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de João Almino (editora Record, 2015)

Fragmento

Capítulo que promete cenas tórridas, que não são razão para ser pulado, mesmo porque promessa não é fato nem dívida

—  Vire-se pro outro lado — Suzana lhe disse de novo, pouco depois de entrarem no quarto.

Desta vez Majnun não teve dúvida: era de propósito. Suzana entrou no banheiro mal enrolada no lençol, talvez nua por baixo daquele lençol. Ele se lembrou dos quadros do Museu do Prado, e a Suzana real foi assumindo as formas da Susana dos quadros. Logo se transformou na jovem mal enrolada num lençol que contemplava uma caveira, como  no  cartão  que  Laila lhe tinha enviado. Mau pressentimento. Prenúncio de perigo.

Tirou a cueca. Quando ela saiu do banheiro, foi ao encontro dela.

—  Não — ela gritou.

Majnun a jogou violentamente sobre a cama, os dois nus, se digladiando.

—  Sou virgem — ela disse.

Era o mesmo termo que o marido de Laila tinha aplicado a ele.

—  Se você soubesse…

—  Sei. E não me interessa. Xô, galinha!

Ela tinha razão. Ele era um zero à esquerda, um merda, um cafajeste.

—  Vou desaparecer. Você nunca mais vai me ver — disse.

—  Ótimo. Já vai tarde.

A parede tremeu. Devia ser novamente o casal vizinho, dois homens musculosos pressionando a cama sobre a parede como uma máquina bate-estaca. Desta vez Majnun não conseguiu esboçar seu riso, nem Suzana deu a entender que estava ouvindo.

Ele caminhou pelas calçadas estreitas, saltando mijos e bostas de cachorro. Por que sentir-se arrasado, quando deveria estar orgulhoso da ousadia?

Suzana ia certamente comentar com Carmen. De- pois, Carmen lhe diria: “Majnun, eu fazia melhor conceito de você. Agora sei quem você é: um cafajeste.” Que vergonha! Ele era mesmo um idiota. Por que não conseguia entender as mulheres? Suzana  ia  queixar-se aos pais, a notícia se espalharia por Brasília, chegaria a seu avô Dario, a sua avó Elvira, até a sua querida avó Mona… De boca em boca se amplificaria, ele seria ex- posto como um tarado, um agressor sexual… E Laila? Será que o perdoaria?

O desejo era real, tinha de reconhecer. Não amava Suzana, disso tinha certeza, mas que tesão sentia! Só não havia demonstrado antes por timidez. Desde que a tinha

visto desfazer a mala no dia da chegada a Madri, acordava de madrugada pensando nela. Ou mais exatamente em seu corpo; melhor dizendo, em detalhes de seu corpo. E então começava mentalmente a acariciá-la naquelas partes. E não somente a acariciá-la. Achara ingenuamente que aqueles exercícios mentais seriam suficientes para acalmar seus sentidos.

O que fizera era grave, reconheceu. Ele não era aquela pessoa que avançou sobre Suzana ou, ao contrário, vai ver aquele era seu eu verdadeiro, lascivo e confuso. Viu um bar de tapas com fachada de antiga farmácia: azulejos de friso azul e fundo amarelo dos dois lados da porta, nos quais estavam desenhados um homem engravatado de um lado e uma mulher de longo vestido verde do outro, ambos fazendo propaganda de remédios. Entrou sem saber o que queria. Pronunciou frases sem sentido, em português, e conseguiu no meio delas balbuciar, com lábios tremidos, a palavra “vino”, que lhe foi trazido uma e outra vez. Bebeu até completar a dose certa e necessária de insensibilidade, anestesia da alma de quem precisava seguir caminhando pelas ruas sem saber aonde ia.

Ofegante, respirava com dificuldade, e seu coração palpitava. Devia voltar ao hotel? Desculpar-se de joelhos com Suzana? Beijar seus pés? Pressentiu numa fração de segundo que Carmen o protegeria. Não, ele não tinha futuro. Tudo perdido. Melhor que a polícia o encontras- se, que fosse julgado e jogado na prisão, onde sua vida ganharia sentido. Desligou o celular para não ser impor- tunado.

Tonto, sentiu um calafrio no calor, talvez começo de febre. Para onde caminhava? Já havia passado por aquela rua vindo no sentido contrário. Estaria dando voltas em torno ao mesmo quarteirão? Numa praça triangular com mesas na calçada, gente alegre em torno de chopes e ta- ças de vinho gesticulava sem parar. Estaria ele perdido? Não. Bastava seguir o fluxo, caminhar por onde os outros caminhavam.

Haveria perigo em tomar as ruas desertas e escuras que mais o atraíam? Logo encontrou outro fluxo de gente e de carros. Que horas seriam? Reconheceu a Gran Vía, que desceu seguindo um grupo de jovens, talvez todos muçulmanos, pois a mulher ao centro estava coberta por uma burca. Chegou à Plaza de Cibeles, de onde avistou a Puerta de Alcalá. Em minutos, entrou no Parque do Retiro, lembrando-se de que ali se realizava a festa do perdão. Era disso que precisava, de perdão. Encontraria Suzana?

Passou pelo lago, tomou à esquerda e chegou a uma alameda de confessionários brancos, formas pontiagudas apontando para o alto qual rabo de avião. Pelo que estimou, duas centenas de confessionários. Mas já era tarde, não havia padres, a Festa do Perdão havia terminado, hoje ele não seria perdoado.

Pegou um caminho à direita que logo adiante fez uma curva também à direita. Apressou o passo pelo caminho deserto, tornou a virar à direita e regressou por outra ala- meda larga e mal iluminada.

Viu uma placa indicando o Palácio de Cristal. No caminho uma moça de blusa de mangas compridas, sentada num banco, sorriu para ele. Estaria atraindo as atenções?

O Palácio de Cristal estava fechado. Olhou seu interior através das portas de vidro. A exposição, intitulada “Continuará”, era de uma artista nascida em Sarajevo, Maja Bajevic. Teria a ver com os protestos do 15-M? Havia uma referência a Walter Benjamin, a uma de suas Teses sobre a Filosofia da História, especificamente a Tese 5. Sentou-se num degrau da escada. Uma breve pesquisa no Google remeteu-o a uma frase: “A verdadeira imagem do passado nos escapa, pois o passado é uma imagem que resplandece num instante e logo desaparece.”

