O livro das perguntas, sobre Enigmas da Primavera de João Almino. O Globo, Suplemento Prosa. Por José Castello

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O GLOBO, Suplemento PROSA, sábado, 16 de maio de 2015

O livro das perguntas

José Castello

Como dar conta do presente, se nele estamos mergulhados? É desse projeto impossível que João Almino arranca o perturbador “Enigmas da primavera”, seu novo romance (Record). Tomada de empréstimo ao poeta andaluz Antonio Machado, uma das epígrafes do livro sintetiza nossa hesitação diante do real: “La primavera há venido./ Nadie sabe cómo há sido”. Espelho ambíguo, Almino expõe como feridas, mas também como tônicos, perguntas que não sabemos responder. Perguntas, ou enigmas?

O romance se ergue sobre paradoxos insuportáveis: tolerância e intolerância, o impossível e o necessário, a utopia e o real. Majnun, o jovem protagonista, atravessa a história do Islã, visita Granada, sofre de amor pela difusa Laila, percorre meio mundo até se encontrar, em 20 de junho de 2013, na manifestação dos indignados em Brasília. Não chegou, porém, a uma resposta. Chegou a uma pergunta.

Conheceu Laila _ quinze anos mais velha _ em 2011. Quer escrever uma novela sobre a Granada medieval e sua resistência ao domínio cristão. Quer avançar _ mas para onde? “O que ainda não sabia era que o seu tempo podia mudar de feição”. Majnun, o apaixonado, combate a indiferença _ sentimento torpe em que ele mesmo se vê retido. E do qual só acordará, muito depois, quando quase se afogar em uma piscina da Alhambra. Sempre sonhou em viver na Alhambra _ o palácio e fortaleza que, na Idade Média, sediou o Reino de Granada. Mas, quando chega até ela, não a suporta. Tem uma vertigem _ que o lança no coração partido de seu tempo.

À noite, Majnun tem sonhos enigmáticos, enquanto sua vida se dissolve na tríade contemporânea: um laptop, um iPhone e um iPad. Navega sem destino _ ou preso a um destino que não pode decifrar. “Minha vida é feita de dúvidas”, admite. “Não sei o que quero ser”. Majnun é um espelho para os jovens indignados que, sem um projeto fixo, mas cheios de recusas, tomaram as ruas do Brasil no ano de 2013. Submerge em um tempo sem desafios. Quer fazer _ mas o que? Agita-se _ mas para que?

A ausência de um rumo o lança no vazio. Resiste agarrando-se à imaginação. Intui Majnun que seu fracasso não é apenas seu, mas de seu tempo. Contudo, não sabe como reagir. Diante da tela do computador, perde-se _ como tantos garotos que conhecemos _ em um emaranhado de desvios, máscaras, divagações. Tranca-se numa caixa de imagens. O real não se interessa por ele. Ele o recusa. Até quando?

Ampara-se, precariamente, na figura dos avôs. Busca referências _ mas o presente o trai. A paixão cega por Laila, que é casada, o leva a outro paradoxo: depois de uma briga desastrada, já não sabe dizer se matou, ou não, o marido traído. A amiga Carmen o acusa de sonhar demais. “Pare de sonhar e comece a agir”. Ele se sente, de fato, asfixiado pela indiferença. Mas agir como? Agir para quê? Retrai-se: “O mundo tem excesso de imagens, de palavras e de informação, não acha? Eu quero vender silêncio”. Será isso, contudo, possível?

A razão lhe manda esquecer Laila, mas o coração diz o contrário. Ao avô Dario, um de seus guias, confidencia: “Eu quero lutar por grandes causas, só não sei quais”. Um dia, um velho de olhos claros e de barba branca lhe sugere: “Mude o seu olhar e o mundo mudará. Cada elemento que está aqui pode ser arrumado de outra forma, visto de outro jeito”. O velho lhe passa, então, uma carta de Tarô. Ele lê: “A ação é preferível à renúncia”. Perplexo, espera uma pista, mas o ancião se limita a dizer: “A ação é superior à inação. Não importa o resultado, desde que a gente faça o que deve”. Mas fazer o que? A afirmação engole a si mesma. Como agir, se não sabe por onde começar?

