Uma crônica e uma entrevista a propósito de Enigmas da Primavera, Revista Pessoa, por Ieda Magri

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REVISTA PESSOA
Seção Literatura Brasileira Hoje
500 autores brasileiros contemporâneos
15 de maio de 2015

Uma crônica e uma entrevista

Escrito por Ieda Magri

Literatura Brasileira Hoje, projeto idealizado por João Cezar de Castro Rocha, teve o seu segundo encontro na UERJ com o escritor e diplomata João Almino.
O registro foi feito por Ieda Magri, que, além de uma crônica do evento, realizou uma breve entrevista com o convidado.

Quando encontro um escritor num bar, não tem problema. É só um escritor, um professor, um jornalista, um bolsista, um diretor de teatro, um ator. Ninguém precisa pensar, muito menos falar, aquele epíteto meio cafajeste: “o escritor brasileiro”. O problema começa quando encontro o escritor brasileiro num lugar em que ele é chamado de escritor brasileiro. Dá uma coceira na língua e eu quero perguntar coisas, ou então quero só dizer alguma coisa, sem perguntar nada, enquanto a cabeça fica colocando tudo nuns mapas em que aparecem os escritores e as escritoras, os estados brasileiros, as pequenas livrarias do interior, a falta de livrarias no interior, nos bairros, as traduções na América Latina, nos Estados Unidos e na Europa, os prêmios literários. Me aparecem de repente, todos os livros do autor enfileirados numa prateleira ou sobre uma mesa. Eu vejo o escritor brasileiro de pijamas, às vezes de cuecas, às vezes de calcinhas sobre uma mesa com vários cordões que saem de suas mãos e manipulam seus personagens e, às vezes, mais raro, vejo os personagens manipulando o autor. O problema cresce muito quando sobre essa mesma mesa, pequena, uma mesa de cozinha, ou de livraria, eu vejo todos os autores brasileiros juntos, uns com os dois pés bem folgados outros com um espaço bem pequenininho e os pés grandões. E todos dançando. O que importa é que todos dançam.

Quando o escritor brasileiro começou a falar eu comecei a escrever tudo o que ele falava. Até porque ele era novo pra mim. Vejam bem: 500 autores brasileiros contemporâneos, entre eles algumas autoras brasileiras contemporâneas, todos dançando na mesa. Você os lê um de cada vez. Dessa vez era a vez do João Almino. Eu o conhecia dos textos sobre a literatura brasileira, numa publicação que saiu na Argentina mas que eu tinha encontrado no México quando estava tentando encontrar os autores brasileiros contemporâneos que dançavam lá. Mas não conhecia o quinteto de Brasília — que não é a banda que toca para os escritores dançarem sobre a mesa, não — só o novíssimo Enigmas da Primavera, que li inteiro numa segunda meio chuvosa, não mais de primavera.

Foi assim. Acabo de começar a dar aulas na Uerj. Só li dois livros do João Almino e todos os textos do site. Meus alunos nunca ouviram falar de João Almino. Por isso mesmo, a conversa seria boa. E foi. João, embora a sala fosse uma profusão de Joãos, a começar pelo idealizador do projeto, ele era o João. A conversa divertida. O quinteto de Brasília não foi ideia dele. Um romance foi se juntando ao outro a posteriori. Agora, como toda banda de rock, pensei, o repertório quis sair do formato do disco. E começou outro quinteto ou entrou na era solo. “O quinteto de Brasília só existe porque tem Brasília. Nunca seria o quinteto do Rio ou de São Paulo”. [E eu lembrei dos 500 autores brasileiros dançando sobre a mesa]. Ele diz: “A cidade não tem nenhuma importância. Mas há duas razões principais para o quinteto ser de Brasília: 1. uma cidade única; 2. uma cidade como outra qualquer.” Está falado.

João Almino tem, parece, um jeito especial de lidar com aqueles cordões que ligam suas mãos às mãos dos seus personagens: “O que importa num romance são os personagens” e “Eu sei tudo sobre eles antes mesmo de começar a escrever.” Pausa. “Claro que eles mudam do começo ao final do livro e de um livro pro outro. Eu tenho um plano para cada romance, mas estou disposto a reescrever, a rever este projeto. Às vezes os personagens exigem outras direções, outras pesquisas. A mim também há uma certa surpresa.” Escrever, claro, é sempre uma aventura. E João Almino parece que entra num armário com porta falsa ou que entra numa floresta ou que simplesmente para de dançar e fica sério. Agora já tem só ele sobre a mesa: “Escrever é sempre uma aventura. Caminhamos por um caminho que imaginamos, mas o ato de criar exige que abramos o caminho, que enveredemos pela mata virgem.” Eu estava certa sobre a tal mata. “É isso que refaz tudo.”

E então todo mundo começa a se coçar e o microfone vai: mas João Almino, fala mais desses personagens dos seus livros. Mas João Almino, e essas mulheres? Mas João Almino, e os modelos, que modelos estão escondidos nos seus personagens? João Almino, você falou que as memórias dos seus personagens são sempre artificias, escritas com mapas, bússolas, livros de histórias, que você não é aquela criança e nem aquele adulto que se chama João. Só que elas se tornam vivas e parecem próprias. Próprias a você. Tanto suas que as pessoas querem conversar com você como se você tivesse vivido aquelas coisas vividas pelos seus personagens… e nem nunca morou lá. Explique isso, por favor. João Almino, e a herança literária? E a dicção machadiana? João Almino?