Levantou-se e encostou o rosto numa das portas de vidro do Palácio. Viu o que pareciam andaimes, parte da exposição, e, acima deles, palavras escritas sobre uma placa de vidro inteiramente empoeirada. Tratava-se de uma instalação, “Performance/categoria-azar”. Eram palavras efêmeras, logo apagadas para que outras viessem a ser escritas. Majnun conseguiu enxergar uma citação de Antonio Machado: “Incerto é, na verdade, o futuro. Quem sabe o que vai passar? Mas incerto é também o pretérito. Quem sabe o que passou?”

Voltou pelo mesmo caminho. A moça ainda estaria lá? Continuaria sentada no banco? Novamente sorriria para ele?

Agora, na companhia de mais duas moças igualmente com blusas de manga comprida, ela conversava com um jovem vestido com uniforme azul de ginástica. Majnun passou vagarosamente ao lado e olhou para ela, que o ignorou. Estava concentrada na conversa, feita em inglês:

—  So, have you read the Mormon’s book?

Yes, I have, but…

A lua inquisidora e a novela trágica

Chegando novamente ao lago, viu do outro lado pessoas sentadas nos degraus do Monumento a Alfonso XII. Seguiu para lá. Sentindo um vento quente no rosto, emocionou-se com a lua tremulando na água. As árvores, ao fundo, desenhavam-se sobre o céu cinza pálido, sem nu- vem e tenuemente claro.

Um grupo de rapazes — o que ele tinha visto antes, com um rapaz a menos e sem a mulher de burca — conversava em árabe. Aproximou-se e os cumprimentou, também em árabe. Os jovens foram simpáticos e gentis, e sua simpatia e gentileza dobraram de tamanho quando souberam que ele vinha do Brasil. Quiseram enveredar a conversa pelo futebol, mas Majnun não gostava de futebol e ainda não acompanhava as polêmicas sobre a construção de estádios como viria a fazer em 2013.

Um dos jovens tinha um primo em São Paulo e havia alguns anos tinha pensado em morar no Brasil. Trocaram impressões sobre São Paulo, cidade que estava ficando mais violenta do que o Rio. O rapaz sorria, observando os

demais e principalmente Majnun, e repuxava, com gesto sutil e irônico, os cantos dos lábios, margeados por um bigode fino.

Majnun quis livrar-se daquele sorriso provocador com uma pergunta despudorada:

—  Vocês são todos muçulmanos?

Sim, todos eram. Mas vinham de distintos lugares. Ele vinha da Líbia; um outro, do Marrocos, de uma cidade do norte, próxima a Ceuta; o barbudo com uma touca na cabeça, dos Estados Unidos, e o louro de cabelo frisado, do Líbano.

—  Do Líbano?

Majnun então contou suas ligações com o Líbano e o Egito, através de seus avós paternos.

—  No caso desse cara, é o pai que vem do Oriente Médio — disse o líbio, apontando para o americano.

—  O pai dele nasceu no Iêmen — disse o marroquino. O americano manteve-se calado e sério.

Majnun falou sobre sua avó Mona e as conversas que havia tido com ela sobre o Islã, inclusive sobre sua possível conversão.

Finalmente levantou um assunto que o interessava especialmente naquela noite. Se dois jovens não casados tivessem relação sexual, Alá os perdoaria?

—  Alá não é vingativo. É tolerante, sapientíssimo, como diz o Corão — falou o rapaz sorridente de bigode fino, o líbio, cujos lábios afundados nos cantos continuavam irônicos.

Bom, não se engane. Pela Charia, tanto é fácil casar como se divorciar. Mas relação sexual fora do casamento, nem pensar. Os dois deviam morrer — falou em árabe, com um perceptível sotaque, o barbudo de touca, o americano, um rapaz alto, de rosto queimado e viril, marcado por pregas laterais.

Tinha olhos expressivos, cheios de orgulho e, pareceram a Majnun, de integridade.

—  Não exagere, onde isso acontece? — perguntou o líbio, o que tinha um primo em São Paulo.

—  Tem de acontecer em todo lugar, se são muçulmanos.

—  São suas ideias radicais.

—  Está no Corão.

—  Não desse jeito. E depois é preciso prova: quatro testemunhas têm que ter visto, mas visto mesmo tudo, até a pena dentro do tinteiro, como dizem os ulemás, o que torna a regra impraticável.

—  No caso de mulheres adúlteras, não há dúvida, de- vem ser apedrejadas até morrer — argumentou o barbudo de touca, o americano de rosto queimado.

—  O Corão não menciona apedrejamento e sim cem vergastadas — esclareceu o líbio —, mas mesmo isso não faz sentido hoje em dia. Para quem cometer adultério, homens e mulheres, diz para deixá-los tranquilos caso se arrependam e se corrijam.

—  Esses excessos existem em alguns poucos lugares, como o Irã: pena de morte por apedrejamento para as adúlteras e noventa e nove chicotadas para quem mantenha relações sexuais fora do casamento — esclareceu o libanês louro de cabelo frisado.

Majnun imaginou que, além de seus avanços sobre Suzana, se fosse muçulmano naquela noite teria cometido outra transgressão.

—  É proibido tomar vinho? — perguntou.

—  Não, não é. Se você lê o Livro com atenção, conclui que o vinho pode ser fabricado e que ele traz tanto malefícios quanto benefícios. A proibição é só para o ex- cesso, que leva à intoxicação — respondeu o líbio.

—  Na verdade, um verso de Medina diz que as bebi- das inebriantes são manobras abomináveis de Satanás — defendeu o americano.

—  Não confunda o rapaz. Olha, não é porque você gosta de vinho que não pode se converter — falou o líbio.

—  E existe alguma regra sobre como se vestir? — quis saber Majnun, lembrando-se de que sua avó Mona explicou que ela sequer precisava usar véu.

—  Veja a gente — disse o líbio. — Esse cara usa touca porque quer. Para as mulheres, sim…

—  Mas a fé tem suas regras sobre vestuário, ou não tem? Pois o comportamento exterior revela a retidão do espírito. A felicidade está em imitar Maomé. Por isso a obrigação de colocar um turbante quando se está de pé — informou o americano. — Para as mulheres, a obrigação é claríssima: devem conservar seus pudores; devem cobrir o colo com seus véus e não devem mostrar seus atrativos a não ser aos maridos, os pais, os sogros, os filhos, os ir- mãos…

—  Você gravou isso para controlar sua namorada? — interrompeu o líbio.

