ALMINO,
2008, p. 221).
Ao novo modo de ver, que se apurava mais e mais com a chegada da
cegueira, somam-se as modificações no modo de Cadu se relacionar com a arte
fotográfica. A questão sensitiva e o uso diferenciado da memória passam a
permear a composição de suas fotografias. A partir daí temos um personagem que
não só vive momentos lançados ao longo de um álbum de fotografias, mas também
um criador de imagens através das emoções. Fazendo referência a uma citação de
Esaú e Jacó, de Machado de Assis, sempre dita por Guga, seu irmão, Cadu busca o
distanciamento das questões miméticas outorgadas à fotografia e se envereda pelo
caminho da construção sensorial da foto: “Com o tempo me convenci que a
verdade pode ser mais nítida no escuro da mais negra noite e divisei outro sentido
para aquela frase que Guga uma vez me pronunciara e que eu nunca esquecera: ‘O
olho do homem serve de fotografia ao invisível, como o ouvido serve de eco ao
silêncio’” (ALMINO, 2008, p. 226). Na fotografia de número 59, Cadu, bêbado e já
cambaleante, é atropelado por um carro. Neste momento ele é tomado de um
impulso que o leva a exercitar, no auge de uma forte emoção, sua nova prática
artística de composição da imagem fotográfica, fazendo referência a meios
surrealistas de produção artística, citando também a propriedade de a imagem
fotográfica nos mostrar detalhes da realidade não percebidos pelo olhar limitado e
desatento do homem:
(…) Um dia, cambaleante, fui atropelado por um carro. Jogado
contra a calçada, bati com a cabeça no meio-fio. Esbravejei contra
o motorista. Ainda com a máquina na mão, que eu teimava em
levar comigo, contando com minha sorte em não ser roubado,
tentava em vão fotografar o que não via, o carro que partia sem
me prestar socorro.
(…) Uma vez mais o improvável acontecia comigo: minha câmara
ficou intacta e, respondendo aos movimentos nervosos de meu
dedo indicador, registrou algumas cenas. Dizem que na fotografia
desfocada reproduzida acima, a de número 59, que prova a
hipótese de um inconsciente ótico, a luz é misteriosa, há um
movimento colorido em forma de esse [letra s] e uma plasticidade
de obra de arte. Uma foto mecânica, de enquadramento
adivinhado pelo olhar da máquina, um olhar que às vezes
surpreende, que pode ver mais do que o olhar humano e que
conseguiu fixar para sempre não apenas aquele exato momento,
mas também o que veio depois. (ALMINO, 2008, p. 227).
A alusão a um fotógrafo cego que exercita na escuridão o seu olhar emotivo
apurado por sentidos até então adormecidos pela luz toca em mais alguns pontos
essenciais para a compreensão da proposta de João Almino em O livro das emoções.
Primeiramente, quando o personagem é levado a formular uma nova instância
criativa diante da situação na qual se encontra, temos a contestação de seu
Miguilim – Revista Eletrônica do Netlli | V. 4, N. 1, p. 18-32, jan.-jun. 2015
afastamento da realidade e de sua imersão num momento próprio de processo
criativo por meio da fotografia. Então, por faltar-lhe a visão, tudo passa a ser
criação, afastando então o estigma da conceituação mimética que sempre
acompanhou a imagem fotográfica. Temos aí uma fuga ante o real e a submissão da
matéria ao imaginário, e a evidência tanto do personagem quanto do leitor na
criação de suas fotografias. Essas referências se baseiam nos dois manifestos
surrealistas, que sempre privilegiaram o distanciamento da racionalidade e a
imersão num mundo inconsciente que revela o ser por trás de sua aparente
realidade racional, dando ao homem um encontro consigo mesmo. E, em segundo
lugar, é provável que o autor tenha usado a figura de Evgen Bavcar5 para dar
ênfase à sua análise entre a luz da fotografia e a escuridão da cegueira.
Evgen Bavcar fundamenta-se, basicamente,
em função do conceito da memória conectado aos sentidos, não a
memória conceitualmente histórica e usualmente usada por nós.
Assim como as pessoas que enxergam possuem a memória visual
das coisas (muitas vezes tida como ‘memória fotográfica’), o cego
exercita a sua memória através do olfato, da audição, das
sensações de frio e quente, do sopro do vento sobre as coisas […]
e, principalmente através do tato, que pode tornar-se
extremamente refinado em decorrência de constantes exercícios.
(BRAUNE, 2000, p. 137).
Para Bavcar, não há suficiente prazer artístico somente com a impressão do
instantâneo fotográfico sobre o papel. Os negativos revelados são arranhados com
instrumentos pontiagudos, onde então procura desenhar ícones do mundo real
(estrelas, árvores, pássaros, et.), finalizando assim seu processo de composição
baseado no todo dos seus sentidos.
De igual maneira João Almino nos prepara semelhante caminho para que
possamos compreender como se dá o processo de formação de imagens para o
cego. Assim como Bavcar, Cadu não é um cego de nascença. Acompanhando a
forma fragmentada como de modo geral está disposta a narrativa, tanto a diarística
quanto o romance que é escrito dentro do próprio diário, observamos que tais
conceitos vão sendo lançados na prosa: “Minha cegueira me impede de ver
Carolina. Mas é como se a visse. Sua voz atualiza o rosto e o corpo que vi crescer.
Terá os mesmos cabelos lisos e escuros; os mesmos olhos negros e espertos; a
mesma tez branca” (ALMINO, 2008, p. 10). É como se os sentidos acompanhassem
as evoluções da realidade, como uma atualização que se manifesta no imaginário
do personagem. Ainda refletindo sobre a composição das imagens em O livro das
emoções, temos na fotografia de número 60 (Tateando Tânia) uma cena
semelhante à que se encontra no documentário Janela da Alma (2002), quando
Evgen Bavcar realiza a sessão fotográfica de uma atriz. Ele tateia seu rosto para
buscar “visualizar” sua fisionomia e o enquadramento. Parece que João Almino
reproduz no romance cena similar à do documentário, e a finaliza com mais um
conceito sobre fotografia lançado em prosa:
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Tânia testemunhou tudo. Foi compreensiva e – creio ser esta a
palavra certa – amorosa. Tendo sua fiel amizade, me parecia que a
vida rodava como um filme leve, sonho matutino que deixava luzir
um facho de realidade – a que já não iludia nem podia desapontar.
Quando ela veio me confortar no dia seguinte, pedi que posasse
para mim. Toquei com os dedos os seus cabelos, para ter certeza
do enquadramento de seu rosto, e os lábios, para medir a
expressão de seu sorriso. Se me dissessem que já não era bela, não
acreditaria, pois meu tato confirmava a imagem que meus olhos
haviam preservado intacta. A fotografia faz parar o tempo e pode
guardar o sentimento para que seja revivido na lembrança. A foto
acima, a de número 60, foi a última que fiz de Tânia. (ALMINO,
2008, p. 232).
Entender algo que foge aos conceitos visuais impostos por uma sociedade
calcada no olhar não parece tarefa fácil. O distanciamento daquilo que se entende
como racionalidade é o artifício necessário ao entendimento das fotografias de
Evgen Bavcar e das que são sugeridas (ou induzidas) por João Almino em O livro
das emoções:
A constante atualização e, portanto, a grande contemporaneidade
da fotografia encontra-se justamente nessa capacidade de ela
carregar, já impregnada em sua linguagem, toda uma carga
surrealista de oscilar constantemente entre o real e o imaginário,
em convivência mútua. (BRAUNE, 2000, p. 145).
O próprio princípio de funcionamento da câmera nos leva a pensar que,
para que o processo fotográfico seja realizado, torna-se necessária uma cegueira
momentânea da lente diante do objeto até que seja consumado o ato fotográfico.
Diferente de um cego, temos a visão carregada de vícios e regras que nos levam a
restringir significações excêntricas à nossa realidade racional. Muito se disse (e
ainda se diz) que o nascimento da fotografia tornaria a pintura livre do
referencialismo mimético. Mas o que está surgindo na cultura do olhar na
contemporaneidade que também liberta a fotografia? Esse é o grande paradoxo
que a envolve hoje: sua libertação dos valores miméticos em busca de um ciclo de
ressignificações contrapostos ao acúmulo visual que cega o observador pelo
excesso da luz acionada pelo click fácil e rápido da câmera digital, acumulando
incontáveis gigabytes em mídias fixas e removíveis. Não somente o que estamos
vendo, mas também “o que isto significa ou pode significar”, é o que nos propõe o
autor. É nessa porção de alteridade que, à luz das imagens fotográficas que ora
inundam a paisagem, o homem se encontra e nega-se a si mesmo.
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Notas
1 Colocar em questão as relações entre literatura e fotografia é necessariamente interrogar a
noção de realismo. A exploração das relações entre literatura e fotografia, fotografia e
realismo poderia igualmente fornecer a ocasião de desafiar a hegemonia do referencial ou,
pelo menos, de traçar os limites do reino do real. In: SHUSTERMAN, Ronald. 2008. p. 529.
Tradução nossa.
2
Logicamente que tais linhas têm relevante importância para o romance e podem conduzir a
interessantes estudos com importantes resultados no que diz respeito à escrita diarística.
3 Referência a Alfredo Volpi, pintor italiano radicado no Brasil, que desenvolveu um estilo
próprio de pintura dominado pela diversidade de cores e por um abstracionismo geométrico.
4 Nicholas Saunderson (1682-1739), um dos mais renomados cientistas cegos. Matemático, foi
professor em Cambridge e membro da Royal Society.
5 Doutor em Estética pela Sorbonne, filósofo e fotógrafo. Cego aos doze anos, deixa a Eslovênia
e radica-se na França, onde passa a desenvolver seu próprio modo de fotografar. Além de
filósofo da arte, é reconhecido mundialmente como importante artista contemporâneo. Foi
um dos protagonistas do documentário brasileiro Janela da alma, de João Jardim e Walter
Carvalho, lançado em 2002.
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Miguilim – Revista Eletrônica do Netlli | V. 4, N. 1, p. 18-32, jan.-jun. 2015
JANELA DA ALMA. Direção: João Jardim e Walter Carvalho. Produção: Flávio R. Tambellini.
Intérpretes: José Saramago; Wim Wenders; Hermeto Pascoal; Antônio Cícero; Eugen Bavcar;
Oliver Sacks e outros. Rio de Janeiro: Copacabana Filmes, 2002. Legendas em português e
inglês. 1DVD vídeo (73 min), NTSC, p&b.
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SONTAG, Susan. Sobre a fotografia. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia
das Letras, 2004.