Bom, o autor não se deixa despir. Não, não. Só a gravata. Ele conta, mas não entrega. Ele diz, mas tergiversa. Claro, o autor não é seu personagem. Os personagens, ele insiste, não são meras projeções de si mesmo. Ele disse desde o início. Mas a plateia desconfia. Vai ver é porque leram O autor mente muito, do Carlos Sussekind e do Francisco Daudt da Veiga. Mas o escritor é muito generoso. E ele nos dá pequenas peças de cada um dos seus livros e ainda diz “Eu tinha um projeto muito ambicioso que não coincidiu com o que vim a fazer.” Conto ou não conto? Ele contou. Tem a ver com os personagens, claro. E a dança sobre a mesa recomeça. 500 autores fazendo a literatura brasileira hoje. Entre eles algumas escritoras. E todos aqueles personagens. Todos sobre a mesa de madeira, numa livraria. Ou numa cozinha.

Quatro questões para João Almino

1. Em Enigmas da Primavera você parece colocar em perspectiva um presente que aponta para um movimento na inércia —inclusive na montagem do livro, que nos primeiros capítulos apresenta personagens “em um tempo agitado e sem rumo” e que no final como que encontram um rumo nas manifestações de junho de 2013. Como na sua criação sobre o presente, você acredita em alguma “outra política”, como diz Majnun, impulsionada pelas manifestações ou esse acontecimento estaria, como lembra o avô de Majnun, Sérgio, mais para a famosa frase do romance de Lampedusa: “é preciso que tudo mude para que tudo fique como está”?

João Almino. Pessoalmente acho que “uma outra política” não conseguiria ser consequente se não encontrasse formas de institucionalização dentro do sistema representativo. Mas minha opinião pessoal pouco ou nada importa para o romance. As opiniões dos personagens, estas sim, podem servir à reflexão do leitor. Um dos muitos tópicos que podem ser objeto dessa reflexão é o do sentido de manifestações espontâneas, impulsionadas pelas mídias sociais e ocorridas em várias partes do mundo num determinado período histórico. O romance não compete com o jornal nem com o trabalho do historiador. O que ele pretende é apenas captar as pulsações de um momento, descrever as paixões dos personagens, entender as emoções que estão por trás de suas ações, tentando captar tendências por vezes divergentes e os conflitos existentes. Se dele pudéssemos extrair uma opinião ou uma tese, deveria ser substituído por um artigo de jornal ou uma dissertação. O tempo poderá ou não dizer se um ou outro personagem tem razão, à medida que o texto de ficção vai ganhando novos significados com suas releituras.

2. Você acredita que o fanatismo, considerado pelo outro avô, Dario, “um mal”, posto que baseado na fé, “que não exige justificativas nem tolera argumento”, venha justamente da falta de rumo, da falta pelo que lutar, falta vivida pela juventude do presente? (Mas não haveria também muitos motivos só que não mais para uma luta, mas muitas lutas? Não estariam, talvez, se travando muitas lutas menos visíveis?)

João Almino. O fanatismo é muitas vezes resultado de certezas, certezas que podem ser cegas, como na fé, que de fato não exige prova nem dá espaço para o argumento do outro. A desorientação do mundo contemporâneo pode ser criativa, produtiva, em muitas direções, assim como levar ao desespero ou à busca de saídas heroicas, que deem uma sensação de sentido e de firmeza. Nem todas as causas se equivalem: existem as que podem ajudar na construção de um mundo melhor (algumas delas, como você diz, embrionárias ou pouco visíveis), assim como existem outras, fáceis e ilusórias, que contribuem para a barbárie.

3. Muito se falou sempre, ou pelo menos desde a conquista da autonomia da literatura, na modernidade, de uma vocação da poesia para a resistência e para o debate democrático, inclusive colocando sempre novas questões para o próprio conceito de democracia. Você pensa que o romance participa dessa ideia de uma “democracia por vir” ou seria outra a natureza do romance no presente?

João Almino. Acredito, sim, que a boa literatura é sempre uma literatura de resistência, que se faz à margem do que é esperado e das fórmulas já conhecidas. O texto literário surge para interrogar, para explorar territórios virgens, para expandir fronteiras, como a própria democracia, que deixa de sê-lo, se não se expande e não se renova, e a liberdade, que não deve se aprisionar sequer no seu próprio conceito.

4. Como diplomata e como professor você já viveu e ensinou no México, nos EUA e em outros países, tendo até mesmo escrito um livro importante que dá notícia do pensamento e da literatura brasileira para o México (Tendencias de la literatura brasileña). Nessa sua vivência em outros países, como percebe neles a circulação e o conhecimento da nossa literatura? Ou não há mesmo literatura brasileira fora do Brasil, posto que circula pouco ou nada?

João Almino. O livro que você cita foi publicado na Argentina, mas de fato foi distribuído no México e noutros países de língua espanhola. Reúne ensaios literários que produzi circunstancialmente, quando fui convidado aqui e ali, como escritor, para participar de algum encontro ou contribuir para algum livro ou revista. No Brasil teve o título de Escrita em contraponto.Quanto a sua pergunta, creio que tem crescido a projeção da literatura brasileira no exterior, mas existe ainda um longo caminho a percorrer. Ela continua sendo relativamente desconhecida. Basta dizer que nossos grandes autores, como é caso de Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Bandeira, Drummond ou Cabral, continuam sendo desconhecidos fora do Brasil, havendo muito poucas exceções a esta triste regra, como é a de Clarice Lispector.

Curadoria de João Cezar de Castro Rocha.