Enfurna-se no Google em busca de uma resposta. Intoxica-se de respostas, mas nenhuma delas lhe abre um caminho. Com duas amigas, Carmen e Suzana, parte enfim para a Espanha. Quer lutar, mas tudo o leva a parar. Quer parar, mas uma grande agitação o sacode. Chega a Madri em 15 de agosto de 2011, véspera da abertura da Jornada Mundial da Juventude. Não é católico _ mas segue as cerimônias. Uma canção de Rihanna ecoa ao longe, lembrando que o mundo contemporâneo é feito de enigmas.

Os indignados espanhóis tomam as ruas de Madri. Como em uma hipnose, as redes sociais os arrastam para a Porta do Sol. Majnun quer participar desse movimento isento de ideologias. Mas é justamente a falta de sentido que o perturba. Quer mudar o mundo, que participar de grandes acontecimentos _ mas quais? “Indignai-vos”, ressoa a palavra de ordem inspirada na célebre sentença de Stéphane Hessel, que tenta costurar o que talvez não se possa costurar. Quando se dá conta, ele que foi a Madri para a jornada católica, está em uma manifestação contra o papa. Quando Carmen lhe pergunta o que afinal deseja da vida, balbucia: “Eu defendo o direito ao ócio e ao salário, não ao emprego e ao trabalho”. Distantes vozes anarquistas reverberam. O presente já não cabe dentro de si.

Quando enfim chega à Alhambra, em um relance, acha que vê a face do avô Dario nas águas de uma piscina. Tem uma vertigem e quase se afoga. É erguido por um desconhecido. Delira. “O impossível é necessário”, Majnun balbucia. Comenta o narrador: “O impossível era o que existia de mais permanente, um farol inatingível a indicar a direção que devia tomar”. O enigma é sua direção. Como suportar isso?

De volta a Brasília para o enterro do avô Dario, o rapaz se afunda na tristeza. Encontra-se enfim com Laila, mas ela o rejeita. Decide entregar-se à polícia, simula um papel que não é seu _ mas, em vez de prendê-lo (Majnun precisa de uma âncora para viver, qualquer âncora), o tomam por delirante, ou por drogado. Volta a andar sem rumo pela cidade. Perde-se na esperança de se encontrar.

“Majnun ia pulando de pensamento em pensamento, apreensão em apreensão. Sua vida irrequieta estava em constante movimento. Sempre que queria fixá-la, compreendê-la, ela lhe escapava”. Compreende, enfim, que seus amigos virtuais são bolhas, que “estouram e desaparecem”. Um ano e meio depois, está envolvido no grande protesto de junho de 2013. Não tem uma resposta _ nem sabe ainda o que busca _ mas carrega um enigma. Tem muitas perguntas e nelas se ampara.

http://blogs.oglobo.globo.com/jose-castello/post/o-livro-das-perguntas-566573.html

O GLOBO, Suplemento PROSA, sábado, 16 de maio de 2015

O livro das perguntas

José Castello

Como dar conta do presente, se nele estamos mergulhados? É desse projeto impossível que João Almino arranca o perturbador “Enigmas da primavera”, seu novo romance (Record). Tomada de empréstimo ao poeta andaluz Antonio Machado, uma das epígrafes do livro sintetiza nossa hesitação diante do real: “La primavera há venido./ Nadie sabe cómo há sido”. Espelho ambíguo, Almino expõe como feridas, mas também como tônicos, perguntas que não sabemos responder. Perguntas, ou enigmas?

O romance se ergue sobre paradoxos insuportáveis: tolerância e intolerância, o impossível e o necessário, a utopia e o real. Majnun, o jovem protagonista, atravessa a história do Islã, visita Granada, sofre de amor pela difusa Laila, percorre meio mundo até se encontrar, em 20 de junho de 2013, na manifestação dos indignados em Brasília. Não chegou, porém, a uma resposta. Chegou a uma pergunta.