—  O pudor também é uma virtude masculina.

—  Veja só quem fala! Onde está seu turbante, cara?

—  contestou o líbio.

—  Confesso que deveria estar usando, embora eu esteja sentado. Minha touca substitui por enquanto o turbante. E também é importante que você comece com o pé direito quando calça os sapatos.

—  Por quê? — perguntou Majnun.

—  É o que deve ser feito para que as portas da felicidade não se fechem para você — esclareceu o barbudo alto, o americano de touca. — Da mesma forma que você deve comer com a mão direita e que, quando cortar as unhas, deve começar pelo indicador da mão direita e ter- minar pelo polegar da mão direita; e que deve começar pelo dedo mindinho do pé direito e terminar pelo dedo mindinho do pé esquerdo.

Majnun notou que aqueles dois, o líbio e o barbudo americano, não se entendiam. Seriam de seitas diferentes? Parecia óbvio que o barbudo pertencia a um grupo militante, talvez um dos que ele tinha visitado pela inter- net. Como achou grosseiro perguntar diretamente, introduziu o tema de maneira sutil:

—  Queria me converter ao Islã, como disse. Mas qual Islã?

—  O Islã é um só — disse o barbudo.

—  O que quero dizer é: seria sunita? Xiita? Ismaelita? Sufi? Druso? Alauita? Salafista? Wahabista? Que diferença faz?

—  Você está fazendo confusão. Alauita também é xiita. Os ismaelitas, apesar de só reconhecerem os primeiros sete imãs do xiismo e não os doze, são xiitas. Salafistas e wahabistas também são sunitas — falou o libanês de cabelo frisado.

Explicou que os sunitas e os xiitas se dividiam na questão da sucessão do Profeta. Para os xiitas, os imãs eram sucessores de Ali, primo e genro de Maomé, bem como quarto califa. Dentro do próprio xiismo também tinha havido divergências a propósito dos sucessores: o sexto imã, Ja’far as-Sadiq, designou como sucessor seu filho primogênito Ismael, mas, como este morreu antes do pai, a sucessão ficou com seu outro filho, Musa al-Kazim, reconhecido como verdadeiro sucessor pela maior parte dos xiitas. Outros acreditaram, porém, que Ismael não havia morrido, apenas se ocultado, e são seus segui- dores. Por isso são conhecidos como ismaelitas. Acham que Ismael voltará no final dos tempos. Dissimulam sua religião, se são obrigados a isso quando perseguidos, para se precaver e se resguardar, o que está baseado no Corão.

O marroquino, que havia estado calado, sugeriu, com olhar profundo e voz suave, que Majnun fosse a um centro, do qual fez menção de lhe dar o endereço, porém o líbio se opôs imediatamente, aconselhando Majnun a não se envolver “naquilo”. Sugeriu que fosse a uma mesquita.

—  Qual mesquita? — perguntou Majnun.

—  Vá à Mesquita da M-30, que todo mundo conhece e você pode localizar facilmente.

Deitado num banco do parque, usando sua mochila como travesseiro e olhando uma lua inquisidora, Majnun adormeceu com a ideia de que a única salvação estava em sua novela. Lá haveria lugar para ele, Suzana, Carmen e Laila.

Para tornar os quatro personagens irreconhecíveis, inclusive ele próprio, começou por vesti-los com suas mantas e respectivos turbantes e então transportou-os à Idade Média, mais precisamente a Granada. Salpicou uma ou outra palavra em árabe para impressionar o leitor. Fez de Suzana prisioneira cristã do sultão, ele próprio, Majnun, que as- sumiu o papel do pai de Boabdil, o sultão Abul Hassan, o vigésimo primeiro e penúltimo sultão de Granada. Ele, Majnun, não tinha uma barba tão espessa quanto a do sultão? Não era igualmente mau-caráter e violento? Não tinha o coração tão duro quanto o dele? Não era fato que ele trocou sua mulher, Fátima, por uma prisioneira cristã, Isabel de Solís, que passou a se chamar Soraya, assim como ele, Majnun, trocou injustamente Laila por Suzana? Suzana poderia ser Soraya, estrela da madrugada, e com ela Majnun teria dois filhos, Saab e Nasr, os mesmos que o sultão teve com Soraya. Mas seria justo comparar Laila com Fátima, também conhecida como Aixa al-Hurra, a liberta, honrada e honesta? Laila era menos virtuosa e mais atraente do que ela, mas na ficção tudo cabia. Cabia sobretudo descrever-se como um depravado. Pois Abu-l-Hassan Ali não havia uma vez convidado membros da corte para assistir a um banho de Soraya e depois oferecido a cada um deles uma tigela da água em que ela se havia banhado? Não bebia vinho e fumava haxixe em festas com escravas? Não era verdade que durante os treze primeiros séculos da Hégira, segundo a Charia, o homem podia comprar escravas e ter relações sexuais com elas? Que até a abolição do califado por Ata-turk em 1924 os califas tinham seus haréns, “reservas” de centenas ou mesmo de milhares de mulheres?

A novela seria realista e trágica. Trágica para ele, personagem principal, que perderia a guerra e o trono para seu filho. Para Suzana, aliás Soraya, seria o contrário: ela triunfaria quando Boabdil capitulasse diante dos cristãos; voltaria a ter seu nome cristão e batizaria seus dois filhos, que passariam a ser infantes de Granada com os nomes Don Fernando e Don Juan.

Majnun sentiu merecer esse fim trágico. Se nunca ha- via desempenhado os papéis execráveis do sultão, tinha sido apenas por não ser sultão, viver no século XXI e Suzana não ser sua escrava. Ele era vil e humano como a maldade, ou era a maldade mesma.

Pensou em anotar esses pensamentos, acrescentando uma ressalva: se não modificasse aquela novela, ele seria injusto com Laila, relegada ao papel de uma sultana abandonada, e sobretudo com Carmen, esquecida depois das primeiras frases. Mas nada anotou, pois estava escuro, e ele já instalado e sonolento no banco do parque.

Onde estão a honra e a desonra?