Ieda Magri é professora de Teoria Literária na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e autora dos livros Olhos de bicho (Rocco, 2013) e Tinha uma coisa aqui (7Letras, 2007).

http://www.revistapessoa.com/2015/05/500-autores-brasileiros-contemporaneos/

REVISTA PESSOA
Seção Literatura Brasileira Hoje
500 autores brasileiros contemporâneos
15 de maio de 2015

Uma crônica e uma entrevista

Escrito por Ieda Magri

Literatura Brasileira Hoje, projeto idealizado por João Cezar de Castro Rocha, teve o seu segundo encontro na UERJ com o escritor e diplomata João Almino.
O registro foi feito por Ieda Magri, que, além de uma crônica do evento, realizou uma breve entrevista com o convidado.

Quando encontro um escritor num bar, não tem problema. É só um escritor, um professor, um jornalista, um bolsista, um diretor de teatro, um ator. Ninguém precisa pensar, muito menos falar, aquele epíteto meio cafajeste: “o escritor brasileiro”. O problema começa quando encontro o escritor brasileiro num lugar em que ele é chamado de escritor brasileiro. Dá uma coceira na língua e eu quero perguntar coisas, ou então quero só dizer alguma coisa, sem perguntar nada, enquanto a cabeça fica colocando tudo nuns mapas em que aparecem os escritores e as escritoras, os estados brasileiros, as pequenas livrarias do interior, a falta de livrarias no interior, nos bairros, as traduções na América Latina, nos Estados Unidos e na Europa, os prêmios literários. Me aparecem de repente, todos os livros do autor enfileirados numa prateleira ou sobre uma mesa. Eu vejo o escritor brasileiro de pijamas, às vezes de cuecas, às vezes de calcinhas sobre uma mesa com vários cordões que saem de suas mãos e manipulam seus personagens e, às vezes, mais raro, vejo os personagens manipulando o autor. O problema cresce muito quando sobre essa mesma mesa, pequena, uma mesa de cozinha, ou de livraria, eu vejo todos os autores brasileiros juntos, uns com os dois pés bem folgados outros com um espaço bem pequenininho e os pés grandões. E todos dançando. O que importa é que todos dançam.

Quando o escritor brasileiro começou a falar eu comecei a escrever tudo o que ele falava. Até porque ele era novo pra mim. Vejam bem: 500 autores brasileiros contemporâneos, entre eles algumas autoras brasileiras contemporâneas, todos dançando na mesa. Você os lê um de cada vez. Dessa vez era a vez do João Almino. Eu o conhecia dos textos sobre a literatura brasileira, numa publicação que saiu na Argentina mas que eu tinha encontrado no México quando estava tentando encontrar os autores brasileiros contemporâneos que dançavam lá. Mas não conhecia o quinteto de Brasília — que não é a banda que toca para os escritores dançarem sobre a mesa, não — só o novíssimo Enigmas da Primavera, que li inteiro numa segunda meio chuvosa, não mais de primavera.

Foi assim. Acabo de começar a dar aulas na Uerj. Só li dois livros do João Almino e todos os textos do site. Meus alunos nunca ouviram falar de João Almino. Por isso mesmo, a conversa seria boa. E foi. João, embora a sala fosse uma profusão de Joãos, a começar pelo idealizador do projeto, ele era o João. A conversa divertida. O quinteto de Brasília não foi ideia dele. Um romance foi se juntando ao outro a posteriori. Agora, como toda banda de rock, pensei, o repertório quis sair do formato do disco. E começou outro quinteto ou entrou na era solo. “O quinteto de Brasília só existe porque tem Brasília. Nunca seria o quinteto do Rio ou de São Paulo”. [E eu lembrei dos 500 autores brasileiros dançando sobre a mesa]. Ele diz: “A cidade não tem nenhuma importância. Mas há duas razões principais para o quinteto ser de Brasília: 1. uma cidade única; 2. uma cidade como outra qualquer.” Está falado.

João Almino tem, parece, um jeito especial de lidar com aqueles cordões que ligam suas mãos às mãos dos seus personagens: “O que importa num romance são os personagens” e “Eu sei tudo sobre eles antes mesmo de começar a escrever.” Pausa. “Claro que eles mudam do começo ao final do livro e de um livro pro outro. Eu tenho um plano para cada romance, mas estou disposto a reescrever, a rever este projeto. Às vezes os personagens exigem outras direções, outras pesquisas. A mim também há uma certa surpresa.” Escrever, claro, é sempre uma aventura. E João Almino parece que entra num armário com porta falsa ou que entra numa floresta ou que simplesmente para de dançar e fica sério. Agora já tem só ele sobre a mesa: “Escrever é sempre uma aventura. Caminhamos por um caminho que imaginamos, mas o ato de criar exige que abramos o caminho, que enveredemos pela mata virgem.” Eu estava certa sobre a tal mata. “É isso que refaz tudo.”

E então todo mundo começa a se coçar e o microfone vai: mas João Almino, fala mais desses personagens dos seus livros. Mas João Almino, e essas mulheres? Mas João Almino, e os modelos, que modelos estão escondidos nos seus personagens? João Almino, você falou que as memórias dos seus personagens são sempre artificias, escritas com mapas, bússolas, livros de histórias, que você não é aquela criança e nem aquele adulto que se chama João. Só que elas se tornam vivas e parecem próprias. Próprias a você. Tanto suas que as pessoas querem conversar com você como se você tivesse vivido aquelas coisas vividas pelos seus personagens… e nem nunca morou lá. Explique isso, por favor. João Almino, e a herança literária? E a dicção machadiana? João Almino?