Conheceu Laila _ quinze anos mais velha _ em 2011. Quer escrever uma novela sobre a Granada medieval e sua resistência ao domínio cristão. Quer avançar _ mas para onde? “O que ainda não sabia era que o seu tempo podia mudar de feição”. Majnun, o apaixonado, combate a indiferença _ sentimento torpe em que ele mesmo se vê retido. E do qual só acordará, muito depois, quando quase se afogar em uma piscina da Alhambra. Sempre sonhou em viver na Alhambra _ o palácio e fortaleza que, na Idade Média, sediou o Reino de Granada. Mas, quando chega até ela, não a suporta. Tem uma vertigem _ que o lança no coração partido de seu tempo.

À noite, Majnun tem sonhos enigmáticos, enquanto sua vida se dissolve na tríade contemporânea: um laptop, um iPhone e um iPad. Navega sem destino _ ou preso a um destino que não pode decifrar. “Minha vida é feita de dúvidas”, admite. “Não sei o que quero ser”. Majnun é um espelho para os jovens indignados que, sem um projeto fixo, mas cheios de recusas, tomaram as ruas do Brasil no ano de 2013. Submerge em um tempo sem desafios. Quer fazer _ mas o que? Agita-se _ mas para que?

A ausência de um rumo o lança no vazio. Resiste agarrando-se à imaginação. Intui Majnun que seu fracasso não é apenas seu, mas de seu tempo. Contudo, não sabe como reagir. Diante da tela do computador, perde-se _ como tantos garotos que conhecemos _ em um emaranhado de desvios, máscaras, divagações. Tranca-se numa caixa de imagens. O real não se interessa por ele. Ele o recusa. Até quando?

Ampara-se, precariamente, na figura dos avôs. Busca referências _ mas o presente o trai. A paixão cega por Laila, que é casada, o leva a outro paradoxo: depois de uma briga desastrada, já não sabe dizer se matou, ou não, o marido traído. A amiga Carmen o acusa de sonhar demais. “Pare de sonhar e comece a agir”. Ele se sente, de fato, asfixiado pela indiferença. Mas agir como? Agir para quê? Retrai-se: “O mundo tem excesso de imagens, de palavras e de informação, não acha? Eu quero vender silêncio”. Será isso, contudo, possível?

A razão lhe manda esquecer Laila, mas o coração diz o contrário. Ao avô Dario, um de seus guias, confidencia: “Eu quero lutar por grandes causas, só não sei quais”. Um dia, um velho de olhos claros e de barba branca lhe sugere: “Mude o seu olhar e o mundo mudará. Cada elemento que está aqui pode ser arrumado de outra forma, visto de outro jeito”. O velho lhe passa, então, uma carta de Tarô. Ele lê: “A ação é preferível à renúncia”. Perplexo, espera uma pista, mas o ancião se limita a dizer: “A ação é superior à inação. Não importa o resultado, desde que a gente faça o que deve”. Mas fazer o que? A afirmação engole a si mesma. Como agir, se não sabe por onde começar?

Enfurna-se no Google em busca de uma resposta. Intoxica-se de respostas, mas nenhuma delas lhe abre um caminho. Com duas amigas, Carmen e Suzana, parte enfim para a Espanha. Quer lutar, mas tudo o leva a parar. Quer parar, mas uma grande agitação o sacode. Chega a Madri em 15 de agosto de 2011, véspera da abertura da Jornada Mundial da Juventude. Não é católico _ mas segue as cerimônias. Uma canção de Rihanna ecoa ao longe, lembrando que o mundo contemporâneo é feito de enigmas.