Ao acordar com a claridade do dia, uma quinta-feira, 18 de agosto, quando talvez o Papa já estivesse na cidade, notou que na noite anterior havia entrado outro e-mail de Laila no seu iPhone: “nao adianta se esconder a policia sabe que vc comprou as balas.”

O que fazer? Não seria um ato de covardia e sim, ao contrário, de coragem abandonar todos — Laila, Carmen, Suzana, seus avós —, desaparecer sem deixar traço e seguir para um país da África ou do Oriente Médio para ajudar numa revolução. Apostava que era isso que o ame- ricano barbudo estava fazendo. Por que não havia ficado com o contato dele?

Não ia se preocupar. Algum dia, se voltasse ao Brasil, esclareceria tudo. E se houvesse uma ordem de prisão pela Interpol?

Inquieto, passeou pelo parque e comprou de um mantero sudanês um chapéu de papel feito na China. Depois tomou o cuidado de se desviar do carro da polícia que afugentava os vendedores ambulantes, inclusive o sudanês. Saiu do parque e tomou café da manhã numa padaria da Plaza de la Independencia.

Caminhou até o Paseo del Prado e entrou no Museu Thyssen-Bornemisza. Passou meia hora diante de um quadro de Monet, “A ponte de Charing Cross”, de 1899, uma tarde, a luz filtrada através da bruma do inverno, algumas barcaças sob a ponte, a silhueta do Parlamento insinuando-se ao fundo. Imaginou jogar-se daquela ponte e se dissolver na paisagem imprecisa.

“Suzana tem razão. Está horrivelmente quente”, pen- sou, ao sair. Tirou a camisa, seguiu em direção ao Pra- do, subiu à direita, mochila nas costas, pela Calle de las Huertas, e foi lendo frases de escritores inscritas no calçamento. Deu por fim na Plaza de Santa Ana, cercada de restaurantes e cervejarias, cheia de gente.

Numa mesa em plena praça, pediu una caña e solomillo, um lombo de porco, acompanhado de batatas cozidas. Poderia se comprometer por razões religiosas a deixar de comer uma carne deliciosa? Até poderia aceitar que “a dieta é o começo de todo tratamento”, como queria o Profeta, mas para isso deixar de comer carne de porco?

As pálpebras começaram a pesar. Um rapaz da mesa ao lado lhe fez uma pergunta em inglês, que ele não entendeu. Majnun olhou ao redor. Já havia passado por ali, mas os prédios não lhe pareciam familiares, era como se os visse pela primeira vez e estivesse num sonho. Os dedos de suas mãos estavam inchados, talvez por causa do calor. Pensou em Suzana, em Laila. Seu coração bateu apressado e confuso. Sentiu-se asfixiado, tinha de sair dali rapidamente.

Poderia Carmen ser sua salvadora? Se ela tivesse celular, ligaria para ela. Para Suzana é que não. De novo o rapaz da mesa ao lado tentou iniciar uma conversa. “Desculpe”, Majnun respondeu, em português, “não entendo nada”. Chamou o garçom, pagou a conta e saiu, fugindo do rapaz.

Desceu lentamente na direção do bairro de Lavapiés, admirando as fachadas decadentes. Depois de quarenta minutos perambulando, encontrou um hotel barato com conexão de internet.

Subiu quatro escadas com a mochila nas costas e se deitou, sem conseguir fazer a sesta espanhola. Com olhos pregados no teto e boca semiaberta, afundou-se em pensamentos amargos, questionando-se sobre os rumos da vida, entre os quais os únicos claros eram a doença, a morte ou a prisão, a menos que partisse para lutar em algum lugar impelido pela mágoa, que pode ser autora de atos nobres, heroicos às vezes.

O tempo estava parado. Não podia ser medido com o metro das expectativas. Além disso, quando passava, não usava medidas uniformes, não era ordeiro e o surpreendia com saltos brutais. A virtude e o vício, a honra e a desonra, onde estariam?

Pensou em se desfazer dos escrúpulos para provar o sentimento cego, ser bandido, sem o peso da moral e da boa reputação, experimentando a liberdade selvagem. Seu coração palpitou quando imaginou o corpo nu de Suzana se debatendo na cama contra o seu. Ele devia voltar ao hotel e enfrentá-la; dizer-lhe tudo. Mas o quê? Ele não sabia o que queria e muito menos sabia ser mau. Era um mau mau.

Finalmente, resolveu fazer um esforço de reflexão racional, como um outro de si mesmo, um crítico que pudesse observá-lo a distância. Pensou no único conselho que seu avô Sérgio tinha lhe dado, citando um filósofo alemão: “Faze aquilo que quiseres ver convertido em lei universal.” Então, como se tivesse encontrado o caminho, tirou da mochila seu Corão em árabe. Sentou-se na cadeira, estirou as pernas sobre a cama, apoiou o computador sobre as coxas e se pôs à tarefa. Primeiro, faria sua pesquisa na internet para tentar entender melhor as diferenças entre sunitas e xiitas. Depois leria suras no seu Corão. Logo encontrou uma informação: com o assassinato do quarto califa, Ali, primeiro imã xiita, o califado ficou em mãos de Muawiya, que teve muitos seguidores

os sunitas, como sua avó — mas não foi reconhecido pelos xiitas, porque, ao contrário de Ali, primo e genro de Maomé, nas suas veias não corria o sangue do Profeta.

A touca não faz o muçulmano

Era 19 de agosto, sexta-feira. Acordou cedo e tomou um longo banho, enquanto repassava os sonhos da noite. Neles Laila e Carmen estavam confundidas, e Suzana inexplicavelmente não havia aparecido. Melhor, pensou. Ela era insignificante. Nunca mais queria vê-la. Nunca. Nunca mais mesmo! Essa mera ideia lhe trouxe uma ponta de alegria que transpareceu no leve sorriso dos músculos relaxados do rosto. Devia ter dormido mais, porém se sentia bem-disposto. Lavou os pés entre os dedos, pois não queria passar vergonha se na Mesquita o fizessem lavar os pés. Sexta-feira era dia de celebração, dia santificado, o domingo dos muçulmanos.