Para citar este artigo
APOLINÁRIO, Mauro Sergio. Memórias de um diário fotográfico: O Livro das Emoções.
Miguilim – Revista Eletrônica do Netlli, Crato, v. 4, n. 1, p. 18-32, jan.-abr. 2015.
O autor
Mauro Sergio Apolinário é doutorando em Poética pelo Programa de Pós
Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Este trabalho recebeu apoio/financiamento da CAPES

http://periodicos.urca.br/ojs/index.php/MigREN/article/viewFile/839/813[:es]Miguilim – Revista Eletrônica do Netlli | V. 4, N. 1, p. 18-32, jan.-jun. 2015

MEMÓRIAS DE UM DIÁRIO FOTOGRÁFICO: O LIVRO
DAS EMOÇÕES

MEMOIRS OF A DAILY PHOTO: THE BOOKS OF
EMOTIONS
Mauro Sergio APOLINÁRIO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO, Brasil
RESUMO | INDEXAÇÃO | TEXTO | REFERÊNCIAS | CITAR ESTE ARTIGO | O AUTOR
RECEBIDO EM 01/02/2015 ● APROVADO EM 04/08/2015

Miguilim – Revista Eletrônica do Netlli | V. 4, N. 1, p. 18-32, jan.-jun. 2015
Resumo
Este artigo busca trazer ao leitor algumas questões pertinentes ao estudo da fotografia como
questão literária. Se em nossos dias o uso da imagem fotográfica tomou proporções que
caminham para um tipo de cegueira motivada pelo exagero visual, é possível que na literatura
ainda se possa salvar o que se tem deixado de enxergar quando buscamos realizar aquilo que é
próprio do caminhar do homem no mundo: a arte. Assim, em O livro das emoções, de João
Almino, podemos ver acontecer o nascimento da imagem fotográfica no texto literário,
visualizando não imagens prontas no percurso que aqui nos dispomos, mas sim imagens vindas
das janelas da alma.
Entradas para indexação
KEYWORDS: Photography. Image. Realism.
PALAVRAS-CHAVE: Fotografia. Imagem. Realismo.
Texto integral
O autor, a fotografia e seus discursos
Poser la question des rapports entre littérature et photographie,
c’est forcément interroger la notion du réalisme. L’exploration des
rapports entre literature et photographie, photographie et realism
pourrait également fournir l’occasion de remettre en cause
l’hégémonie du référetiel, ou, tout au moins, de tracer les limites
au règne du reel.1
Ronald Shusterman
Desde o surgimento da fotografia, tornou-se muito comum na literatura a
quebra do domínio das paisagens naturais e culturais unicamente por meio da
escrita. As imagens técnicas deram novo rumo ao texto literário, principalmente
por propiciarem ao leitor uma nova interação de sentido com o discurso literário,
articulando texto e imagem em um único espaço narrativo, além da imersão nos
contextos artísticos, culturais e filosóficos que permeiam todo o universo da
imagem fotográfica. Numa linha que nos permite pensar a fotografia como algo
grande, uma inesgotável fonte de discursos e recursos muito maiores que a
generalização de “instante qualquer” extraído de um acontecimento real, João
Almino nos propõe em O livro das emoções muito mais que um simples romance
que trata da fotografia. Ninguém melhor que um escritor que também é fotógrafo
para criar uma narrativa que busque a união de dois universos aparentemente tão
diferentes: texto literário e imagem fotográfica.
O livro das emoções é um romance narrado em primeira pessoa, que conta
as memórias de um fotógrafo cego que decide escrever um livro baseado em seu
Miguilim – Revista Eletrônica do Netlli | V. 4, N. 1, p. 18-32, jan.-jun. 2015
antigo diário fotográfico, diário este que contém, na sua maioria, fotografias __ com
motivos pessoais e artísticos permeados por emoções e sensações __ feitas em
Brasília, onde se passa a trama. Com uma narrativa fragmentada e melancólica,
com vários personagens que acumulam suas próprias histórias à vida de Cadu,
protagonista do romance, O livro das emoções apresenta duas estruturas distintas
que se entrelaçam em seu desenvolvimento, criando uma espécie de diálogo
alternado que, mais à frente, faz com que os acontecimentos formem uma
estrutura coesa. A primeira estrutura é uma narrativa em formato de diário, escrita
pelo próprio Cadu, iniciada na madrugada de seis de Junho de 2022, quando ele
começa a registrar o intento de escrever um livro baseado em seu antigo diário
fotográfico, iniciado vinte anos antes, em 2002. Esse diário registra os momentos
vividos por um personagem já cego e com setenta anos ao longo da escritura de
suas memórias. O registro desses momentos é marcado pelo processo de
composição do livro, em que Cadu, ao escolher as fotografias que comporão o
acervo memorialístico, articula seus conceitos sobre a arte fotográfica, literatura,
seus amores, decepções e visão política, fazendo constantes releituras de sua vida
durante toda a narrativa. Ainda nessa parte é possível perceber que os
personagens que compõem a realidade de Cadu aparecem de repente, como se
suas aparições fossem relacionadas a flashes emanados de uma câmera fotográfica.
Tal impressão é dada devido ao modo fragmentado e inusitado com que os
acontecimentos vão sendo registrados, afinal, a memória é curta, falha, e os
acontecimentos são dispostos, dentro da contagem dos dias, de acordo com sua
importância emotiva para o narrador:
Noite de São João, 2 horas da manhã
Não somente no livro que pretendo escrever, mas também neste
novo diário, vou comentar o que for surgindo, na ordem em que for
surgindo. (ALMINO, 2008, p. 13).
A segunda estrutura apresenta o próprio texto memorialístico escrito pelo
personagem, O livro das emoções, com interessantes características que podemos
observar durante toda a narrativa. Por mais que João Almino tenha procurado
apresentar diferenças quanto ao estilo da letra impressa entre a estrutura do
diário e do texto memorialístico, logicamente para diferenciar o tipo de estrutura
na qual cada parte foi escrita, não deixou de encaixar o texto memorialístico dentro
do diário ao continuar a ordem cronológica dos dias, sempre entre colchetes acima
dos títulos de cada foto, como se aquele deste fizesse parte:
[29 de junho]
1. Geometria da vida
Quando Joana e eu descobrimos que não poderíamos ter filhos,
não nos submetemos a exames para saber de quem era o
problema.
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Tentávamos conviver apenas no prazer e nos desvencilhar das
obrigações, problemas e preocupações do dia-dia. (ALMINO, 2008,
p. 16).
Logicamente que, para o personagem, O livro das emoções diferencia-se do
seu diário, ficando para o leitor a tarefa de junção das partes para compor o
romance. Vale também destacar que a divisão do texto memorialístico segue como
um álbum de fotografias. As partes que o compõem são numeradas de 1 a 62, ou
seja, o total de fotografias escolhidas por Cadu para compor seu livro: “O livro que
pretendo escrever com base no meu velho diário fotográfico poderá ser
considerado um álbum de minhas memórias sentimentais e incompletas, de uma
época em que eu via, e via demais” (ALMINO, 2008, p. 15). Mas o interessante é
que, em todo o romance, não encontramos sequer uma imagem. A cada fotografia
apresentada são adicionados elementos que, numa realidade empírica, lembram o
modo pelo qual elas são dispostas num álbum cuidadosamente elaborado, com
datas, numeração e títulos próprios, cada uma simbolizando um momento na vida
do personagem, articuladas com os variados acontecimentos que dão vida à
narrativa.
De um modo geral, O livro das emoções apresenta em sua estrutura muitos
conceitos que nos remetem ao estudo da escrita diarística2 dentro de um romance
memorialístico, formando uma grande massa que é fortificada pala destreza de
articulação do autor ao lidar com manifestações neste momento tão usuais na
literatura brasileira. Mas não é a proposta deste estudo seguir pelas linhas do
diário e suas possibilidades e da mescla com a narrativa memorialística, mas sim o
processo de composição do romance em questão e o diálogo do texto literário com
a imagem fotográfica, aos textos a ver e às imagens a ler, um dueto
interessantíssimo que tem crescido no âmbito dos estudos e discussões sobre
literatura.
Para que possamos compreender o modo pelo qual se dá o acesso às
imagens propostas por João Almino no livro que é escrito por Cadu, seu
protagonista, e à junção das várias histórias evocadas por cada pequeno capítulo
que é disposto como uma fotografia – mas que não cumpre uma disposição linear
dos acontecimentos ao deixar de prender o leitor pela sequência dos episódios e
sim pela coleta de dados durante a fragmentada narrativa –, formando assim um
álbum fotográfico, temos que dialogar com conceitos próprios do estudo da
imagem fotográfica e como eles se dão no texto literário. Essas colocações estão, de
início, no diário mantido pelo personagem, que se estende de modo fragmentado
durante toda a narrativa. Primeiramente, nas linhas iniciais do romance, é colocada
uma pequena explanação em que o personagem parece conduzir o leitor durante a
leitura: “(…) Fotografar é ver com olho treinado; recortar e guardar o que se vê. Ao
disparar a máquina, as fotos ficaram gravadas na mente, como espelhos do que fui.
São instantes eternos, espalhados num museu íntimo” (ALMINO, 2008, p. 9). Assim,
é necessário que o leitor reflita sobre o modo como o fotógrafo interage com o
mundo na busca daquilo que procura trazer à vista do olhar desatento do
observador ao valorizar cada instante, cor, espaço e distribuição de elementos no
mesmo, e na maneira como tais imagens podem ser articuladas na memória ao
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mostrar um acontecimento passado, fonte então de inúmeras possibilidades de
releitura e significação de momentos vividos: “Suas fotos evocam hoje em mim
interpretações mais secas e realistas. Mais do que fosse possível vê-las, aquelas
fotografias se mostram na lembrança em riqueza de detalhes” (ALMINO, 2008, p.
10).
Ao observarmos o modo como foi elaborado O livro das emoções, deparamonos
com o detalhe da falta de imagens no corpo do texto memorialístico, já que o
mesmo propõe a disposição de um álbum fotográfico. Para que tal impressão
cumprisse o seu objetivo – induzir o leitor a formar imagens ao ler o texto literário
–, o autor se valeu do recurso retórico da ecfrase, utilizando a palavra escrita como
processo de formação de imagens. Praticamente ao final de cada uma das 69
fotografias (em que todas abrigam uma série de acontecimentos que culminam na
imagem que carrega o título do capítulo), o narrador descreve, além da fotografia,
o momento no qual elas foram feitas, assinalando os meios de composição de cada
uma e, geralmente, se referindo à numeração das mesmas como se
verdadeiramente estivessem entre o título proposto e o texto:
[1º de julho, tarde]
3. Noturno à beira-mar
(…)
Meu problema era que os outros, me considerando um fotógrafo
medíocre, não reconheciam o grande artista que vivia dentro de
mim. Era que Joana, me tomando por homem vulgar, era incapaz
de enxergar em mim o grande amante. Era que eu não conseguia
esquecer Eduardo Kaufman. Problema maior, que me afligia
naquela madrugada, era que pensava em ligar para ele para
cobrar o emprego oferecido.