Os indignados espanhóis tomam as ruas de Madri. Como em uma hipnose, as redes sociais os arrastam para a Porta do Sol. Majnun quer participar desse movimento isento de ideologias. Mas é justamente a falta de sentido que o perturba. Quer mudar o mundo, que participar de grandes acontecimentos _ mas quais? “Indignai-vos”, ressoa a palavra de ordem inspirada na célebre sentença de Stéphane Hessel, que tenta costurar o que talvez não se possa costurar. Quando se dá conta, ele que foi a Madri para a jornada católica, está em uma manifestação contra o papa. Quando Carmen lhe pergunta o que afinal deseja da vida, balbucia: “Eu defendo o direito ao ócio e ao salário, não ao emprego e ao trabalho”. Distantes vozes anarquistas reverberam. O presente já não cabe dentro de si.

Quando enfim chega à Alhambra, em um relance, acha que vê a face do avô Dario nas águas de uma piscina. Tem uma vertigem e quase se afoga. É erguido por um desconhecido. Delira. “O impossível é necessário”, Majnun balbucia. Comenta o narrador: “O impossível era o que existia de mais permanente, um farol inatingível a indicar a direção que devia tomar”. O enigma é sua direção. Como suportar isso?

De volta a Brasília para o enterro do avô Dario, o rapaz se afunda na tristeza. Encontra-se enfim com Laila, mas ela o rejeita. Decide entregar-se à polícia, simula um papel que não é seu _ mas, em vez de prendê-lo (Majnun precisa de uma âncora para viver, qualquer âncora), o tomam por delirante, ou por drogado. Volta a andar sem rumo pela cidade. Perde-se na esperança de se encontrar.

“Majnun ia pulando de pensamento em pensamento, apreensão em apreensão. Sua vida irrequieta estava em constante movimento. Sempre que queria fixá-la, compreendê-la, ela lhe escapava”. Compreende, enfim, que seus amigos virtuais são bolhas, que “estouram e desaparecem”. Um ano e meio depois, está envolvido no grande protesto de junho de 2013. Não tem uma resposta _ nem sabe ainda o que busca _ mas carrega um enigma. Tem muitas perguntas e nelas se ampara.

http://blogs.oglobo.globo.com/jose-castello/post/o-livro-das-perguntas-566573.html

O GLOBO, Suplemento PROSA, sábado, 16 de maio de 2015

O livro das perguntas

José Castello

Como dar conta do presente, se nele estamos mergulhados? É desse projeto impossível que João Almino arranca o perturbador “Enigmas da primavera”, seu novo romance (Record). Tomada de empréstimo ao poeta andaluz Antonio Machado, uma das epígrafes do livro sintetiza nossa hesitação diante do real: “La primavera há venido./ Nadie sabe cómo há sido”. Espelho ambíguo, Almino expõe como feridas, mas também como tônicos, perguntas que não sabemos responder. Perguntas, ou enigmas?

O romance se ergue sobre paradoxos insuportáveis: tolerância e intolerância, o impossível e o necessário, a utopia e o real. Majnun, o jovem protagonista, atravessa a história do Islã, visita Granada, sofre de amor pela difusa Laila, percorre meio mundo até se encontrar, em 20 de junho de 2013, na manifestação dos indignados em Brasília. Não chegou, porém, a uma resposta. Chegou a uma pergunta.

Conheceu Laila _ quinze anos mais velha _ em 2011. Quer escrever uma novela sobre a Granada medieval e sua resistência ao domínio cristão. Quer avançar _ mas para onde? “O que ainda não sabia era que o seu tempo podia mudar de feição”. Majnun, o apaixonado, combate a indiferença _ sentimento torpe em que ele mesmo se vê retido. E do qual só acordará, muito depois, quando quase se afogar em uma piscina da Alhambra. Sempre sonhou em viver na Alhambra _ o palácio e fortaleza que, na Idade Média, sediou o Reino de Granada. Mas, quando chega até ela, não a suporta. Tem uma vertigem _ que o lança no coração partido de seu tempo.