Bom, o autor não se deixa despir. Não, não. Só a gravata. Ele conta, mas não entrega. Ele diz, mas tergiversa. Claro, o autor não é seu personagem. Os personagens, ele insiste, não são meras projeções de si mesmo. Ele disse desde o início. Mas a plateia desconfia. Vai ver é porque leram O autor mente muito, do Carlos Sussekind e do Francisco Daudt da Veiga. Mas o escritor é muito generoso. E ele nos dá pequenas peças de cada um dos seus livros e ainda diz “Eu tinha um projeto muito ambicioso que não coincidiu com o que vim a fazer.” Conto ou não conto? Ele contou. Tem a ver com os personagens, claro. E a dança sobre a mesa recomeça. 500 autores fazendo a literatura brasileira hoje. Entre eles algumas escritoras. E todos aqueles personagens. Todos sobre a mesa de madeira, numa livraria. Ou numa cozinha.

Quatro questões para João Almino

1. Em Enigmas da Primavera você parece colocar em perspectiva um presente que aponta para um movimento na inércia —inclusive na montagem do livro, que nos primeiros capítulos apresenta personagens “em um tempo agitado e sem rumo” e que no final como que encontram um rumo nas manifestações de junho de 2013. Como na sua criação sobre o presente, você acredita em alguma “outra política”, como diz Majnun, impulsionada pelas manifestações ou esse acontecimento estaria, como lembra o avô de Majnun, Sérgio, mais para a famosa frase do romance de Lampedusa: “é preciso que tudo mude para que tudo fique como está”?

João Almino. Pessoalmente acho que “uma outra política” não conseguiria ser consequente se não encontrasse formas de institucionalização dentro do sistema representativo. Mas minha opinião pessoal pouco ou nada importa para o romance. As opiniões dos personagens, estas sim, podem servir à reflexão do leitor. Um dos muitos tópicos que podem ser objeto dessa reflexão é o do sentido de manifestações espontâneas, impulsionadas pelas mídias sociais e ocorridas em várias partes do mundo num determinado período histórico. O romance não compete com o jornal nem com o trabalho do historiador. O que ele pretende é apenas captar as pulsações de um momento, descrever as paixões dos personagens, entender as emoções que estão por trás de suas ações, tentando captar tendências por vezes divergentes e os conflitos existentes. Se dele pudéssemos extrair uma opinião ou uma tese, deveria ser substituído por um artigo de jornal ou uma dissertação. O tempo poderá ou não dizer se um ou outro personagem tem razão, à medida que o texto de ficção vai ganhando novos significados com suas releituras.

2. Você acredita que o fanatismo, considerado pelo outro avô, Dario, “um mal”, posto que baseado na fé, “que não exige justificativas nem tolera argumento”, venha justamente da falta de rumo, da falta pelo que lutar, falta vivida pela juventude do presente? (Mas não haveria também muitos motivos só que não mais para uma luta, mas muitas lutas? Não estariam, talvez, se travando muitas lutas menos visíveis?)

João Almino. O fanatismo é muitas vezes resultado de certezas, certezas que podem ser cegas, como na fé, que de fato não exige prova nem dá espaço para o argumento do outro. A desorientação do mundo contemporâneo pode ser criativa, produtiva, em muitas direções, assim como levar ao desespero ou à busca de saídas heroicas, que deem uma sensação de sentido e de firmeza. Nem todas as causas se equivalem: existem as que podem ajudar na construção de um mundo melhor (algumas delas, como você diz, embrionárias ou pouco visíveis), assim como existem outras, fáceis e ilusórias, que contribuem para a barbárie.

3. Muito se falou sempre, ou pelo menos desde a conquista da autonomia da literatura, na modernidade, de uma vocação da poesia para a resistência e para o debate democrático, inclusive colocando sempre novas questões para o próprio conceito de democracia. Você pensa que o romance participa dessa ideia de uma “democracia por vir” ou seria outra a natureza do romance no presente?

João Almino. Acredito, sim, que a boa literatura é sempre uma literatura de resistência, que se faz à margem do que é esperado e das fórmulas já conhecidas. O texto literário surge para interrogar, para explorar territórios virgens, para expandir fronteiras, como a própria democracia, que deixa de sê-lo, se não se expande e não se renova, e a liberdade, que não deve se aprisionar sequer no seu próprio conceito.

4. Como diplomata e como professor você já viveu e ensinou no México, nos EUA e em outros países, tendo até mesmo escrito um livro importante que dá notícia do pensamento e da literatura brasileira para o México (Tendencias de la literatura brasileña). Nessa sua vivência em outros países, como percebe neles a circulação e o conhecimento da nossa literatura? Ou não há mesmo literatura brasileira fora do Brasil, posto que circula pouco ou nada?

João Almino. O livro que você cita foi publicado na Argentina, mas de fato foi distribuído no México e noutros países de língua espanhola. Reúne ensaios literários que produzi circunstancialmente, quando fui convidado aqui e ali, como escritor, para participar de algum encontro ou contribuir para algum livro ou revista. No Brasil teve o título de Escrita em contraponto.Quanto a sua pergunta, creio que tem crescido a projeção da literatura brasileira no exterior, mas existe ainda um longo caminho a percorrer. Ela continua sendo relativamente desconhecida. Basta dizer que nossos grandes autores, como é caso de Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Bandeira, Drummond ou Cabral, continuam sendo desconhecidos fora do Brasil, havendo muito poucas exceções a esta triste regra, como é a de Clarice Lispector.

Curadoria de João Cezar de Castro Rocha.