“Você é mesmo um artista”, às vezes me diziam em tom de ironia.
Eu me sentia artista quando às quatro da madrugada separava
minhas poucas roupas, o equipamento fotográfico e o laptop;
quando arrumava a mala, olhava carteira de dinheiro vazia e
previa fome, doença e decadência. Sentia-me artista quando me
despedia do Rio com uma foto noturna, a de número 3, que colei
acima.
Naquela fotografia entre preto e cinza-escuro, a água desenha
curvas de espuma sobre a praia vazia. Percebem-se, em vista
panorâmica, as ondulações do mar e uma claridade difusa no
horizonte. Sobre o granulado da areia se veem marcas de passos
quase apagadas. Como as outras que tirei desde que começara a
me preparar para partir, aquela era uma foto de meu medo.
(ALMINO, 2008, p. 24).
Vemos que a descrição da imagem proposta leva o leitor a compor suas
próprias imagens fotográficas. A mediação com a linguagem verbal através da
ecfrase induz àquilo que não existe, assim como também pode descrever uma
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imagem real, como é feito pelo narrador ao comparar uma imagem sua com a
pintura A criação do mundo, de Gustave Courbet, evocando assim esta imagem
junto à sua construção mental. Ao ler o texto, o leitor experimenta a imersão num
mundo imaginário com leis próprias, mais ou menos parecidas com as leis do
mundo real, confrontando deste modo as informações fornecidas pelo texto com
seu repertório pessoal, cultural, “seus conhecimentos, suas concepções ideológicas,
suas convicções morais, éticas, religiosas, seus interesses econômicos,
profissionais, seus mitos” (KOSSOY, 1999, p. 44). Assim, cada fotografia
mentalizada terá forma e significados diferentes segundo quem a constrói:
Não é uma fotografia [a de número 1] para ser apreciada por suas
qualidades estéticas ou informação que transmite. Diante dela,
sou como um poeta que chora ao ler seu patético poema de amor e
sente pulsar nos versos o próprio corpo da amada, embora
consciente de que o mesmo poema pode parecer insosso aos
demais leitores. Ou então como o autor do romance autobiográfico
que, tendo revelado tanto de si e escrito com tanta emoção, não
sensibiliza quem se chateia com uma história sem trama. De fato,
o observador isento não percebe a coragem nem o desespero
presentes naquela fotografia. Cada foto é distinta segundo quem a
vê. Depois que disparei a objetiva, deixei passar vinte minutos e
subi ao apartamento. (ALMINO, 2008, p. 19).
Assim o autor coloca em evidência a permanente estada da humanidade na
caverna de Platão, ansiando pelas imagens da verdade. Ele então direciona seu foco
para a aprendizagem de um novo código, não meramente visual, mas também
emocional, sensitivo. Isso nos remete para as bases do Surrealismo, que, com sua
intenção de retirar o homem de uma alienação oriunda de uma sociedade calcada
na razão e em seus preceitos dogmáticos, procurou abrir espaços para que o
mesmo se voltasse para dentro de si e sua imaginação mergulhasse no
desconhecido, formando assim plenas possibilidades de criatividade. Diluídas
nossas certezas racionais, o autor aponta para uma outra realidade, permeada pela
ficção e pelo imaginário, desfazendo o vínculo do homem com o mundo empírico:
Numa parede, montaria três painéis gigantescos de fotos
geométricas, lembrando Volpis3 multicoloridos, uma floresta de
pêlo púbico, em várias formas: triangulares, retangulares,
losangulares, elípticas, góticas, barrocas, de bigodes breves ou de
pêlos exuberantes. Disparei a câmera milhares de vezes como
quem toma posse do objeto fotografado. Colecionei aquelas
formas como quem arquiva e cataloga experiências; como quem
quer preservar para si um pedaço do mundo. Para simplificar, eu
chamaria todas aquelas formas, até mesmo os retângulos e as
elipses, apenas de triângulos. (ALMINO, 2008, p. 76).
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Na representação escrita de imagens pessoais, a imagem vem ao leitor como
algo que está para ser observado, reconhecido e interpretado, dando a ele a
inserção em um campo de interpretação mediado por seu meio cultural e por suas
reações emocionais.
O sugestivo título do romance, O livro das emoções, remete-nos a instâncias
psicológicas que confirmam sua intenção. Não é um livro meramente proposto a
apresentar ao leitor as aflições de um personagem ora fotógrafo, ora teórico de sua
fotografia; ora amado, ora ignorado; ora racional ora irracional, o que ele sente ou
deixa de sentir. É um romance que nos leva a pensar nossa própria existência junto
a uma realidade ficcional que caminha para lugares desconhecidos e a modificá-los
conforme aquilo que em nós é despertado. Para Merleau-Ponty,
Estar emocionado é achar-se engajado em uma situação que não
se consegue enfrentar e que todavia não se quer abandonar. Antes
de aceitar o fracasso ou voltar atrás, o sujeito, nesse impasse
existencial, faz voar em pedaços o mundo objetivo que lhe barra
caminho e procura, em atos mágicos, uma satisfação simbólica.
(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 126).
Por estarmos tratando da construção de imagens fotográficas por meio da
ecfrase num romance que está disposto como um álbum de fotografias, mas que
não contém imagens, é interessante lembrarmos a influência que os nomes dados
às fotografias descritas pelo narrador exercem sobre a construção diegética
produzida pelo leitor. No romance, a legenda da fotografia traz uma numeração
seguida de expressões que nomeiam a foto. Deste modo, ao final dos capítulos em
formato de fotografias ecfrásticas, temos a descrição dos acontecimentos que
culminaram no instantâneo fotográfico, onde podemos tentar a associação da
imagem que formamos durante a leitura à legenda proposta pelo narrador:
[15 de julho, à tarde]
11. Quincas anunciando o perigo
Seria eu capaz de trair um amigo? pensava, andando ao lado de
Tânia. Ela parecia gostar de Paulo Marcos, ele confiava em mim…
Desviara meu olhar de Tânia para a paisagem e, por segundos,
meu pensamento era levado para uma zona de medo e prudência
por diabos apontando seus tridentes para mim. Mas eram só
alguns segundos. A culpa era dela, por ser tão graciosa… (…)
Quincas começou a latir, censurando minhas intenções. Depois se
calou. Parecia consentir. Segurei firme as mãos de Tânia, puxei-a
em minha direção, deslizei aas mãos pó suas costas e baixei-as por
suas curvas (…)
– O que você pensa que está fazendo?
Eu não pensava nada, a menos que confusão de ideias seja
pensamento. Queria e não queira. Quincas sentiu o perigo e latiu
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novamente. Fiquei aliviado. Aproveitei para fotografá-lo. É a foto
de número 11. Levanta a cabeça em direção à câmera e mostra os
dentes como uma fera. Decidi deixar as coisas naquele ponto, me
despedindo de Tânia com beijinhos no rosto. O sábio cão me
salvara de uma situação constrangedora, que teria atrapalhado
para sempre minha amizade com Paulo Marcos. (ALMINO, 2008,
p. 57).
Apesar da liberdade que cada leitor tem de formular suas próprias imagens,
baseadas em seu repertório emotivo e particular, ele é induzido a ter também
como referência o título de cada fotografia, sua legenda. Para Walter Benjamin, as
legendas são meios que salvam a imagem fotográfica de significados vagos, pois,
segundo ele, a “câmera se tornou cada vez menor, cada vez mais apta a fixar
imagens efêmeras e secretas, cujo efeito de choque paralisa o mecanismo
associativo do espectador” (BENJAMIN, 1994, p. 107). Por um lado, esta afirmação
de Benjamin é muito válida quando diz ainda que um fotógrafo que não sabe ler
suas próprias imagens não é tão diferente de um analfabeto. Logicamente, é
importante para o fotógrafo expor consciência naquilo que procura criar _ a
imagem fotográfica _
, mostrando ao observador sua intenção e interpretação de
mundo pelo artifício da legenda que atribui à foto. No entanto, mesmo sendo a
legenda um agente de relevância para interpretação da imagem, ao transferirmos
para ela toda a responsabilidade de significação, estaremos restringindo a
capacidade de criação poética da imagem, apegando diretamente o objeto à
palavra. Assim como Magritte negou na pintura Ceci n’est pas une pipe que o
desenho de um cachimbo nela contido era um cachimbo, mesmo que tivesse a
aparência de um, podemos negar que a imagem signifique justamente aquilo que a
legenda diz. À significação da imagem, além do que pode induzir a legenda, o
observador vai formulá-la de acordo com seus motivos próprios de criação. A
legenda serve então como mais um componente no processo de significação da
imagem, mesmo sendo esta uma imagem mental formada com o artifício da
ecfrase.
Fotografias de cegos para uso dos que veem: a imagem nas janelas da alma
Uma das grandes questões relevantes no que diz respeito à fotografia é a
sua relação com a luz. Escritura luminosa, originalmente fruto de um processo
físico-químico, a fotografia tem na luz a propriedade fundamental de sua
existência, assim como o oxigênio para o ser humano. Mas também pela luz
presenciamos o aniquilamento da imagem latente que, sobre o papel fotográfico,
espera na escuridão a condição necessária para torna-se patente. Esse paradoxo
tão interessante _ o excesso como fator destruidor _ perpassa de maneira silenciosa
a sociedade atual, que privilegia a visão mais que qualquer outro sentido ao buscar
na luz os meios para ver ainda mais, sem se dar conta de que a inundação de
imagens a que hoje é acometida pode torná-la cega. É como a cegueira apontada
por Saramago (1995) em seu Ensaio sobre a cegueira.