À noite, Majnun tem sonhos enigmáticos, enquanto sua vida se dissolve na tríade contemporânea: um laptop, um iPhone e um iPad. Navega sem destino _ ou preso a um destino que não pode decifrar. “Minha vida é feita de dúvidas”, admite. “Não sei o que quero ser”. Majnun é um espelho para os jovens indignados que, sem um projeto fixo, mas cheios de recusas, tomaram as ruas do Brasil no ano de 2013. Submerge em um tempo sem desafios. Quer fazer _ mas o que? Agita-se _ mas para que?

A ausência de um rumo o lança no vazio. Resiste agarrando-se à imaginação. Intui Majnun que seu fracasso não é apenas seu, mas de seu tempo. Contudo, não sabe como reagir. Diante da tela do computador, perde-se _ como tantos garotos que conhecemos _ em um emaranhado de desvios, máscaras, divagações. Tranca-se numa caixa de imagens. O real não se interessa por ele. Ele o recusa. Até quando?

Ampara-se, precariamente, na figura dos avôs. Busca referências _ mas o presente o trai. A paixão cega por Laila, que é casada, o leva a outro paradoxo: depois de uma briga desastrada, já não sabe dizer se matou, ou não, o marido traído. A amiga Carmen o acusa de sonhar demais. “Pare de sonhar e comece a agir”. Ele se sente, de fato, asfixiado pela indiferença. Mas agir como? Agir para quê? Retrai-se: “O mundo tem excesso de imagens, de palavras e de informação, não acha? Eu quero vender silêncio”. Será isso, contudo, possível?

A razão lhe manda esquecer Laila, mas o coração diz o contrário. Ao avô Dario, um de seus guias, confidencia: “Eu quero lutar por grandes causas, só não sei quais”. Um dia, um velho de olhos claros e de barba branca lhe sugere: “Mude o seu olhar e o mundo mudará. Cada elemento que está aqui pode ser arrumado de outra forma, visto de outro jeito”. O velho lhe passa, então, uma carta de Tarô. Ele lê: “A ação é preferível à renúncia”. Perplexo, espera uma pista, mas o ancião se limita a dizer: “A ação é superior à inação. Não importa o resultado, desde que a gente faça o que deve”. Mas fazer o que? A afirmação engole a si mesma. Como agir, se não sabe por onde começar?

Enfurna-se no Google em busca de uma resposta. Intoxica-se de respostas, mas nenhuma delas lhe abre um caminho. Com duas amigas, Carmen e Suzana, parte enfim para a Espanha. Quer lutar, mas tudo o leva a parar. Quer parar, mas uma grande agitação o sacode. Chega a Madri em 15 de agosto de 2011, véspera da abertura da Jornada Mundial da Juventude. Não é católico _ mas segue as cerimônias. Uma canção de Rihanna ecoa ao longe, lembrando que o mundo contemporâneo é feito de enigmas.

Os indignados espanhóis tomam as ruas de Madri. Como em uma hipnose, as redes sociais os arrastam para a Porta do Sol. Majnun quer participar desse movimento isento de ideologias. Mas é justamente a falta de sentido que o perturba. Quer mudar o mundo, que participar de grandes acontecimentos _ mas quais? “Indignai-vos”, ressoa a palavra de ordem inspirada na célebre sentença de Stéphane Hessel, que tenta costurar o que talvez não se possa costurar. Quando se dá conta, ele que foi a Madri para a jornada católica, está em uma manifestação contra o papa. Quando Carmen lhe pergunta o que afinal deseja da vida, balbucia: “Eu defendo o direito ao ócio e ao salário, não ao emprego e ao trabalho”. Distantes vozes anarquistas reverberam. O presente já não cabe dentro de si.

Quando enfim chega à Alhambra, em um relance, acha que vê a face do avô Dario nas águas de uma piscina. Tem uma vertigem e quase se afoga. É erguido por um desconhecido. Delira. “O impossível é necessário”, Majnun balbucia. Comenta o narrador: “O impossível era o que existia de mais permanente, um farol inatingível a indicar a direção que devia tomar”. O enigma é sua direção. Como suportar isso?