Aparou a barba e cortou as unhas das mãos e dos pés como indicado pelo barbudo americano. Escolheu as melhores roupas: calça de linho, mesmo amassada, e camisa polo azul. Será que seu chapéu podia substituir um turbante? Pôs os sapatos, em vez dos tênis com que andara desde que havia saído de Brasília.

Depois de comer algo no Café Barbieri, estudou o mapa no Google e seguiu de ônibus, Corão debaixo do braço, em direção à Mesquita da M-30, a Mesquita Omar de Madri.

[:en]Excerpt from the novel ENIGMAS OF SPRING, by João Almino, Dalkey Archive Press, 2016

Translation from Portuguese by Rhett McNeil

A chapter that promises torrid scenes,
which aren’t a reason to skip it,
especially since a promise is neither a fact nor a debt

He walked along the narrow sidewalks, stepping over puddles of dog piss and piles of dog shit. Why did he feel crushed, when he should have felt proud of his boldness?

Suzana was definitely going to tell Carmen. Then Carmen would say to him: “Majnun, I thought so highly of you. Now I know what you are: a bastard.” What shame! He really was an idiot. Why couldn’t he understand women? Suzana would complain to her parents, the news would spread throughout Brasilia, get back to his grandpa Dário Dario, his grandma Elvira, and even his beloved grandma Mona . . . From one telling to the next it would get exaggerated, he’d be exposed as a degenerate, a sexual aggressor . . . And Laila? Would she ever forgive him?

The desire was real, he had to admit it. He didn’t love Suzana, he was certain of that, but he felt so horny! He only hadn’t shown it before out of shyness. Ever since he watched her unpack her suitcase on the day they arrived in Madrid, he had woken up in the middle of the night thinking about her. Or, more precisely, about her body; or, better still, about certain details of her body. And then he would start mentally caressing her in those parts. And not just caress her. He had naïvely thought that those mental exercises would be enough to calm his senses.

What he’d done was serious, he understood that. The person who attacked Suzana wasn’t him; or, on the contrary, who knows, perhaps that was his true self, lascivious and confused. He saw a tapas bar with the façade of an old pharmacy: azulejo tiles with blue borders and yellow background on either side of the door, on which were pictured a man in a tie on one side and a woman in a long green dress on the other, both of them promoting medicines. He went in, not knowing what he wanted. He uttered some senseless phrases, in Portuguese, managing, in the middle of them, to stammer out, with lips quaking, the word “vino,” which was brought to him time and again. He drank until he’d finished off the correct and necessary dose for insensibility, anesthesia for the soul of a person who needed to keep walking through the streets without knowing where he was going.

He was panting, had difficulty breathing, and his heart was pounding. Should he go back to the hotel? Get down on his knees and apologize to Suzana? Kiss her feet? For a fraction of a second he had a feeling that Carmen would protect him. No, he had no future. Everything was lost. Better that the police find him, try him, and toss him into prison, where his life would gain meaning. He turned off his cell phone so he wouldn’t be bothered.

Tipsy, he felt a shiver in that heat, perhaps the beginnings of a fever. Where was he walking? He had already passed that street coming from the other direction. Was he walking in circles around the same city block? In a triangular park, with tables out on the sidewalk, joyful people with beers and glasses of wine gesticulated endlessly. Was he lost? No. He just had to follow the flow, go where other people were going.

Was it dangerous to take the deserted, dark streets that attracted him the most? He soon found another flood of people and cars. What time was it? He recognized the Gran Vía, which he walked down, following a group of young people, maybe all Muslims, since the woman in the middle was covered in a burka. He reached the Plaza de Cibeles, from which point he could see the Puerta de Alcalá. Minutes later he entered Buen Retiro Park, remembering that that was where the “Festival of Forgiveness” was taking place. That was what he needed, forgiveness. Would he see Suzana there?

He walked passed the lake, turned left, and arrived at a promenade of white confessionals, sharp-edged forms pointing at the sky like the tail of an airplane. By his estimate, more than two hundred confessionals. But it was late, there were no priests around, the “Festival of Forgiveness” had ended, he wouldn’t be forgiven today.
He took a path to the right that soon curved further to the right. He picked up the pace along that deserted path, turned right again, and walked along another wide, poorly lit promenade.

He saw a sign for the Palacio de Cristal. Along the way, a young woman in a long-sleeved shirt, sitting on a bench, smiled at him. Was he attracting attention?

The Palacio de Cristal was closed. He checked out the interior through the glass doors. The exhibit, entitled “To Be Continued,” was by an artist who was born in Sarajevo, Maja Bajevic. Did it have something to do with the 15-M protests? There was a reference to Walter Benjamin, one of his theses about the philosophy of history, specifically Thesis V. He sat down on one of the steps outside the building. A quick Google search yielded this sentence: “The true image of the past escapes us, for the past is an image that sparkles for a moment, then quickly disappears.”

He got up and put his face up against one of the glass doors of the Palacio. He saw what appeared to be scaffolding, part of the exhibit, and, on top of it, words written on a plate of glass covered in dust. It was an installation called “Performance/Random Category.” The words were ephemeral, soon to be erased so that others could be written. Majnun was able to make out a quote from Antonio Machado: “Uncertain, indeed, is the future, for who knows what will happen? But uncertain, too, is the past, for who knows what has happened?”

He went back along the same route. Would the young woman still be there? Was she still sitting on the bench? Would she smile at him again?

Now, accompanied by two other young women, also dressed in long-sleeved shirts, she was talking with a young man in blue work-out clothes. Majnun passed slowly beside them and looked at the young woman, who didn’t notice him. She was concentrating on the conversation, which was in English:

“So, have you read The Book of Mormon?”

“Yes, I have, but . . . ”

The inquisitor moon and the tragic novella

Again arriving at the lake, he saw people on the other side of it sitting on the steps of the Monument to Alfonso XII. He headed over there. Feeling the warm breeze on his face, he was moved by the moon shimmering on the water. The trees beyond were outlined against a pale gray sky, cloudless and with a tenuous light.

A group of young men—the same ones from before, minus one guy and the woman in the burka—were conversing in Arabic. He went over to them and greeted them, also in Arabic. The young men were friendly and kind, and their friendliness and kindness doubled in size when they found out he was from Brazil. They wanted to steer the conversation towards soccer, but Majnun didn’t like soccer and hadn’t yet started to follow the controversies surrounding the construction of the stadiums, as he would come to do in 2013.