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Nestas condições, João Almino nos apresenta em seu romance análises do
excesso experimentado pela sociedade contemporânea ao lidar com a imagem. Ao
trazer um cego como protagonista de seu romance, principalmente quando este já
foi um homem que vivia em função da imagem fotográfica (um fotógrafo), o autor
parece buscar na escuridão da cegueira o meio preciso para se chegar à luz. Na
fotografia de número 2 (O homem que via demais), Cadu, após receber uma
proposta de Eduardo Kaufman – um político mau-caráter que faz parte de um dos
vários triângulos amorosos vividos pelo protagonista – para um projeto a respeito
de fotografias sobre Paulo Antônio, um falecido presidente do Brasil, reflete em
uma das situações vividas dentro do triângulo amoroso formado por ele, Joana e
Eduardo, e lança, de modo discreto dentro da cena rememorada, seus conceitos de
visão à época baseados na maneira de uma sociedade que procura sempre ver
demais:
Ao contrário de hoje, meu problema era ver demais. Via tudo o
que se passava à volta, nos mínimos detalhes. O visível era o real, e
o real era o visível. Conhecer e ver eram a mesma coisa. O que eu
não via, provavelmente não existia. Naquele momento eu via e
melhor não ter visto. Não ter visto Joana, não ter visto Eduardo
Kaufman. Desviava o olhar, mas os ombros nus de Joana
dançavam para o movimento das mãos de Eduardo. (ALMINO,
2008, p. 20).
Após descrever a fotografia, ele finaliza o texto com alguns conceitos
atualizados sobre o sentido da visão:
Fotografia não é parte de um filme, nem momento numa
sequência de fatos. É tempo de reflexão, observação e descoberta.
Diante de uma fotografia, é possível fechar os olhos, não para
deixar de ver, mas para ver mais. Por isso não surpreende que,
embora cego, continue vendo – vendo mais – aquela foto de Joana
e Eduardo Kaufman, que, com seus reflexos e planos superpostos,
é também a foto de um pesadelo. (ALMINO, 2008, p. 21).
Antes que avancemos mais na análise do romance, faz-se necessário
mergulharmos no século XVIII e refletirmos sobre o que Diderot nos diz em sua
Carta sobre os cegos para uso dos que veem, em que trata a questão do cego e a sua
maneira de perceber o mundo. Quando discute as maneiras como o cego de
nascença de Puisaux reage quanto às atividades do cotidiano, comparando-as com
as atividades daqueles que possuem a visão, Diderot o coloca em posição superior
ao contar como ele se conduz num mundo que a ele é oculto. As colocações sobre a
maneira perceptiva com que o cego analisa e reage a cada estímulo da realidade
são pontuadas sempre de modo conceitual pelo filósofo, pois, a cada indagação
feita sobre pormenores afetos aos que veem, respostas adequadas à realidade do
cego são dadas de modo a fazer com que percebamos a existência de um mundo
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imerso na escuridão que se adéqua, à sua maneira, ao mundo dos que veem.
Quando ao cego é perguntado o que são os olhos, sua resposta é clara e adequada a
sua realidade: “E o que são, em vosso parecer, os olhos?, disse-lhe o Sr. de… ‘São,
respondeu-lhe o cego, um órgão sobre o qual o ar produz o efeito de minha bengala
sobre minha mão’. Esta resposta nos fez cair das nuvens, enquanto nos
entreolhávamos com admiração” (DIDEROT, 1979, p. 29). Diderot também cita o
matemático cego Saunderson4 e o seu aparato para calcular e apreender formas
geométricas, estabelecendo assim um diálogo com o homem cego citado
anteriormente:
Concebe-se sem dificuldade que o uso de um dos sentidos pode
ser aperfeiçoado e acelerado pelas observações do outro; mas de
modo algum que haja entre suas funções uma dependência
essencial. Há seguramente nos corpos qualidades que jamais
perceberíamos sem o toque; é o tato que nos instrui acerca da
presença de certas modificações insensíveis aos olhos, que só as
percebem quando foram advertidos por este sentido; mas tais
serviços são recíprocos; e naqueles que possuem a vista mais fina
do que o tato, o primeiro desses sentidos é que instrui o outro da
existência de objetos e das modificações que lhe escapariam
devido à sua pequeneza. (DIDEROT, 1979, p. 24).
Entendemos que Diderot, assim como na tradição da antiguidade clássica,
reconhecia a sabedoria do cego como um sábio dentro da escuridão, valorizando
sua grandiosidade pelo uso apurado de seus sentidos e a superficialidade e vaidade
daqueles que veem, e veem demais. E, comparando o pensamento de Diderot à
análise feita por João Almino, temos o retrato do mundo contemporâneo, saturado
por imagens que procuram mostrar a realidade de forma perfeita, reproduzindo
todas as circunstâncias comuns ao homem, colocando-o num estado letárgico
diante do mundo, não enxergando mais o sentido visual como um caminho ao
imaginário da imagem e do mundo. Temos então novamente a questão do excesso
como fator destruidor, o excesso de luz que causa a cegueira da visão seletiva e a
atrofia dos demais sentidos.
João Almino constrói um personagem que se coloca dentro de um mundo
saturado pela questão mimética da imagem fotográfica e que reflete sobre tal
problemática. Na fotografia de número 56, Cadu discorre sobre o início de seus
problemas de visão. De modo breve, conta sua imersão no novo mundo que se
anunciava com a chegada da cegueira e analisa as particularidades desse novo
modo de ver:
Meus problemas de visão foram um divisor de águas radical em
minha vida e em minha fotografia. Mudei meus hábitos. Por
obrigação, passei a usufruir do repouso sistemático. Por
necessidade adquiri paciência. A doença me fez escapar dos maus
livros e foi pouco a pouco me retirando do mundo superficial e
apressado das imagens para o da reflexão. Com isso passei a ouvir
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com liberdade os ecos de meu próprio pensamento. (ALMINO,
2008, p. 221).
Ao novo modo de ver, que se apurava mais e mais com a chegada da
cegueira, somam-se as modificações no modo de Cadu se relacionar com a arte
fotográfica. A questão sensitiva e o uso diferenciado da memória passam a
permear a composição de suas fotografias. A partir daí temos um personagem que
não só vive momentos lançados ao longo de um álbum de fotografias, mas também
um criador de imagens através das emoções. Fazendo referência a uma citação de
Esaú e Jacó, de Machado de Assis, sempre dita por Guga, seu irmão, Cadu busca o
distanciamento das questões miméticas outorgadas à fotografia e se envereda pelo
caminho da construção sensorial da foto: “Com o tempo me convenci que a
verdade pode ser mais nítida no escuro da mais negra noite e divisei outro sentido
para aquela frase que Guga uma vez me pronunciara e que eu nunca esquecera: ‘O
olho do homem serve de fotografia ao invisível, como o ouvido serve de eco ao
silêncio’” (ALMINO, 2008, p. 226). Na fotografia de número 59, Cadu, bêbado e já
cambaleante, é atropelado por um carro. Neste momento ele é tomado de um
impulso que o leva a exercitar, no auge de uma forte emoção, sua nova prática
artística de composição da imagem fotográfica, fazendo referência a meios
surrealistas de produção artística, citando também a propriedade de a imagem
fotográfica nos mostrar detalhes da realidade não percebidos pelo olhar limitado e
desatento do homem:
(…) Um dia, cambaleante, fui atropelado por um carro. Jogado
contra a calçada, bati com a cabeça no meio-fio. Esbravejei contra
o motorista. Ainda com a máquina na mão, que eu teimava em
levar comigo, contando com minha sorte em não ser roubado,
tentava em vão fotografar o que não via, o carro que partia sem
me prestar socorro.
(…) Uma vez mais o improvável acontecia comigo: minha câmara
ficou intacta e, respondendo aos movimentos nervosos de meu
dedo indicador, registrou algumas cenas. Dizem que na fotografia
desfocada reproduzida acima, a de número 59, que prova a
hipótese de um inconsciente ótico, a luz é misteriosa, há um
movimento colorido em forma de esse [letra s] e uma plasticidade
de obra de arte. Uma foto mecânica, de enquadramento
adivinhado pelo olhar da máquina, um olhar que às vezes
surpreende, que pode ver mais do que o olhar humano e que
conseguiu fixar para sempre não apenas aquele exato momento,
mas também o que veio depois. (ALMINO, 2008, p. 227).
A alusão a um fotógrafo cego que exercita na escuridão o seu olhar emotivo
apurado por sentidos até então adormecidos pela luz toca em mais alguns pontos
essenciais para a compreensão da proposta de João Almino em O livro das emoções.
Primeiramente, quando o personagem é levado a formular uma nova instância
criativa diante da situação na qual se encontra, temos a contestação de seu
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afastamento da realidade e de sua imersão num momento próprio de processo
criativo por meio da fotografia. Então, por faltar-lhe a visão, tudo passa a ser
criação, afastando então o estigma da conceituação mimética que sempre
acompanhou a imagem fotográfica. Temos aí uma fuga ante o real e a submissão da
matéria ao imaginário, e a evidência tanto do personagem quanto do leitor na
criação de suas fotografias. Essas referências se baseiam nos dois manifestos
surrealistas, que sempre privilegiaram o distanciamento da racionalidade e a
imersão num mundo inconsciente que revela o ser por trás de sua aparente
realidade racional, dando ao homem um encontro consigo mesmo. E, em segundo
lugar, é provável que o autor tenha usado a figura de Evgen Bavcar5 para dar
ênfase à sua análise entre a luz da fotografia e a escuridão da cegueira.
Evgen Bavcar fundamenta-se, basicamente,
em função do conceito da memória conectado aos sentidos, não a
memória conceitualmente histórica e usualmente usada por nós.
Assim como as pessoas que enxergam possuem a memória visual
das coisas (muitas vezes tida como ‘memória fotográfica’), o cego
exercita a sua memória através do olfato, da audição, das
sensações de frio e quente, do sopro do vento sobre as coisas […]
e, principalmente através do tato, que pode tornar-se
extremamente refinado em decorrência de constantes exercícios.
(BRAUNE, 2000, p. 137).
Para Bavcar, não há suficiente prazer artístico somente com a impressão do
instantâneo fotográfico sobre o papel. Os negativos revelados são arranhados com
instrumentos pontiagudos, onde então procura desenhar ícones do mundo real
(estrelas, árvores, pássaros, et.), finalizando assim seu processo de composição
baseado no todo dos seus sentidos.
De igual maneira João Almino nos prepara semelhante caminho para que
possamos compreender como se dá o processo de formação de imagens para o
cego. Assim como Bavcar, Cadu não é um cego de nascença. Acompanhando a
forma fragmentada como de modo geral está disposta a narrativa, tanto a diarística
quanto o romance que é escrito dentro do próprio diário, observamos que tais
conceitos vão sendo lançados na prosa: “Minha cegueira me impede de ver
Carolina. Mas é como se a visse. Sua voz atualiza o rosto e o corpo que vi crescer.