De volta a Brasília para o enterro do avô Dario, o rapaz se afunda na tristeza. Encontra-se enfim com Laila, mas ela o rejeita. Decide entregar-se à polícia, simula um papel que não é seu _ mas, em vez de prendê-lo (Majnun precisa de uma âncora para viver, qualquer âncora), o tomam por delirante, ou por drogado. Volta a andar sem rumo pela cidade. Perde-se na esperança de se encontrar.

“Majnun ia pulando de pensamento em pensamento, apreensão em apreensão. Sua vida irrequieta estava em constante movimento. Sempre que queria fixá-la, compreendê-la, ela lhe escapava”. Compreende, enfim, que seus amigos virtuais são bolhas, que “estouram e desaparecem”. Um ano e meio depois, está envolvido no grande protesto de junho de 2013. Não tem uma resposta _ nem sabe ainda o que busca _ mas carrega um enigma. Tem muitas perguntas e nelas se ampara.

http://blogs.oglobo.globo.com/jose-castello/post/o-livro-das-perguntas-566573.html

O GLOBO, Suplemento PROSA, sábado, 16 de maio de 2015

O livro das perguntas

José Castello

Como dar conta do presente, se nele estamos mergulhados? É desse projeto impossível que João Almino arranca o perturbador “Enigmas da primavera”, seu novo romance (Record). Tomada de empréstimo ao poeta andaluz Antonio Machado, uma das epígrafes do livro sintetiza nossa hesitação diante do real: “La primavera há venido./ Nadie sabe cómo há sido”. Espelho ambíguo, Almino expõe como feridas, mas também como tônicos, perguntas que não sabemos responder. Perguntas, ou enigmas?

O romance se ergue sobre paradoxos insuportáveis: tolerância e intolerância, o impossível e o necessário, a utopia e o real. Majnun, o jovem protagonista, atravessa a história do Islã, visita Granada, sofre de amor pela difusa Laila, percorre meio mundo até se encontrar, em 20 de junho de 2013, na manifestação dos indignados em Brasília. Não chegou, porém, a uma resposta. Chegou a uma pergunta.

Conheceu Laila _ quinze anos mais velha _ em 2011. Quer escrever uma novela sobre a Granada medieval e sua resistência ao domínio cristão. Quer avançar _ mas para onde? “O que ainda não sabia era que o seu tempo podia mudar de feição”. Majnun, o apaixonado, combate a indiferença _ sentimento torpe em que ele mesmo se vê retido. E do qual só acordará, muito depois, quando quase se afogar em uma piscina da Alhambra. Sempre sonhou em viver na Alhambra _ o palácio e fortaleza que, na Idade Média, sediou o Reino de Granada. Mas, quando chega até ela, não a suporta. Tem uma vertigem _ que o lança no coração partido de seu tempo.

À noite, Majnun tem sonhos enigmáticos, enquanto sua vida se dissolve na tríade contemporânea: um laptop, um iPhone e um iPad. Navega sem destino _ ou preso a um destino que não pode decifrar. “Minha vida é feita de dúvidas”, admite. “Não sei o que quero ser”. Majnun é um espelho para os jovens indignados que, sem um projeto fixo, mas cheios de recusas, tomaram as ruas do Brasil no ano de 2013. Submerge em um tempo sem desafios. Quer fazer _ mas o que? Agita-se _ mas para que?

A ausência de um rumo o lança no vazio. Resiste agarrando-se à imaginação. Intui Majnun que seu fracasso não é apenas seu, mas de seu tempo. Contudo, não sabe como reagir. Diante da tela do computador, perde-se _ como tantos garotos que conhecemos _ em um emaranhado de desvios, máscaras, divagações. Tranca-se numa caixa de imagens. O real não se interessa por ele. Ele o recusa. Até quando?