Ieda Magri é professora de Teoria Literária na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e autora dos livros Olhos de bicho (Rocco, 2013) e Tinha uma coisa aqui (7Letras, 2007).

http://www.revistapessoa.com/2015/05/500-autores-brasileiros-contemporaneos/

REVISTA PESSOA
Seção Literatura Brasileira Hoje
500 autores brasileiros contemporâneos
15 de maio de 2015

Uma crônica e uma entrevista

Escrito por Ieda Magri

Literatura Brasileira Hoje, projeto idealizado por João Cezar de Castro Rocha, teve o seu segundo encontro na UERJ com o escritor e diplomata João Almino.
O registro foi feito por Ieda Magri, que, além de uma crônica do evento, realizou uma breve entrevista com o convidado.

Quando encontro um escritor num bar, não tem problema. É só um escritor, um professor, um jornalista, um bolsista, um diretor de teatro, um ator. Ninguém precisa pensar, muito menos falar, aquele epíteto meio cafajeste: “o escritor brasileiro”. O problema começa quando encontro o escritor brasileiro num lugar em que ele é chamado de escritor brasileiro. Dá uma coceira na língua e eu quero perguntar coisas, ou então quero só dizer alguma coisa, sem perguntar nada, enquanto a cabeça fica colocando tudo nuns mapas em que aparecem os escritores e as escritoras, os estados brasileiros, as pequenas livrarias do interior, a falta de livrarias no interior, nos bairros, as traduções na América Latina, nos Estados Unidos e na Europa, os prêmios literários. Me aparecem de repente, todos os livros do autor enfileirados numa prateleira ou sobre uma mesa. Eu vejo o escritor brasileiro de pijamas, às vezes de cuecas, às vezes de calcinhas sobre uma mesa com vários cordões que saem de suas mãos e manipulam seus personagens e, às vezes, mais raro, vejo os personagens manipulando o autor. O problema cresce muito quando sobre essa mesma mesa, pequena, uma mesa de cozinha, ou de livraria, eu vejo todos os autores brasileiros juntos, uns com os dois pés bem folgados outros com um espaço bem pequenininho e os pés grandões. E todos dançando. O que importa é que todos dançam.

Quando o escritor brasileiro começou a falar eu comecei a escrever tudo o que ele falava. Até porque ele era novo pra mim. Vejam bem: 500 autores brasileiros contemporâneos, entre eles algumas autoras brasileiras contemporâneas, todos dançando na mesa. Você os lê um de cada vez. Dessa vez era a vez do João Almino. Eu o conhecia dos textos sobre a literatura brasileira, numa publicação que saiu na Argentina mas que eu tinha encontrado no México quando estava tentando encontrar os autores brasileiros contemporâneos que dançavam lá. Mas não conhecia o quinteto de Brasília — que não é a banda que toca para os escritores dançarem sobre a mesa, não — só o novíssimo Enigmas da Primavera, que li inteiro numa segunda meio chuvosa, não mais de primavera.

Foi assim. Acabo de começar a dar aulas na Uerj. Só li dois livros do João Almino e todos os textos do site. Meus alunos nunca ouviram falar de João Almino. Por isso mesmo, a conversa seria boa. E foi. João, embora a sala fosse uma profusão de Joãos, a começar pelo idealizador do projeto, ele era o João. A conversa divertida. O quinteto de Brasília não foi ideia dele. Um romance foi se juntando ao outro a posteriori. Agora, como toda banda de rock, pensei, o repertório quis sair do formato do disco. E começou outro quinteto ou entrou na era solo. “O quinteto de Brasília só existe porque tem Brasília. Nunca seria o quinteto do Rio ou de São Paulo”. [E eu lembrei dos 500 autores brasileiros dançando sobre a mesa]. Ele diz: “A cidade não tem nenhuma importância. Mas há duas razões principais para o quinteto ser de Brasília: 1. uma cidade única; 2. uma cidade como outra qualquer.” Está falado.

João Almino tem, parece, um jeito especial de lidar com aqueles cordões que ligam suas mãos às mãos dos seus personagens: “O que importa num romance são os personagens” e “Eu sei tudo sobre eles antes mesmo de começar a escrever.” Pausa. “Claro que eles mudam do começo ao final do livro e de um livro pro outro. Eu tenho um plano para cada romance, mas estou disposto a reescrever, a rever este projeto. Às vezes os personagens exigem outras direções, outras pesquisas. A mim também há uma certa surpresa.” Escrever, claro, é sempre uma aventura. E João Almino parece que entra num armário com porta falsa ou que entra numa floresta ou que simplesmente para de dançar e fica sério. Agora já tem só ele sobre a mesa: “Escrever é sempre uma aventura. Caminhamos por um caminho que imaginamos, mas o ato de criar exige que abramos o caminho, que enveredemos pela mata virgem.” Eu estava certa sobre a tal mata. “É isso que refaz tudo.”

E então todo mundo começa a se coçar e o microfone vai: mas João Almino, fala mais desses personagens dos seus livros. Mas João Almino, e essas mulheres? Mas João Almino, e os modelos, que modelos estão escondidos nos seus personagens? João Almino, você falou que as memórias dos seus personagens são sempre artificias, escritas com mapas, bússolas, livros de histórias, que você não é aquela criança e nem aquele adulto que se chama João. Só que elas se tornam vivas e parecem próprias. Próprias a você. Tanto suas que as pessoas querem conversar com você como se você tivesse vivido aquelas coisas vividas pelos seus personagens… e nem nunca morou lá. Explique isso, por favor. João Almino, e a herança literária? E a dicção machadiana? João Almino?