Terá os mesmos cabelos lisos e escuros; os mesmos olhos negros e espertos; a
mesma tez branca” (ALMINO, 2008, p. 10). É como se os sentidos acompanhassem
as evoluções da realidade, como uma atualização que se manifesta no imaginário
do personagem. Ainda refletindo sobre a composição das imagens em O livro das
emoções, temos na fotografia de número 60 (Tateando Tânia) uma cena
semelhante à que se encontra no documentário Janela da Alma (2002), quando
Evgen Bavcar realiza a sessão fotográfica de uma atriz. Ele tateia seu rosto para
buscar “visualizar” sua fisionomia e o enquadramento. Parece que João Almino
reproduz no romance cena similar à do documentário, e a finaliza com mais um
conceito sobre fotografia lançado em prosa:
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Tânia testemunhou tudo. Foi compreensiva e – creio ser esta a
palavra certa – amorosa. Tendo sua fiel amizade, me parecia que a
vida rodava como um filme leve, sonho matutino que deixava luzir
um facho de realidade – a que já não iludia nem podia desapontar.
Quando ela veio me confortar no dia seguinte, pedi que posasse
para mim. Toquei com os dedos os seus cabelos, para ter certeza
do enquadramento de seu rosto, e os lábios, para medir a
expressão de seu sorriso. Se me dissessem que já não era bela, não
acreditaria, pois meu tato confirmava a imagem que meus olhos
haviam preservado intacta. A fotografia faz parar o tempo e pode
guardar o sentimento para que seja revivido na lembrança. A foto
acima, a de número 60, foi a última que fiz de Tânia. (ALMINO,
2008, p. 232).
Entender algo que foge aos conceitos visuais impostos por uma sociedade
calcada no olhar não parece tarefa fácil. O distanciamento daquilo que se entende
como racionalidade é o artifício necessário ao entendimento das fotografias de
Evgen Bavcar e das que são sugeridas (ou induzidas) por João Almino em O livro
das emoções:
A constante atualização e, portanto, a grande contemporaneidade
da fotografia encontra-se justamente nessa capacidade de ela
carregar, já impregnada em sua linguagem, toda uma carga
surrealista de oscilar constantemente entre o real e o imaginário,
em convivência mútua. (BRAUNE, 2000, p. 145).
O próprio princípio de funcionamento da câmera nos leva a pensar que,
para que o processo fotográfico seja realizado, torna-se necessária uma cegueira
momentânea da lente diante do objeto até que seja consumado o ato fotográfico.
Diferente de um cego, temos a visão carregada de vícios e regras que nos levam a
restringir significações excêntricas à nossa realidade racional. Muito se disse (e
ainda se diz) que o nascimento da fotografia tornaria a pintura livre do
referencialismo mimético. Mas o que está surgindo na cultura do olhar na
contemporaneidade que também liberta a fotografia? Esse é o grande paradoxo
que a envolve hoje: sua libertação dos valores miméticos em busca de um ciclo de
ressignificações contrapostos ao acúmulo visual que cega o observador pelo
excesso da luz acionada pelo click fácil e rápido da câmera digital, acumulando
incontáveis gigabytes em mídias fixas e removíveis. Não somente o que estamos
vendo, mas também “o que isto significa ou pode significar”, é o que nos propõe o
autor. É nessa porção de alteridade que, à luz das imagens fotográficas que ora
inundam a paisagem, o homem se encontra e nega-se a si mesmo.
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Notas
1 Colocar em questão as relações entre literatura e fotografia é necessariamente interrogar a
noção de realismo. A exploração das relações entre literatura e fotografia, fotografia e
realismo poderia igualmente fornecer a ocasião de desafiar a hegemonia do referencial ou,
pelo menos, de traçar os limites do reino do real. In: SHUSTERMAN, Ronald. 2008. p. 529.
Tradução nossa.
2
Logicamente que tais linhas têm relevante importância para o romance e podem conduzir a
interessantes estudos com importantes resultados no que diz respeito à escrita diarística.
3 Referência a Alfredo Volpi, pintor italiano radicado no Brasil, que desenvolveu um estilo
próprio de pintura dominado pela diversidade de cores e por um abstracionismo geométrico.
4 Nicholas Saunderson (1682-1739), um dos mais renomados cientistas cegos. Matemático, foi
professor em Cambridge e membro da Royal Society.
5 Doutor em Estética pela Sorbonne, filósofo e fotógrafo. Cego aos doze anos, deixa a Eslovênia
e radica-se na França, onde passa a desenvolver seu próprio modo de fotografar. Além de
filósofo da arte, é reconhecido mundialmente como importante artista contemporâneo. Foi
um dos protagonistas do documentário brasileiro Janela da alma, de João Jardim e Walter
Carvalho, lançado em 2002.
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JANELA DA ALMA. Direção: João Jardim e Walter Carvalho. Produção: Flávio R. Tambellini.
Intérpretes: José Saramago; Wim Wenders; Hermeto Pascoal; Antônio Cícero; Eugen Bavcar;
Oliver Sacks e outros. Rio de Janeiro: Copacabana Filmes, 2002. Legendas em português e
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SONTAG, Susan. Sobre a fotografia. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia
das Letras, 2004.
Para citar este artigo
APOLINÁRIO, Mauro Sergio. Memórias de um diário fotográfico: O Livro das Emoções.
Miguilim – Revista Eletrônica do Netlli, Crato, v. 4, n. 1, p. 18-32, jan.-abr. 2015.
O autor
Mauro Sergio Apolinário é doutorando em Poética pelo Programa de Pós
Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Este trabalho recebeu apoio/financiamento da CAPES

http://periodicos.urca.br/ojs/index.php/MigREN/article/viewFile/839/813[:fr]
Miguilim – Revista Eletrônica do Netlli | V. 4, N. 1, p. 18-32, jan.-jun. 2015

MEMÓRIAS DE UM DIÁRIO FOTOGRÁFICO: O LIVRO
DAS EMOÇÕES

MEMOIRS OF A DAILY PHOTO: THE BOOKS OF
EMOTIONS
Mauro Sergio APOLINÁRIO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO, Brasil
RESUMO | INDEXAÇÃO | TEXTO | REFERÊNCIAS | CITAR ESTE ARTIGO | O AUTOR
RECEBIDO EM 01/02/2015 ● APROVADO EM 04/08/2015

Miguilim – Revista Eletrônica do Netlli | V. 4, N. 1, p. 18-32, jan.-jun. 2015
Resumo
Este artigo busca trazer ao leitor algumas questões pertinentes ao estudo da fotografia como
questão literária. Se em nossos dias o uso da imagem fotográfica tomou proporções que
caminham para um tipo de cegueira motivada pelo exagero visual, é possível que na literatura
ainda se possa salvar o que se tem deixado de enxergar quando buscamos realizar aquilo que é
próprio do caminhar do homem no mundo: a arte. Assim, em O livro das emoções, de João
Almino, podemos ver acontecer o nascimento da imagem fotográfica no texto literário,
visualizando não imagens prontas no percurso que aqui nos dispomos, mas sim imagens vindas
das janelas da alma.
Entradas para indexação
KEYWORDS: Photography. Image. Realism.
PALAVRAS-CHAVE: Fotografia. Imagem. Realismo.
Texto integral
O autor, a fotografia e seus discursos
Poser la question des rapports entre littérature et photographie,
c’est forcément interroger la notion du réalisme. L’exploration des
rapports entre literature et photographie, photographie et realism
pourrait également fournir l’occasion de remettre en cause
l’hégémonie du référetiel, ou, tout au moins, de tracer les limites
au règne du reel.1
Ronald Shusterman
Desde o surgimento da fotografia, tornou-se muito comum na literatura a
quebra do domínio das paisagens naturais e culturais unicamente por meio da
escrita. As imagens técnicas deram novo rumo ao texto literário, principalmente
por propiciarem ao leitor uma nova interação de sentido com o discurso literário,
articulando texto e imagem em um único espaço narrativo, além da imersão nos
contextos artísticos, culturais e filosóficos que permeiam todo o universo da
imagem fotográfica. Numa linha que nos permite pensar a fotografia como algo
grande, uma inesgotável fonte de discursos e recursos muito maiores que a
generalização de “instante qualquer” extraído de um acontecimento real, João
Almino nos propõe em O livro das emoções muito mais que um simples romance
que trata da fotografia. Ninguém melhor que um escritor que também é fotógrafo
para criar uma narrativa que busque a união de dois universos aparentemente tão
diferentes: texto literário e imagem fotográfica.
O livro das emoções é um romance narrado em primeira pessoa, que conta
as memórias de um fotógrafo cego que decide escrever um livro baseado em seu
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antigo diário fotográfico, diário este que contém, na sua maioria, fotografias __ com
motivos pessoais e artísticos permeados por emoções e sensações __ feitas em
Brasília, onde se passa a trama. Com uma narrativa fragmentada e melancólica,
com vários personagens que acumulam suas próprias histórias à vida de Cadu,
protagonista do romance, O livro das emoções apresenta duas estruturas distintas
que se entrelaçam em seu desenvolvimento, criando uma espécie de diálogo
alternado que, mais à frente, faz com que os acontecimentos formem uma
estrutura coesa. A primeira estrutura é uma narrativa em formato de diário, escrita
pelo próprio Cadu, iniciada na madrugada de seis de Junho de 2022, quando ele
começa a registrar o intento de escrever um livro baseado em seu antigo diário
fotográfico, iniciado vinte anos antes, em 2002. Esse diário registra os momentos
vividos por um personagem já cego e com setenta anos ao longo da escritura de
suas memórias. O registro desses momentos é marcado pelo processo de
composição do livro, em que Cadu, ao escolher as fotografias que comporão o
acervo memorialístico, articula seus conceitos sobre a arte fotográfica, literatura,
seus amores, decepções e visão política, fazendo constantes releituras de sua vida
durante toda a narrativa. Ainda nessa parte é possível perceber que os
personagens que compõem a realidade de Cadu aparecem de repente, como se
suas aparições fossem relacionadas a flashes emanados de uma câmera fotográfica.
Tal impressão é dada devido ao modo fragmentado e inusitado com que os
acontecimentos vão sendo registrados, afinal, a memória é curta, falha, e os
acontecimentos são dispostos, dentro da contagem dos dias, de acordo com sua
importância emotiva para o narrador:
Noite de São João, 2 horas da manhã
Não somente no livro que pretendo escrever, mas também neste
novo diário, vou comentar o que for surgindo, na ordem em que for
surgindo. (ALMINO, 2008, p. 13).