One of the young men had a cousin in São Paulo and for a few years had thought about living in Brazil. They exchanged thoughts about São Paulo, a city that was growing more violent than Rio. The young man smiled, looking around at all the others and especially Majnun, the corners of his lips, bordered by a thin mustache, drawing back in a subtle, ironic manner.

Majnun tried to free himself from that provocative smile with a shameless question:

“Are you all Muslim?”
Yes, they all were. But they were all from different places. One was from Libya; another was from Morocco, a city in the north near Ceuta; the bearded guy with a skullcap was from the United States; and the curly-haired blonde guy was from Lebanon.
“Lebanon?”
Majnun then told them about his connections to Lebanon and Egypt on the side of his paternal grandparents.
“With this dude, it’s his father who’s from the Middle East,” said the Libyan, pointing at the American.
“His dad was born in Yemen,” said the Moroccan.

The American remained quiet and serious.

Majnun spoke about his grandma Mona and the conversations he’d had with her about Islam, including his possible conversion.

Finally, he broached the subject that especially interested him that night. If two young, unmarried people have sexual relations, would Allah forgive them?

Where are honor and dishonor?

Upon awaking to the brightness of the day, a Thursday, August 18th, when the Pope was perhaps already in the city, he noticed that the night before he had received another email from Laila on his iPhone: “there’s no use hiding the police know that you bought the bullets.”

What should he do? It wouldn’t be an act of cowardice, but rather of courage, to leave them all behind—Laila, Carmen, Suzana, his grandparents—and disappear without a trace, continuing on to Africa or the Middle East to take part in a revolution. He would bet that that’s what the bearded American was up to. Why hadn’t he gotten his contact information?

He wasn’t going to worry. Some day, if he ever returned to Brasilia, he would explain everything. But what if Interpol had an arrest warrant out on him?

Feeling restless, he strolled through the park and bought a paper hat made in China from a Sudanese mantero. Later he took care to slip away from the police car that was scaring away all the street vendors, including the Sudanese man. He left the park and had breakfast in a bakery on the Plaza de la Independencia.

He walked over to the Paseo del Prado and came across the Thyssen-Bornemisza Museum. He spent half an hour in front of a painting by Monet, “Charing Cross Bridge,” from 1899, an afternoon, the light filtered through the winter fog, a few barges under the bridge, the silhouette of the Parliament building subtly visible in the background. He imagined throwing himself off that bridge and dissolving in that vague landscape.

“Suzana’s right. It’s horribly hot out,” he thought as he left the museum. He took off his shirt, headed towards the Prado, then turned right, backpack on his shoulders, onto Calle de las Huertas, reading quotes from writers inscribed on the pavement as he went. He finally arrived at the Plaza de Santa Ana, surrounded by restaurants and beer halls full of people.

At a table in the middle of the square he ordered una caña and a solomillo, a pork loin, which came with potatoes. Could he commit himself, for religious reasons, to stop eating such delicious meat? He could even accept that “diet is the beginning of all cures,” as the Prophet put it, but to stop eating pork because of that?

His eyelids were growing heavy. A young man at the table next to him asked him a question in English, which he didn’t understand. Majnun looked around. He had already passed through there, but the buildings didn’t seem familiar to him, it was as if he were in a dream and seeing them for the first time. His fingers were swollen, perhaps because of the heat. He thought about Suzana, about Laila. His heart beat rapidly and erratically. He felt like he was suffocating. He had to get out of there fast.

Might Carmen be his savior? If she’d had a cell phone, he would have called her. He certainly wasn’t going to call Suzana. The young man at the table next to him again tried to start up a conversation. “I’m sorry,” Majnun replied in Portuguese, “I can’t understand anything.” He called the waiter over, paid his bill, and left, trying to get away from the young man.

He slowly made his way towards the Lavapiés neighborhood, admiring the decadent façades of the buildings. After forty minutes of wandering around, he found a cheap hotel with an Internet connection.

He climbed four flights of stairs with his backpack on his shoulders and then lay down, unable to take the Spanish siesta. With his eyes glued on the ceiling and his mouth half open, he became submerged in bitter thoughts, debating the various routes his life might take, among which the only clear ones were sickness, death, or prison, unless he traveled to fight somewhere, driven by sorrow, which can sometimes be the author of noble, even heroic, acts.

Time had stopped. It couldn’t be measured by units of expectations. Furthermore, when time did pass, it didn’t use uniform units of measurement; it wasn’t systematic, it surprised one with brutal leaps. Virtue and vice, honor and dishonor, where might they be?

He thought about freeing himself from all scruples in order to experiment with blind sensation, becoming a criminal, without the weight of morality and good reputation, experiencing savage freedom. His heart fluttered when he imagined Suzana’s naked body struggling against his on the hotel bed. He should go back to the hotel and confront her, tell her everything. But what? He didn’t even know what he wanted, and knew even less how to be bad. He was bad at being bad.

Finally, he decided to make an effort to reflect rationally, as if it were another person looking at him, a critic that could observe him from a distance. He thought about the only advice that his grandpa Sérgio had given him, quoting a German philosopher: “Do that which you would want to be converted into universal law.” So, as if he had found the path, he took the Arabic Koran out of his backpack. He sat down in a chair, stretched his legs out onto the bed, placed the laptop on his thighs, and got to work. First, he would do research on the Internet to understand better the differences between Sunnis and Shiites. Then he would read some surahs in his Koran. He soon found some information: after the murder of the fourth caliph, Ali, the first Shiite imam, the caliphate fell into the hands of Muawiya, who had many followers—Sunnis, like his grandma—but he wasn’t recognized by the Shiites because, unlike Ali, the cousin and son-in-law of Mohammed, the blood of the prophet did not flow through his veins.

A skullcap does not a Muslim make

It was August 19th, Friday. He woke up early and took a long shower, while going over the night’s dreams. Carmen and Laila were mixed together in them, and Suzana inexplicably hadn’t shown up at all. For the best, he thought. She was insignificant. He never wanted to see her again. Never. Truly, never again! The mere idea of this brought him a shred of joy, which was made visible in the slight smile of the relaxed muscles of his face. He should have slept more, but he was in a good mood. He washed his feet thoroughly, even in between his toes, worried about being embarrassed if they made him wash his feet at the mosque. Friday was a day of celebration, a sanctified day, the Muslim Sunday.