Ampara-se, precariamente, na figura dos avôs. Busca referências _ mas o presente o trai. A paixão cega por Laila, que é casada, o leva a outro paradoxo: depois de uma briga desastrada, já não sabe dizer se matou, ou não, o marido traído. A amiga Carmen o acusa de sonhar demais. “Pare de sonhar e comece a agir”. Ele se sente, de fato, asfixiado pela indiferença. Mas agir como? Agir para quê? Retrai-se: “O mundo tem excesso de imagens, de palavras e de informação, não acha? Eu quero vender silêncio”. Será isso, contudo, possível?

A razão lhe manda esquecer Laila, mas o coração diz o contrário. Ao avô Dario, um de seus guias, confidencia: “Eu quero lutar por grandes causas, só não sei quais”. Um dia, um velho de olhos claros e de barba branca lhe sugere: “Mude o seu olhar e o mundo mudará. Cada elemento que está aqui pode ser arrumado de outra forma, visto de outro jeito”. O velho lhe passa, então, uma carta de Tarô. Ele lê: “A ação é preferível à renúncia”. Perplexo, espera uma pista, mas o ancião se limita a dizer: “A ação é superior à inação. Não importa o resultado, desde que a gente faça o que deve”. Mas fazer o que? A afirmação engole a si mesma. Como agir, se não sabe por onde começar?

Enfurna-se no Google em busca de uma resposta. Intoxica-se de respostas, mas nenhuma delas lhe abre um caminho. Com duas amigas, Carmen e Suzana, parte enfim para a Espanha. Quer lutar, mas tudo o leva a parar. Quer parar, mas uma grande agitação o sacode. Chega a Madri em 15 de agosto de 2011, véspera da abertura da Jornada Mundial da Juventude. Não é católico _ mas segue as cerimônias. Uma canção de Rihanna ecoa ao longe, lembrando que o mundo contemporâneo é feito de enigmas.

Os indignados espanhóis tomam as ruas de Madri. Como em uma hipnose, as redes sociais os arrastam para a Porta do Sol. Majnun quer participar desse movimento isento de ideologias. Mas é justamente a falta de sentido que o perturba. Quer mudar o mundo, que participar de grandes acontecimentos _ mas quais? “Indignai-vos”, ressoa a palavra de ordem inspirada na célebre sentença de Stéphane Hessel, que tenta costurar o que talvez não se possa costurar. Quando se dá conta, ele que foi a Madri para a jornada católica, está em uma manifestação contra o papa. Quando Carmen lhe pergunta o que afinal deseja da vida, balbucia: “Eu defendo o direito ao ócio e ao salário, não ao emprego e ao trabalho”. Distantes vozes anarquistas reverberam. O presente já não cabe dentro de si.

Quando enfim chega à Alhambra, em um relance, acha que vê a face do avô Dario nas águas de uma piscina. Tem uma vertigem e quase se afoga. É erguido por um desconhecido. Delira. “O impossível é necessário”, Majnun balbucia. Comenta o narrador: “O impossível era o que existia de mais permanente, um farol inatingível a indicar a direção que devia tomar”. O enigma é sua direção. Como suportar isso?

De volta a Brasília para o enterro do avô Dario, o rapaz se afunda na tristeza. Encontra-se enfim com Laila, mas ela o rejeita. Decide entregar-se à polícia, simula um papel que não é seu _ mas, em vez de prendê-lo (Majnun precisa de uma âncora para viver, qualquer âncora), o tomam por delirante, ou por drogado. Volta a andar sem rumo pela cidade. Perde-se na esperança de se encontrar.

“Majnun ia pulando de pensamento em pensamento, apreensão em apreensão. Sua vida irrequieta estava em constante movimento. Sempre que queria fixá-la, compreendê-la, ela lhe escapava”. Compreende, enfim, que seus amigos virtuais são bolhas, que “estouram e desaparecem”. Um ano e meio depois, está envolvido no grande protesto de junho de 2013. Não tem uma resposta _ nem sabe ainda o que busca _ mas carrega um enigma. Tem muitas perguntas e nelas se ampara.

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