A segunda estrutura apresenta o próprio texto memorialístico escrito pelo
personagem, O livro das emoções, com interessantes características que podemos
observar durante toda a narrativa. Por mais que João Almino tenha procurado
apresentar diferenças quanto ao estilo da letra impressa entre a estrutura do
diário e do texto memorialístico, logicamente para diferenciar o tipo de estrutura
na qual cada parte foi escrita, não deixou de encaixar o texto memorialístico dentro
do diário ao continuar a ordem cronológica dos dias, sempre entre colchetes acima
dos títulos de cada foto, como se aquele deste fizesse parte:
[29 de junho]
1. Geometria da vida
Quando Joana e eu descobrimos que não poderíamos ter filhos,
não nos submetemos a exames para saber de quem era o
problema.
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Tentávamos conviver apenas no prazer e nos desvencilhar das
obrigações, problemas e preocupações do dia-dia. (ALMINO, 2008,
p. 16).
Logicamente que, para o personagem, O livro das emoções diferencia-se do
seu diário, ficando para o leitor a tarefa de junção das partes para compor o
romance. Vale também destacar que a divisão do texto memorialístico segue como
um álbum de fotografias. As partes que o compõem são numeradas de 1 a 62, ou
seja, o total de fotografias escolhidas por Cadu para compor seu livro: “O livro que
pretendo escrever com base no meu velho diário fotográfico poderá ser
considerado um álbum de minhas memórias sentimentais e incompletas, de uma
época em que eu via, e via demais” (ALMINO, 2008, p. 15). Mas o interessante é
que, em todo o romance, não encontramos sequer uma imagem. A cada fotografia
apresentada são adicionados elementos que, numa realidade empírica, lembram o
modo pelo qual elas são dispostas num álbum cuidadosamente elaborado, com
datas, numeração e títulos próprios, cada uma simbolizando um momento na vida
do personagem, articuladas com os variados acontecimentos que dão vida à
narrativa.
De um modo geral, O livro das emoções apresenta em sua estrutura muitos
conceitos que nos remetem ao estudo da escrita diarística2 dentro de um romance
memorialístico, formando uma grande massa que é fortificada pala destreza de
articulação do autor ao lidar com manifestações neste momento tão usuais na
literatura brasileira. Mas não é a proposta deste estudo seguir pelas linhas do
diário e suas possibilidades e da mescla com a narrativa memorialística, mas sim o
processo de composição do romance em questão e o diálogo do texto literário com
a imagem fotográfica, aos textos a ver e às imagens a ler, um dueto
interessantíssimo que tem crescido no âmbito dos estudos e discussões sobre
literatura.
Para que possamos compreender o modo pelo qual se dá o acesso às
imagens propostas por João Almino no livro que é escrito por Cadu, seu
protagonista, e à junção das várias histórias evocadas por cada pequeno capítulo
que é disposto como uma fotografia – mas que não cumpre uma disposição linear
dos acontecimentos ao deixar de prender o leitor pela sequência dos episódios e
sim pela coleta de dados durante a fragmentada narrativa –, formando assim um
álbum fotográfico, temos que dialogar com conceitos próprios do estudo da
imagem fotográfica e como eles se dão no texto literário. Essas colocações estão, de
início, no diário mantido pelo personagem, que se estende de modo fragmentado
durante toda a narrativa. Primeiramente, nas linhas iniciais do romance, é colocada
uma pequena explanação em que o personagem parece conduzir o leitor durante a
leitura: “(…) Fotografar é ver com olho treinado; recortar e guardar o que se vê. Ao
disparar a máquina, as fotos ficaram gravadas na mente, como espelhos do que fui.
São instantes eternos, espalhados num museu íntimo” (ALMINO, 2008, p. 9). Assim,
é necessário que o leitor reflita sobre o modo como o fotógrafo interage com o
mundo na busca daquilo que procura trazer à vista do olhar desatento do
observador ao valorizar cada instante, cor, espaço e distribuição de elementos no
mesmo, e na maneira como tais imagens podem ser articuladas na memória ao
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mostrar um acontecimento passado, fonte então de inúmeras possibilidades de
releitura e significação de momentos vividos: “Suas fotos evocam hoje em mim
interpretações mais secas e realistas. Mais do que fosse possível vê-las, aquelas
fotografias se mostram na lembrança em riqueza de detalhes” (ALMINO, 2008, p.
10).
Ao observarmos o modo como foi elaborado O livro das emoções, deparamonos
com o detalhe da falta de imagens no corpo do texto memorialístico, já que o
mesmo propõe a disposição de um álbum fotográfico. Para que tal impressão
cumprisse o seu objetivo – induzir o leitor a formar imagens ao ler o texto literário
–, o autor se valeu do recurso retórico da ecfrase, utilizando a palavra escrita como
processo de formação de imagens. Praticamente ao final de cada uma das 69
fotografias (em que todas abrigam uma série de acontecimentos que culminam na
imagem que carrega o título do capítulo), o narrador descreve, além da fotografia,
o momento no qual elas foram feitas, assinalando os meios de composição de cada
uma e, geralmente, se referindo à numeração das mesmas como se
verdadeiramente estivessem entre o título proposto e o texto:
[1º de julho, tarde]
3. Noturno à beira-mar
(…)
Meu problema era que os outros, me considerando um fotógrafo
medíocre, não reconheciam o grande artista que vivia dentro de
mim. Era que Joana, me tomando por homem vulgar, era incapaz
de enxergar em mim o grande amante. Era que eu não conseguia
esquecer Eduardo Kaufman. Problema maior, que me afligia
naquela madrugada, era que pensava em ligar para ele para
cobrar o emprego oferecido.
“Você é mesmo um artista”, às vezes me diziam em tom de ironia.
Eu me sentia artista quando às quatro da madrugada separava
minhas poucas roupas, o equipamento fotográfico e o laptop;
quando arrumava a mala, olhava carteira de dinheiro vazia e
previa fome, doença e decadência. Sentia-me artista quando me
despedia do Rio com uma foto noturna, a de número 3, que colei
acima.
Naquela fotografia entre preto e cinza-escuro, a água desenha
curvas de espuma sobre a praia vazia. Percebem-se, em vista
panorâmica, as ondulações do mar e uma claridade difusa no
horizonte. Sobre o granulado da areia se veem marcas de passos
quase apagadas. Como as outras que tirei desde que começara a
me preparar para partir, aquela era uma foto de meu medo.
(ALMINO, 2008, p. 24).
Vemos que a descrição da imagem proposta leva o leitor a compor suas
próprias imagens fotográficas. A mediação com a linguagem verbal através da
ecfrase induz àquilo que não existe, assim como também pode descrever uma
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imagem real, como é feito pelo narrador ao comparar uma imagem sua com a
pintura A criação do mundo, de Gustave Courbet, evocando assim esta imagem
junto à sua construção mental. Ao ler o texto, o leitor experimenta a imersão num
mundo imaginário com leis próprias, mais ou menos parecidas com as leis do
mundo real, confrontando deste modo as informações fornecidas pelo texto com
seu repertório pessoal, cultural, “seus conhecimentos, suas concepções ideológicas,
suas convicções morais, éticas, religiosas, seus interesses econômicos,
profissionais, seus mitos” (KOSSOY, 1999, p. 44). Assim, cada fotografia
mentalizada terá forma e significados diferentes segundo quem a constrói:
Não é uma fotografia [a de número 1] para ser apreciada por suas
qualidades estéticas ou informação que transmite. Diante dela,
sou como um poeta que chora ao ler seu patético poema de amor e
sente pulsar nos versos o próprio corpo da amada, embora
consciente de que o mesmo poema pode parecer insosso aos
demais leitores. Ou então como o autor do romance autobiográfico
que, tendo revelado tanto de si e escrito com tanta emoção, não
sensibiliza quem se chateia com uma história sem trama. De fato,
o observador isento não percebe a coragem nem o desespero
presentes naquela fotografia. Cada foto é distinta segundo quem a
vê. Depois que disparei a objetiva, deixei passar vinte minutos e
subi ao apartamento. (ALMINO, 2008, p. 19).
Assim o autor coloca em evidência a permanente estada da humanidade na
caverna de Platão, ansiando pelas imagens da verdade. Ele então direciona seu foco
para a aprendizagem de um novo código, não meramente visual, mas também
emocional, sensitivo. Isso nos remete para as bases do Surrealismo, que, com sua
intenção de retirar o homem de uma alienação oriunda de uma sociedade calcada
na razão e em seus preceitos dogmáticos, procurou abrir espaços para que o
mesmo se voltasse para dentro de si e sua imaginação mergulhasse no
desconhecido, formando assim plenas possibilidades de criatividade. Diluídas
nossas certezas racionais, o autor aponta para uma outra realidade, permeada pela
ficção e pelo imaginário, desfazendo o vínculo do homem com o mundo empírico:
Numa parede, montaria três painéis gigantescos de fotos
geométricas, lembrando Volpis3 multicoloridos, uma floresta de
pêlo púbico, em várias formas: triangulares, retangulares,
losangulares, elípticas, góticas, barrocas, de bigodes breves ou de
pêlos exuberantes. Disparei a câmera milhares de vezes como
quem toma posse do objeto fotografado. Colecionei aquelas
formas como quem arquiva e cataloga experiências; como quem
quer preservar para si um pedaço do mundo. Para simplificar, eu
chamaria todas aquelas formas, até mesmo os retângulos e as
elipses, apenas de triângulos. (ALMINO, 2008, p. 76).
Miguilim – Revista Eletrônica do Netlli | V. 4, N. 1, p. 18-32, jan.-jun. 2015
Na representação escrita de imagens pessoais, a imagem vem ao leitor como
algo que está para ser observado, reconhecido e interpretado, dando a ele a
inserção em um campo de interpretação mediado por seu meio cultural e por suas
reações emocionais.
O sugestivo título do romance, O livro das emoções, remete-nos a instâncias
psicológicas que confirmam sua intenção. Não é um livro meramente proposto a
apresentar ao leitor as aflições de um personagem ora fotógrafo, ora teórico de sua
fotografia; ora amado, ora ignorado; ora racional ora irracional, o que ele sente ou
deixa de sentir. É um romance que nos leva a pensar nossa própria existência junto
a uma realidade ficcional que caminha para lugares desconhecidos e a modificá-los
conforme aquilo que em nós é despertado. Para Merleau-Ponty,
Estar emocionado é achar-se engajado em uma situação que não
se consegue enfrentar e que todavia não se quer abandonar. Antes
de aceitar o fracasso ou voltar atrás, o sujeito, nesse impasse
existencial, faz voar em pedaços o mundo objetivo que lhe barra
caminho e procura, em atos mágicos, uma satisfação simbólica.