Bom, o autor não se deixa despir. Não, não. Só a gravata. Ele conta, mas não entrega. Ele diz, mas tergiversa. Claro, o autor não é seu personagem. Os personagens, ele insiste, não são meras projeções de si mesmo. Ele disse desde o início. Mas a plateia desconfia. Vai ver é porque leram O autor mente muito, do Carlos Sussekind e do Francisco Daudt da Veiga. Mas o escritor é muito generoso. E ele nos dá pequenas peças de cada um dos seus livros e ainda diz “Eu tinha um projeto muito ambicioso que não coincidiu com o que vim a fazer.” Conto ou não conto? Ele contou. Tem a ver com os personagens, claro. E a dança sobre a mesa recomeça. 500 autores fazendo a literatura brasileira hoje. Entre eles algumas escritoras. E todos aqueles personagens. Todos sobre a mesa de madeira, numa livraria. Ou numa cozinha.

Quatro questões para João Almino

1. Em Enigmas da Primavera você parece colocar em perspectiva um presente que aponta para um movimento na inércia —inclusive na montagem do livro, que nos primeiros capítulos apresenta personagens “em um tempo agitado e sem rumo” e que no final como que encontram um rumo nas manifestações de junho de 2013. Como na sua criação sobre o presente, você acredita em alguma “outra política”, como diz Majnun, impulsionada pelas manifestações ou esse acontecimento estaria, como lembra o avô de Majnun, Sérgio, mais para a famosa frase do romance de Lampedusa: “é preciso que tudo mude para que tudo fique como está”?

João Almino. Pessoalmente acho que “uma outra política” não conseguiria ser consequente se não encontrasse formas de institucionalização dentro do sistema representativo. Mas minha opinião pessoal pouco ou nada importa para o romance. As opiniões dos personagens, estas sim, podem servir à reflexão do leitor. Um dos muitos tópicos que podem ser objeto dessa reflexão é o do sentido de manifestações espontâneas, impulsionadas pelas mídias sociais e ocorridas em várias partes do mundo num determinado período histórico. O romance não compete com o jornal nem com o trabalho do historiador. O que ele pretende é apenas captar as pulsações de um momento, descrever as paixões dos personagens, entender as emoções que estão por trás de suas ações, tentando captar tendências por vezes divergentes e os conflitos existentes. Se dele pudéssemos extrair uma opinião ou uma tese, deveria ser substituído por um artigo de jornal ou uma dissertação. O tempo poderá ou não dizer se um ou outro personagem tem razão, à medida que o texto de ficção vai ganhando novos significados com suas releituras.

2. Você acredita que o fanatismo, considerado pelo outro avô, Dario, “um mal”, posto que baseado na fé, “que não exige justificativas nem tolera argumento”, venha justamente da falta de rumo, da falta pelo que lutar, falta vivida pela juventude do presente? (Mas não haveria também muitos motivos só que não mais para uma luta, mas muitas lutas? Não estariam, talvez, se travando muitas lutas menos visíveis?)

João Almino. O fanatismo é muitas vezes resultado de certezas, certezas que podem ser cegas, como na fé, que de fato não exige prova nem dá espaço para o argumento do outro. A desorientação do mundo contemporâneo pode ser criativa, produtiva, em muitas direções, assim como levar ao desespero ou à busca de saídas heroicas, que deem uma sensação de sentido e de firmeza. Nem todas as causas se equivalem: existem as que podem ajudar na construção de um mundo melhor (algumas delas, como você diz, embrionárias ou pouco visíveis), assim como existem outras, fáceis e ilusórias, que contribuem para a barbárie.

3. Muito se falou sempre, ou pelo menos desde a conquista da autonomia da literatura, na modernidade, de uma vocação da poesia para a resistência e para o debate democrático, inclusive colocando sempre novas questões para o próprio conceito de democracia. Você pensa que o romance participa dessa ideia de uma “democracia por vir” ou seria outra a natureza do romance no presente?

João Almino. Acredito, sim, que a boa literatura é sempre uma literatura de resistência, que se faz à margem do que é esperado e das fórmulas já conhecidas. O texto literário surge para interrogar, para explorar territórios virgens, para expandir fronteiras, como a própria democracia, que deixa de sê-lo, se não se expande e não se renova, e a liberdade, que não deve se aprisionar sequer no seu próprio conceito.

4. Como diplomata e como professor você já viveu e ensinou no México, nos EUA e em outros países, tendo até mesmo escrito um livro importante que dá notícia do pensamento e da literatura brasileira para o México (Tendencias de la literatura brasileña). Nessa sua vivência em outros países, como percebe neles a circulação e o conhecimento da nossa literatura? Ou não há mesmo literatura brasileira fora do Brasil, posto que circula pouco ou nada?

João Almino. O livro que você cita foi publicado na Argentina, mas de fato foi distribuído no México e noutros países de língua espanhola. Reúne ensaios literários que produzi circunstancialmente, quando fui convidado aqui e ali, como escritor, para participar de algum encontro ou contribuir para algum livro ou revista. No Brasil teve o título de Escrita em contraponto.Quanto a sua pergunta, creio que tem crescido a projeção da literatura brasileira no exterior, mas existe ainda um longo caminho a percorrer. Ela continua sendo relativamente desconhecida. Basta dizer que nossos grandes autores, como é caso de Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Bandeira, Drummond ou Cabral, continuam sendo desconhecidos fora do Brasil, havendo muito poucas exceções a esta triste regra, como é a de Clarice Lispector.

Curadoria de João Cezar de Castro Rocha.