He trimmed his beard and cut his fingernails and toenails in the manner indicated by the bearded American guy. He picked out his best clothes: linen pants, even if they were all wrinkled, and a blue polo shirt. Would his hat function as a substitute for a turban? He put on his dress shoes, instead of the sneakers he’d been walking around in since he’d left Brasilia.


FROM THE ORIGINAL PORTUGUESE TEXT:

Enigmas da Primavera,

de João Almino (editora Record, 2015)

Fragmento

Capítulo que promete cenas tórridas, que não são razão para ser pulado, mesmo porque promessa não é fato nem dívida

—  Vire-se pro outro lado — Suzana lhe disse de novo, pouco depois de entrarem no quarto.

Desta vez Majnun não teve dúvida: era de propósito. Suzana entrou no banheiro mal enrolada no lençol, talvez nua por baixo daquele lençol. Ele se lembrou dos quadros do Museu do Prado, e a Suzana real foi assumindo as formas da Susana dos quadros. Logo se transformou na jovem mal enrolada num lençol que contemplava uma caveira, como  no  cartão  que  Laila lhe tinha enviado. Mau pressentimento. Prenúncio de perigo.

Tirou a cueca. Quando ela saiu do banheiro, foi ao encontro dela.

—  Não — ela gritou.

Majnun a jogou violentamente sobre a cama, os dois nus, se digladiando.

—  Sou virgem — ela disse.

Era o mesmo termo que o marido de Laila tinha aplicado a ele.

—  Se você soubesse…

—  Sei. E não me interessa. Xô, galinha!

Ela tinha razão. Ele era um zero à esquerda, um merda, um cafajeste.

—  Vou desaparecer. Você nunca mais vai me ver — disse.

—  Ótimo. Já vai tarde.

A parede tremeu. Devia ser novamente o casal vizinho, dois homens musculosos pressionando a cama sobre a parede como uma máquina bate-estaca. Desta vez Majnun não conseguiu esboçar seu riso, nem Suzana deu a entender que estava ouvindo.

Ele caminhou pelas calçadas estreitas, saltando mijos e bostas de cachorro. Por que sentir-se arrasado, quando deveria estar orgulhoso da ousadia?

Suzana ia certamente comentar com Carmen. De- pois, Carmen lhe diria: “Majnun, eu fazia melhor conceito de você. Agora sei quem você é: um cafajeste.” Que vergonha! Ele era mesmo um idiota. Por que não conseguia entender as mulheres? Suzana  ia  queixar-se aos pais, a notícia se espalharia por Brasília, chegaria a seu avô Dario, a sua avó Elvira, até a sua querida avó Mona… De boca em boca se amplificaria, ele seria ex- posto como um tarado, um agressor sexual… E Laila? Será que o perdoaria?

O desejo era real, tinha de reconhecer. Não amava Suzana, disso tinha certeza, mas que tesão sentia! Só não havia demonstrado antes por timidez. Desde que a tinha

visto desfazer a mala no dia da chegada a Madri, acordava de madrugada pensando nela. Ou mais exatamente em seu corpo; melhor dizendo, em detalhes de seu corpo. E então começava mentalmente a acariciá-la naquelas partes. E não somente a acariciá-la. Achara ingenuamente que aqueles exercícios mentais seriam suficientes para acalmar seus sentidos.

O que fizera era grave, reconheceu. Ele não era aquela pessoa que avançou sobre Suzana ou, ao contrário, vai ver aquele era seu eu verdadeiro, lascivo e confuso. Viu um bar de tapas com fachada de antiga farmácia: azulejos de friso azul e fundo amarelo dos dois lados da porta, nos quais estavam desenhados um homem engravatado de um lado e uma mulher de longo vestido verde do outro, ambos fazendo propaganda de remédios. Entrou sem saber o que queria. Pronunciou frases sem sentido, em português, e conseguiu no meio delas balbuciar, com lábios tremidos, a palavra “vino”, que lhe foi trazido uma e outra vez. Bebeu até completar a dose certa e necessária de insensibilidade, anestesia da alma de quem precisava seguir caminhando pelas ruas sem saber aonde ia.

Ofegante, respirava com dificuldade, e seu coração palpitava. Devia voltar ao hotel? Desculpar-se de joelhos com Suzana? Beijar seus pés? Pressentiu numa fração de segundo que Carmen o protegeria. Não, ele não tinha futuro. Tudo perdido. Melhor que a polícia o encontras- se, que fosse julgado e jogado na prisão, onde sua vida ganharia sentido. Desligou o celular para não ser impor- tunado.

Tonto, sentiu um calafrio no calor, talvez começo de febre. Para onde caminhava? Já havia passado por aquela rua vindo no sentido contrário. Estaria dando voltas em torno ao mesmo quarteirão? Numa praça triangular com mesas na calçada, gente alegre em torno de chopes e ta- ças de vinho gesticulava sem parar. Estaria ele perdido? Não. Bastava seguir o fluxo, caminhar por onde os outros caminhavam.

Haveria perigo em tomar as ruas desertas e escuras que mais o atraíam? Logo encontrou outro fluxo de gente e de carros. Que horas seriam? Reconheceu a Gran Vía, que desceu seguindo um grupo de jovens, talvez todos muçulmanos, pois a mulher ao centro estava coberta por uma burca. Chegou à Plaza de Cibeles, de onde avistou a Puerta de Alcalá. Em minutos, entrou no Parque do Retiro, lembrando-se de que ali se realizava a festa do perdão. Era disso que precisava, de perdão. Encontraria Suzana?

Passou pelo lago, tomou à esquerda e chegou a uma alameda de confessionários brancos, formas pontiagudas apontando para o alto qual rabo de avião. Pelo que estimou, duas centenas de confessionários. Mas já era tarde, não havia padres, a Festa do Perdão havia terminado, hoje ele não seria perdoado.

Pegou um caminho à direita que logo adiante fez uma curva também à direita. Apressou o passo pelo caminho deserto, tornou a virar à direita e regressou por outra ala- meda larga e mal iluminada.

Viu uma placa indicando o Palácio de Cristal. No caminho uma moça de blusa de mangas compridas, sentada num banco, sorriu para ele. Estaria atraindo as atenções?