(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 126).
Por estarmos tratando da construção de imagens fotográficas por meio da
ecfrase num romance que está disposto como um álbum de fotografias, mas que
não contém imagens, é interessante lembrarmos a influência que os nomes dados
às fotografias descritas pelo narrador exercem sobre a construção diegética
produzida pelo leitor. No romance, a legenda da fotografia traz uma numeração
seguida de expressões que nomeiam a foto. Deste modo, ao final dos capítulos em
formato de fotografias ecfrásticas, temos a descrição dos acontecimentos que
culminaram no instantâneo fotográfico, onde podemos tentar a associação da
imagem que formamos durante a leitura à legenda proposta pelo narrador:
[15 de julho, à tarde]
11. Quincas anunciando o perigo
Seria eu capaz de trair um amigo? pensava, andando ao lado de
Tânia. Ela parecia gostar de Paulo Marcos, ele confiava em mim…
Desviara meu olhar de Tânia para a paisagem e, por segundos,
meu pensamento era levado para uma zona de medo e prudência
por diabos apontando seus tridentes para mim. Mas eram só
alguns segundos. A culpa era dela, por ser tão graciosa… (…)
Quincas começou a latir, censurando minhas intenções. Depois se
calou. Parecia consentir. Segurei firme as mãos de Tânia, puxei-a
em minha direção, deslizei aas mãos pó suas costas e baixei-as por
suas curvas (…)
– O que você pensa que está fazendo?
Eu não pensava nada, a menos que confusão de ideias seja
pensamento. Queria e não queira. Quincas sentiu o perigo e latiu
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novamente. Fiquei aliviado. Aproveitei para fotografá-lo. É a foto
de número 11. Levanta a cabeça em direção à câmera e mostra os
dentes como uma fera. Decidi deixar as coisas naquele ponto, me
despedindo de Tânia com beijinhos no rosto. O sábio cão me
salvara de uma situação constrangedora, que teria atrapalhado
para sempre minha amizade com Paulo Marcos. (ALMINO, 2008,
p. 57).
Apesar da liberdade que cada leitor tem de formular suas próprias imagens,
baseadas em seu repertório emotivo e particular, ele é induzido a ter também
como referência o título de cada fotografia, sua legenda. Para Walter Benjamin, as
legendas são meios que salvam a imagem fotográfica de significados vagos, pois,
segundo ele, a “câmera se tornou cada vez menor, cada vez mais apta a fixar
imagens efêmeras e secretas, cujo efeito de choque paralisa o mecanismo
associativo do espectador” (BENJAMIN, 1994, p. 107). Por um lado, esta afirmação
de Benjamin é muito válida quando diz ainda que um fotógrafo que não sabe ler
suas próprias imagens não é tão diferente de um analfabeto. Logicamente, é
importante para o fotógrafo expor consciência naquilo que procura criar _ a
imagem fotográfica _
, mostrando ao observador sua intenção e interpretação de
mundo pelo artifício da legenda que atribui à foto. No entanto, mesmo sendo a
legenda um agente de relevância para interpretação da imagem, ao transferirmos
para ela toda a responsabilidade de significação, estaremos restringindo a
capacidade de criação poética da imagem, apegando diretamente o objeto à
palavra. Assim como Magritte negou na pintura Ceci n’est pas une pipe que o
desenho de um cachimbo nela contido era um cachimbo, mesmo que tivesse a
aparência de um, podemos negar que a imagem signifique justamente aquilo que a
legenda diz. À significação da imagem, além do que pode induzir a legenda, o
observador vai formulá-la de acordo com seus motivos próprios de criação. A
legenda serve então como mais um componente no processo de significação da
imagem, mesmo sendo esta uma imagem mental formada com o artifício da
ecfrase.
Fotografias de cegos para uso dos que veem: a imagem nas janelas da alma
Uma das grandes questões relevantes no que diz respeito à fotografia é a
sua relação com a luz. Escritura luminosa, originalmente fruto de um processo
físico-químico, a fotografia tem na luz a propriedade fundamental de sua
existência, assim como o oxigênio para o ser humano. Mas também pela luz
presenciamos o aniquilamento da imagem latente que, sobre o papel fotográfico,
espera na escuridão a condição necessária para torna-se patente. Esse paradoxo
tão interessante _ o excesso como fator destruidor _ perpassa de maneira silenciosa
a sociedade atual, que privilegia a visão mais que qualquer outro sentido ao buscar
na luz os meios para ver ainda mais, sem se dar conta de que a inundação de
imagens a que hoje é acometida pode torná-la cega. É como a cegueira apontada
por Saramago (1995) em seu Ensaio sobre a cegueira.
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Nestas condições, João Almino nos apresenta em seu romance análises do
excesso experimentado pela sociedade contemporânea ao lidar com a imagem. Ao
trazer um cego como protagonista de seu romance, principalmente quando este já
foi um homem que vivia em função da imagem fotográfica (um fotógrafo), o autor
parece buscar na escuridão da cegueira o meio preciso para se chegar à luz. Na
fotografia de número 2 (O homem que via demais), Cadu, após receber uma
proposta de Eduardo Kaufman – um político mau-caráter que faz parte de um dos
vários triângulos amorosos vividos pelo protagonista – para um projeto a respeito
de fotografias sobre Paulo Antônio, um falecido presidente do Brasil, reflete em
uma das situações vividas dentro do triângulo amoroso formado por ele, Joana e
Eduardo, e lança, de modo discreto dentro da cena rememorada, seus conceitos de
visão à época baseados na maneira de uma sociedade que procura sempre ver
demais:
Ao contrário de hoje, meu problema era ver demais. Via tudo o
que se passava à volta, nos mínimos detalhes. O visível era o real, e
o real era o visível. Conhecer e ver eram a mesma coisa. O que eu
não via, provavelmente não existia. Naquele momento eu via e
melhor não ter visto. Não ter visto Joana, não ter visto Eduardo
Kaufman. Desviava o olhar, mas os ombros nus de Joana
dançavam para o movimento das mãos de Eduardo. (ALMINO,
2008, p. 20).
Após descrever a fotografia, ele finaliza o texto com alguns conceitos
atualizados sobre o sentido da visão:
Fotografia não é parte de um filme, nem momento numa
sequência de fatos. É tempo de reflexão, observação e descoberta.
Diante de uma fotografia, é possível fechar os olhos, não para
deixar de ver, mas para ver mais. Por isso não surpreende que,
embora cego, continue vendo – vendo mais – aquela foto de Joana
e Eduardo Kaufman, que, com seus reflexos e planos superpostos,
é também a foto de um pesadelo. (ALMINO, 2008, p. 21).
Antes que avancemos mais na análise do romance, faz-se necessário
mergulharmos no século XVIII e refletirmos sobre o que Diderot nos diz em sua
Carta sobre os cegos para uso dos que veem, em que trata a questão do cego e a sua
maneira de perceber o mundo. Quando discute as maneiras como o cego de
nascença de Puisaux reage quanto às atividades do cotidiano, comparando-as com
as atividades daqueles que possuem a visão, Diderot o coloca em posição superior
ao contar como ele se conduz num mundo que a ele é oculto. As colocações sobre a
maneira perceptiva com que o cego analisa e reage a cada estímulo da realidade
são pontuadas sempre de modo conceitual pelo filósofo, pois, a cada indagação
feita sobre pormenores afetos aos que veem, respostas adequadas à realidade do
cego são dadas de modo a fazer com que percebamos a existência de um mundo
Miguilim – Revista Eletrônica do Netlli | V. 4, N. 1, p. 18-32, jan.-jun. 2015
imerso na escuridão que se adéqua, à sua maneira, ao mundo dos que veem.
Quando ao cego é perguntado o que são os olhos, sua resposta é clara e adequada a
sua realidade: “E o que são, em vosso parecer, os olhos?, disse-lhe o Sr. de… ‘São,
respondeu-lhe o cego, um órgão sobre o qual o ar produz o efeito de minha bengala
sobre minha mão’. Esta resposta nos fez cair das nuvens, enquanto nos
entreolhávamos com admiração” (DIDEROT, 1979, p. 29). Diderot também cita o
matemático cego Saunderson4 e o seu aparato para calcular e apreender formas
geométricas, estabelecendo assim um diálogo com o homem cego citado
anteriormente:
Concebe-se sem dificuldade que o uso de um dos sentidos pode
ser aperfeiçoado e acelerado pelas observações do outro; mas de
modo algum que haja entre suas funções uma dependência
essencial. Há seguramente nos corpos qualidades que jamais
perceberíamos sem o toque; é o tato que nos instrui acerca da
presença de certas modificações insensíveis aos olhos, que só as
percebem quando foram advertidos por este sentido; mas tais
serviços são recíprocos; e naqueles que possuem a vista mais fina
do que o tato, o primeiro desses sentidos é que instrui o outro da
existência de objetos e das modificações que lhe escapariam
devido à sua pequeneza. (DIDEROT, 1979, p. 24).
Entendemos que Diderot, assim como na tradição da antiguidade clássica,
reconhecia a sabedoria do cego como um sábio dentro da escuridão, valorizando
sua grandiosidade pelo uso apurado de seus sentidos e a superficialidade e vaidade
daqueles que veem, e veem demais. E, comparando o pensamento de Diderot à
análise feita por João Almino, temos o retrato do mundo contemporâneo, saturado
por imagens que procuram mostrar a realidade de forma perfeita, reproduzindo
todas as circunstâncias comuns ao homem, colocando-o num estado letárgico
diante do mundo, não enxergando mais o sentido visual como um caminho ao
imaginário da imagem e do mundo. Temos então novamente a questão do excesso
como fator destruidor, o excesso de luz que causa a cegueira da visão seletiva e a
atrofia dos demais sentidos.
João Almino constrói um personagem que se coloca dentro de um mundo
saturado pela questão mimética da imagem fotográfica e que reflete sobre tal
problemática. Na fotografia de número 56, Cadu discorre sobre o início de seus
problemas de visão. De modo breve, conta sua imersão no novo mundo que se
anunciava com a chegada da cegueira e analisa as particularidades desse novo
modo de ver:
Meus problemas de visão foram um divisor de águas radical em
minha vida e em minha fotografia. Mudei meus hábitos. Por
obrigação, passei a usufruir do repouso sistemático. Por
necessidade adquiri paciência. A doença me fez escapar dos maus
livros e foi pouco a pouco me retirando do mundo superficial e
apressado das imagens para o da reflexão. Com isso passei a ouvir
Miguilim – Revista Eletrônica do Netlli | V. 4, N. 1, p. 18-32, jan.-jun. 2015
com liberdade os ecos de meu próprio pensamento. (ALMINO,
2008, p. 221).