Ieda Magri é professora de Teoria Literária na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e autora dos livros Olhos de bicho (Rocco, 2013) e Tinha uma coisa aqui (7Letras, 2007).

http://www.revistapessoa.com/2015/05/500-autores-brasileiros-contemporaneos/

REVISTA PESSOA
Seção Literatura Brasileira Hoje
500 autores brasileiros contemporâneos
15 de maio de 2015

Uma crônica e uma entrevista

Escrito por Ieda Magri

Literatura Brasileira Hoje, projeto idealizado por João Cezar de Castro Rocha, teve o seu segundo encontro na UERJ com o escritor e diplomata João Almino.
O registro foi feito por Ieda Magri, que, além de uma crônica do evento, realizou uma breve entrevista com o convidado.

Quando encontro um escritor num bar, não tem problema. É só um escritor, um professor, um jornalista, um bolsista, um diretor de teatro, um ator. Ninguém precisa pensar, muito menos falar, aquele epíteto meio cafajeste: “o escritor brasileiro”. O problema começa quando encontro o escritor brasileiro num lugar em que ele é chamado de escritor brasileiro. Dá uma coceira na língua e eu quero perguntar coisas, ou então quero só dizer alguma coisa, sem perguntar nada, enquanto a cabeça fica colocando tudo nuns mapas em que aparecem os escritores e as escritoras, os estados brasileiros, as pequenas livrarias do interior, a falta de livrarias no interior, nos bairros, as traduções na América Latina, nos Estados Unidos e na Europa, os prêmios literários. Me aparecem de repente, todos os livros do autor enfileirados numa prateleira ou sobre uma mesa. Eu vejo o escritor brasileiro de pijamas, às vezes de cuecas, às vezes de calcinhas sobre uma mesa com vários cordões que saem de suas mãos e manipulam seus personagens e, às vezes, mais raro, vejo os personagens manipulando o autor. O problema cresce muito quando sobre essa mesma mesa, pequena, uma mesa de cozinha, ou de livraria, eu vejo todos os autores brasileiros juntos, uns com os dois pés bem folgados outros com um espaço bem pequenininho e os pés grandões. E todos dançando. O que importa é que todos dançam.

Quando o escritor brasileiro começou a falar eu comecei a escrever tudo o que ele falava. Até porque ele era novo pra mim. Vejam bem: 500 autores brasileiros contemporâneos, entre eles algumas autoras brasileiras contemporâneas, todos dançando na mesa. Você os lê um de cada vez. Dessa vez era a vez do João Almino. Eu o conhecia dos textos sobre a literatura brasileira, numa publicação que saiu na Argentina mas que eu tinha encontrado no México quando estava tentando encontrar os autores brasileiros contemporâneos que dançavam lá. Mas não conhecia o quinteto de Brasília — que não é a banda que toca para os escritores dançarem sobre a mesa, não — só o novíssimo Enigmas da Primavera, que li inteiro numa segunda meio chuvosa, não mais de primavera.

Foi assim. Acabo de começar a dar aulas na Uerj. Só li dois livros do João Almino e todos os textos do site. Meus alunos nunca ouviram falar de João Almino. Por isso mesmo, a conversa seria boa. E foi. João, embora a sala fosse uma profusão de Joãos, a começar pelo idealizador do projeto, ele era o João. A conversa divertida. O quinteto de Brasília não foi ideia dele. Um romance foi se juntando ao outro a posteriori. Agora, como toda banda de rock, pensei, o repertório quis sair do formato do disco. E começou outro quinteto ou entrou na era solo. “O quinteto de Brasília só existe porque tem Brasília. Nunca seria o quinteto do Rio ou de São Paulo”. [E eu lembrei dos 500 autores brasileiros dançando sobre a mesa]. Ele diz: “A cidade não tem nenhuma importância. Mas há duas razões principais para o quinteto ser de Brasília: 1. uma cidade única; 2. uma cidade como outra qualquer.” Está falado.

João Almino tem, parece, um jeito especial de lidar com aqueles cordões que ligam suas mãos às mãos dos seus personagens: “O que importa num romance são os personagens” e “Eu sei tudo sobre eles antes mesmo de começar a escrever.” Pausa. “Claro que eles mudam do começo ao final do livro e de um livro pro outro. Eu tenho um plano para cada romance, mas estou disposto a reescrever, a rever este projeto. Às vezes os personagens exigem outras direções, outras pesquisas. A mim também há uma certa surpresa.” Escrever, claro, é sempre uma aventura. E João Almino parece que entra num armário com porta falsa ou que entra numa floresta ou que simplesmente para de dançar e fica sério. Agora já tem só ele sobre a mesa: “Escrever é sempre uma aventura. Caminhamos por um caminho que imaginamos, mas o ato de criar exige que abramos o caminho, que enveredemos pela mata virgem.” Eu estava certa sobre a tal mata. “É isso que refaz tudo.”

E então todo mundo começa a se coçar e o microfone vai: mas João Almino, fala mais desses personagens dos seus livros. Mas João Almino, e essas mulheres? Mas João Almino, e os modelos, que modelos estão escondidos nos seus personagens? João Almino, você falou que as memórias dos seus personagens são sempre artificias, escritas com mapas, bússolas, livros de histórias, que você não é aquela criança e nem aquele adulto que se chama João. Só que elas se tornam vivas e parecem próprias. Próprias a você. Tanto suas que as pessoas querem conversar com você como se você tivesse vivido aquelas coisas vividas pelos seus personagens… e nem nunca morou lá. Explique isso, por favor. João Almino, e a herança literária? E a dicção machadiana? João Almino?

Bom, o autor não se deixa despir. Não, não. Só a gravata. Ele conta, mas não entrega. Ele diz, mas tergiversa. Claro, o autor não é seu personagem. Os personagens, ele insiste, não são meras projeções de si mesmo. Ele disse desde o início. Mas a plateia desconfia. Vai ver é porque leram O autor mente muito, do Carlos Sussekind e do Francisco Daudt da Veiga. Mas o escritor é muito generoso. E ele nos dá pequenas peças de cada um dos seus livros e ainda diz “Eu tinha um projeto muito ambicioso que não coincidiu com o que vim a fazer.” Conto ou não conto? Ele contou. Tem a ver com os personagens, claro. E a dança sobre a mesa recomeça. 500 autores fazendo a literatura brasileira hoje. Entre eles algumas escritoras. E todos aqueles personagens. Todos sobre a mesa de madeira, numa livraria. Ou numa cozinha.

Quatro questões para João Almino

1. Em Enigmas da Primavera você parece colocar em perspectiva um presente que aponta para um movimento na inércia —inclusive na montagem do livro, que nos primeiros capítulos apresenta personagens “em um tempo agitado e sem rumo” e que no final como que encontram um rumo nas manifestações de junho de 2013. Como na sua criação sobre o presente, você acredita em alguma “outra política”, como diz Majnun, impulsionada pelas manifestações ou esse acontecimento estaria, como lembra o avô de Majnun, Sérgio, mais para a famosa frase do romance de Lampedusa: “é preciso que tudo mude para que tudo fique como está”?

João Almino. Pessoalmente acho que “uma outra política” não conseguiria ser consequente se não encontrasse formas de institucionalização dentro do sistema representativo. Mas minha opinião pessoal pouco ou nada importa para o romance. As opiniões dos personagens, estas sim, podem servir à reflexão do leitor. Um dos muitos tópicos que podem ser objeto dessa reflexão é o do sentido de manifestações espontâneas, impulsionadas pelas mídias sociais e ocorridas em várias partes do mundo num determinado período histórico. O romance não compete com o jornal nem com o trabalho do historiador. O que ele pretende é apenas captar as pulsações de um momento, descrever as paixões dos personagens, entender as emoções que estão por trás de suas ações, tentando captar tendências por vezes divergentes e os conflitos existentes. Se dele pudéssemos extrair uma opinião ou uma tese, deveria ser substituído por um artigo de jornal ou uma dissertação. O tempo poderá ou não dizer se um ou outro personagem tem razão, à medida que o texto de ficção vai ganhando novos significados com suas releituras.

2. Você acredita que o fanatismo, considerado pelo outro avô, Dario, “um mal”, posto que baseado na fé, “que não exige justificativas nem tolera argumento”, venha justamente da falta de rumo, da falta pelo que lutar, falta vivida pela juventude do presente? (Mas não haveria também muitos motivos só que não mais para uma luta, mas muitas lutas? Não estariam, talvez, se travando muitas lutas menos visíveis?)

João Almino. O fanatismo é muitas vezes resultado de certezas, certezas que podem ser cegas, como na fé, que de fato não exige prova nem dá espaço para o argumento do outro. A desorientação do mundo contemporâneo pode ser criativa, produtiva, em muitas direções, assim como levar ao desespero ou à busca de saídas heroicas, que deem uma sensação de sentido e de firmeza. Nem todas as causas se equivalem: existem as que podem ajudar na construção de um mundo melhor (algumas delas, como você diz, embrionárias ou pouco visíveis), assim como existem outras, fáceis e ilusórias, que contribuem para a barbárie.

3. Muito se falou sempre, ou pelo menos desde a conquista da autonomia da literatura, na modernidade, de uma vocação da poesia para a resistência e para o debate democrático, inclusive colocando sempre novas questões para o próprio conceito de democracia. Você pensa que o romance participa dessa ideia de uma “democracia por vir” ou seria outra a natureza do romance no presente?

João Almino. Acredito, sim, que a boa literatura é sempre uma literatura de resistência, que se faz à margem do que é esperado e das fórmulas já conhecidas. O texto literário surge para interrogar, para explorar territórios virgens, para expandir fronteiras, como a própria democracia, que deixa de sê-lo, se não se expande e não se renova, e a liberdade, que não deve se aprisionar sequer no seu próprio conceito.

4. Como diplomata e como professor você já viveu e ensinou no México, nos EUA e em outros países, tendo até mesmo escrito um livro importante que dá notícia do pensamento e da literatura brasileira para o México (Tendencias de la literatura brasileña). Nessa sua vivência em outros países, como percebe neles a circulação e o conhecimento da nossa literatura? Ou não há mesmo literatura brasileira fora do Brasil, posto que circula pouco ou nada?

João Almino. O livro que você cita foi publicado na Argentina, mas de fato foi distribuído no México e noutros países de língua espanhola. Reúne ensaios literários que produzi circunstancialmente, quando fui convidado aqui e ali, como escritor, para participar de algum encontro ou contribuir para algum livro ou revista. No Brasil teve o título de Escrita em contraponto.Quanto a sua pergunta, creio que tem crescido a projeção da literatura brasileira no exterior, mas existe ainda um longo caminho a percorrer. Ela continua sendo relativamente desconhecida. Basta dizer que nossos grandes autores, como é caso de Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Bandeira, Drummond ou Cabral, continuam sendo desconhecidos fora do Brasil, havendo muito poucas exceções a esta triste regra, como é a de Clarice Lispector.

Curadoria de João Cezar de Castro Rocha.

Ieda Magri é professora de Teoria Literária na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e autora dos livros Olhos de bicho (Rocco, 2013) e Tinha uma coisa aqui (7Letras, 2007).

http://www.revistapessoa.com/2015/05/500-autores-brasileiros-contemporaneos/