Ao novo modo de ver, que se apurava mais e mais com a chegada da
cegueira, somam-se as modificações no modo de Cadu se relacionar com a arte
fotográfica. A questão sensitiva e o uso diferenciado da memória passam a
permear a composição de suas fotografias. A partir daí temos um personagem que
não só vive momentos lançados ao longo de um álbum de fotografias, mas também
um criador de imagens através das emoções. Fazendo referência a uma citação de
Esaú e Jacó, de Machado de Assis, sempre dita por Guga, seu irmão, Cadu busca o
distanciamento das questões miméticas outorgadas à fotografia e se envereda pelo
caminho da construção sensorial da foto: “Com o tempo me convenci que a
verdade pode ser mais nítida no escuro da mais negra noite e divisei outro sentido
para aquela frase que Guga uma vez me pronunciara e que eu nunca esquecera: ‘O
olho do homem serve de fotografia ao invisível, como o ouvido serve de eco ao
silêncio’” (ALMINO, 2008, p. 226). Na fotografia de número 59, Cadu, bêbado e já
cambaleante, é atropelado por um carro. Neste momento ele é tomado de um
impulso que o leva a exercitar, no auge de uma forte emoção, sua nova prática
artística de composição da imagem fotográfica, fazendo referência a meios
surrealistas de produção artística, citando também a propriedade de a imagem
fotográfica nos mostrar detalhes da realidade não percebidos pelo olhar limitado e
desatento do homem:
(…) Um dia, cambaleante, fui atropelado por um carro. Jogado
contra a calçada, bati com a cabeça no meio-fio. Esbravejei contra
o motorista. Ainda com a máquina na mão, que eu teimava em
levar comigo, contando com minha sorte em não ser roubado,
tentava em vão fotografar o que não via, o carro que partia sem
me prestar socorro.
(…) Uma vez mais o improvável acontecia comigo: minha câmara
ficou intacta e, respondendo aos movimentos nervosos de meu
dedo indicador, registrou algumas cenas. Dizem que na fotografia
desfocada reproduzida acima, a de número 59, que prova a
hipótese de um inconsciente ótico, a luz é misteriosa, há um
movimento colorido em forma de esse [letra s] e uma plasticidade
de obra de arte. Uma foto mecânica, de enquadramento
adivinhado pelo olhar da máquina, um olhar que às vezes
surpreende, que pode ver mais do que o olhar humano e que
conseguiu fixar para sempre não apenas aquele exato momento,
mas também o que veio depois. (ALMINO, 2008, p. 227).
A alusão a um fotógrafo cego que exercita na escuridão o seu olhar emotivo
apurado por sentidos até então adormecidos pela luz toca em mais alguns pontos
essenciais para a compreensão da proposta de João Almino em O livro das emoções.
Primeiramente, quando o personagem é levado a formular uma nova instância
criativa diante da situação na qual se encontra, temos a contestação de seu
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afastamento da realidade e de sua imersão num momento próprio de processo
criativo por meio da fotografia. Então, por faltar-lhe a visão, tudo passa a ser
criação, afastando então o estigma da conceituação mimética que sempre
acompanhou a imagem fotográfica. Temos aí uma fuga ante o real e a submissão da
matéria ao imaginário, e a evidência tanto do personagem quanto do leitor na
criação de suas fotografias. Essas referências se baseiam nos dois manifestos
surrealistas, que sempre privilegiaram o distanciamento da racionalidade e a
imersão num mundo inconsciente que revela o ser por trás de sua aparente
realidade racional, dando ao homem um encontro consigo mesmo. E, em segundo
lugar, é provável que o autor tenha usado a figura de Evgen Bavcar5 para dar
ênfase à sua análise entre a luz da fotografia e a escuridão da cegueira.
Evgen Bavcar fundamenta-se, basicamente,
em função do conceito da memória conectado aos sentidos, não a
memória conceitualmente histórica e usualmente usada por nós.
Assim como as pessoas que enxergam possuem a memória visual
das coisas (muitas vezes tida como ‘memória fotográfica’), o cego
exercita a sua memória através do olfato, da audição, das
sensações de frio e quente, do sopro do vento sobre as coisas […]
e, principalmente através do tato, que pode tornar-se
extremamente refinado em decorrência de constantes exercícios.
(BRAUNE, 2000, p. 137).
Para Bavcar, não há suficiente prazer artístico somente com a impressão do
instantâneo fotográfico sobre o papel. Os negativos revelados são arranhados com
instrumentos pontiagudos, onde então procura desenhar ícones do mundo real
(estrelas, árvores, pássaros, et.), finalizando assim seu processo de composição
baseado no todo dos seus sentidos.
De igual maneira João Almino nos prepara semelhante caminho para que
possamos compreender como se dá o processo de formação de imagens para o
cego. Assim como Bavcar, Cadu não é um cego de nascença. Acompanhando a
forma fragmentada como de modo geral está disposta a narrativa, tanto a diarística
quanto o romance que é escrito dentro do próprio diário, observamos que tais
conceitos vão sendo lançados na prosa: “Minha cegueira me impede de ver
Carolina. Mas é como se a visse. Sua voz atualiza o rosto e o corpo que vi crescer.
Terá os mesmos cabelos lisos e escuros; os mesmos olhos negros e espertos; a
mesma tez branca” (ALMINO, 2008, p. 10). É como se os sentidos acompanhassem
as evoluções da realidade, como uma atualização que se manifesta no imaginário
do personagem. Ainda refletindo sobre a composição das imagens em O livro das
emoções, temos na fotografia de número 60 (Tateando Tânia) uma cena
semelhante à que se encontra no documentário Janela da Alma (2002), quando
Evgen Bavcar realiza a sessão fotográfica de uma atriz. Ele tateia seu rosto para
buscar “visualizar” sua fisionomia e o enquadramento. Parece que João Almino
reproduz no romance cena similar à do documentário, e a finaliza com mais um
conceito sobre fotografia lançado em prosa:
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Tânia testemunhou tudo. Foi compreensiva e – creio ser esta a
palavra certa – amorosa. Tendo sua fiel amizade, me parecia que a
vida rodava como um filme leve, sonho matutino que deixava luzir
um facho de realidade – a que já não iludia nem podia desapontar.
Quando ela veio me confortar no dia seguinte, pedi que posasse
para mim. Toquei com os dedos os seus cabelos, para ter certeza
do enquadramento de seu rosto, e os lábios, para medir a
expressão de seu sorriso. Se me dissessem que já não era bela, não
acreditaria, pois meu tato confirmava a imagem que meus olhos
haviam preservado intacta. A fotografia faz parar o tempo e pode
guardar o sentimento para que seja revivido na lembrança. A foto
acima, a de número 60, foi a última que fiz de Tânia. (ALMINO,
2008, p. 232).
Entender algo que foge aos conceitos visuais impostos por uma sociedade
calcada no olhar não parece tarefa fácil. O distanciamento daquilo que se entende
como racionalidade é o artifício necessário ao entendimento das fotografias de
Evgen Bavcar e das que são sugeridas (ou induzidas) por João Almino em O livro
das emoções:
A constante atualização e, portanto, a grande contemporaneidade
da fotografia encontra-se justamente nessa capacidade de ela
carregar, já impregnada em sua linguagem, toda uma carga
surrealista de oscilar constantemente entre o real e o imaginário,
em convivência mútua. (BRAUNE, 2000, p. 145).
O próprio princípio de funcionamento da câmera nos leva a pensar que,
para que o processo fotográfico seja realizado, torna-se necessária uma cegueira
momentânea da lente diante do objeto até que seja consumado o ato fotográfico.
Diferente de um cego, temos a visão carregada de vícios e regras que nos levam a
restringir significações excêntricas à nossa realidade racional. Muito se disse (e
ainda se diz) que o nascimento da fotografia tornaria a pintura livre do
referencialismo mimético. Mas o que está surgindo na cultura do olhar na
contemporaneidade que também liberta a fotografia? Esse é o grande paradoxo
que a envolve hoje: sua libertação dos valores miméticos em busca de um ciclo de
ressignificações contrapostos ao acúmulo visual que cega o observador pelo
excesso da luz acionada pelo click fácil e rápido da câmera digital, acumulando
incontáveis gigabytes em mídias fixas e removíveis. Não somente o que estamos
vendo, mas também “o que isto significa ou pode significar”, é o que nos propõe o
autor. É nessa porção de alteridade que, à luz das imagens fotográficas que ora
inundam a paisagem, o homem se encontra e nega-se a si mesmo.
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Notas
1 Colocar em questão as relações entre literatura e fotografia é necessariamente interrogar a
noção de realismo. A exploração das relações entre literatura e fotografia, fotografia e
realismo poderia igualmente fornecer a ocasião de desafiar a hegemonia do referencial ou,
pelo menos, de traçar os limites do reino do real. In: SHUSTERMAN, Ronald. 2008. p. 529.
Tradução nossa.
2
Logicamente que tais linhas têm relevante importância para o romance e podem conduzir a
interessantes estudos com importantes resultados no que diz respeito à escrita diarística.
3 Referência a Alfredo Volpi, pintor italiano radicado no Brasil, que desenvolveu um estilo
próprio de pintura dominado pela diversidade de cores e por um abstracionismo geométrico.
4 Nicholas Saunderson (1682-1739), um dos mais renomados cientistas cegos. Matemático, foi
professor em Cambridge e membro da Royal Society.
5 Doutor em Estética pela Sorbonne, filósofo e fotógrafo. Cego aos doze anos, deixa a Eslovênia
e radica-se na França, onde passa a desenvolver seu próprio modo de fotografar. Além de
filósofo da arte, é reconhecido mundialmente como importante artista contemporâneo. Foi
um dos protagonistas do documentário brasileiro Janela da alma, de João Jardim e Walter
Carvalho, lançado em 2002.
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Oliver Sacks e outros. Rio de Janeiro: Copacabana Filmes, 2002. Legendas em português e
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Para citar este artigo
APOLINÁRIO, Mauro Sergio. Memórias de um diário fotográfico: O Livro das Emoções.
Miguilim – Revista Eletrônica do Netlli, Crato, v. 4, n. 1, p. 18-32, jan.-abr. 2015.
O autor
Mauro Sergio Apolinário é doutorando em Poética pelo Programa de Pós
Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Este trabalho recebeu apoio/financiamento da CAPES

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