O Palácio de Cristal estava fechado. Olhou seu interior através das portas de vidro. A exposição, intitulada “Continuará”, era de uma artista nascida em Sarajevo, Maja Bajevic. Teria a ver com os protestos do 15-M? Havia uma referência a Walter Benjamin, a uma de suas Teses sobre a Filosofia da História, especificamente a Tese 5. Sentou-se num degrau da escada. Uma breve pesquisa no Google remeteu-o a uma frase: “A verdadeira imagem do passado nos escapa, pois o passado é uma imagem que resplandece num instante e logo desaparece.”

Levantou-se e encostou o rosto numa das portas de vidro do Palácio. Viu o que pareciam andaimes, parte da exposição, e, acima deles, palavras escritas sobre uma placa de vidro inteiramente empoeirada. Tratava-se de uma instalação, “Performance/categoria-azar”. Eram palavras efêmeras, logo apagadas para que outras viessem a ser escritas. Majnun conseguiu enxergar uma citação de Antonio Machado: “Incerto é, na verdade, o futuro. Quem sabe o que vai passar? Mas incerto é também o pretérito. Quem sabe o que passou?”

Voltou pelo mesmo caminho. A moça ainda estaria lá? Continuaria sentada no banco? Novamente sorriria para ele?

Agora, na companhia de mais duas moças igualmente com blusas de manga comprida, ela conversava com um jovem vestido com uniforme azul de ginástica. Majnun passou vagarosamente ao lado e olhou para ela, que o ignorou. Estava concentrada na conversa, feita em inglês:

—  So, have you read the Mormon’s book?

Yes, I have, but…

A lua inquisidora e a novela trágica

Chegando novamente ao lago, viu do outro lado pessoas sentadas nos degraus do Monumento a Alfonso XII. Seguiu para lá. Sentindo um vento quente no rosto, emocionou-se com a lua tremulando na água. As árvores, ao fundo, desenhavam-se sobre o céu cinza pálido, sem nu- vem e tenuemente claro.

Um grupo de rapazes — o que ele tinha visto antes, com um rapaz a menos e sem a mulher de burca — conversava em árabe. Aproximou-se e os cumprimentou, também em árabe. Os jovens foram simpáticos e gentis, e sua simpatia e gentileza dobraram de tamanho quando souberam que ele vinha do Brasil. Quiseram enveredar a conversa pelo futebol, mas Majnun não gostava de futebol e ainda não acompanhava as polêmicas sobre a construção de estádios como viria a fazer em 2013.

Um dos jovens tinha um primo em São Paulo e havia alguns anos tinha pensado em morar no Brasil. Trocaram impressões sobre São Paulo, cidade que estava ficando mais violenta do que o Rio. O rapaz sorria, observando os

demais e principalmente Majnun, e repuxava, com gesto sutil e irônico, os cantos dos lábios, margeados por um bigode fino.

Majnun quis livrar-se daquele sorriso provocador com uma pergunta despudorada:

—  Vocês são todos muçulmanos?

Sim, todos eram. Mas vinham de distintos lugares. Ele vinha da Líbia; um outro, do Marrocos, de uma cidade do norte, próxima a Ceuta; o barbudo com uma touca na cabeça, dos Estados Unidos, e o louro de cabelo frisado, do Líbano.

—  Do Líbano?

Majnun então contou suas ligações com o Líbano e o Egito, através de seus avós paternos.

—  No caso desse cara, é o pai que vem do Oriente Médio — disse o líbio, apontando para o americano.

—  O pai dele nasceu no Iêmen — disse o marroquino. O americano manteve-se calado e sério.

Majnun falou sobre sua avó Mona e as conversas que havia tido com ela sobre o Islã, inclusive sobre sua possível conversão.

Finalmente levantou um assunto que o interessava especialmente naquela noite. Se dois jovens não casados tivessem relação sexual, Alá os perdoaria?

—  Alá não é vingativo. É tolerante, sapientíssimo, como diz o Corão — falou o rapaz sorridente de bigode fino, o líbio, cujos lábios afundados nos cantos continuavam irônicos.

Bom, não se engane. Pela Charia, tanto é fácil casar como se divorciar. Mas relação sexual fora do casamento, nem pensar. Os dois deviam morrer — falou em árabe, com um perceptível sotaque, o barbudo de touca, o americano, um rapaz alto, de rosto queimado e viril, marcado por pregas laterais.

Tinha olhos expressivos, cheios de orgulho e, pareceram a Majnun, de integridade.

—  Não exagere, onde isso acontece? — perguntou o líbio, o que tinha um primo em São Paulo.

—  Tem de acontecer em todo lugar, se são muçulmanos.

—  São suas ideias radicais.

—  Está no Corão.

—  Não desse jeito. E depois é preciso prova: quatro testemunhas têm que ter visto, mas visto mesmo tudo, até a pena dentro do tinteiro, como dizem os ulemás, o que torna a regra impraticável.

—  No caso de mulheres adúlteras, não há dúvida, de- vem ser apedrejadas até morrer — argumentou o barbudo de touca, o americano de rosto queimado.

—  O Corão não menciona apedrejamento e sim cem vergastadas — esclareceu o líbio —, mas mesmo isso não faz sentido hoje em dia. Para quem cometer adultério, homens e mulheres, diz para deixá-los tranquilos caso se arrependam e se corrijam.

—  Esses excessos existem em alguns poucos lugares, como o Irã: pena de morte por apedrejamento para as adúlteras e noventa e nove chicotadas para quem mantenha relações sexuais fora do casamento — esclareceu o libanês louro de cabelo frisado.

Majnun imaginou que, além de seus avanços sobre Suzana, se fosse muçulmano naquela noite teria cometido outra transgressão.

—  É proibido tomar vinho? — perguntou.

—  Não, não é. Se você lê o Livro com atenção, conclui que o vinho pode ser fabricado e que ele traz tanto malefícios quanto benefícios. A proibição é só para o ex- cesso, que leva à intoxicação — respondeu o líbio.

—  Na verdade, um verso de Medina diz que as bebi- das inebriantes são manobras abomináveis de Satanás — defendeu o americano.

—  Não confunda o rapaz. Olha, não é porque você gosta de vinho que não pode se converter — falou o líbio.

—  E existe alguma regra sobre como se vestir? — quis saber Majnun, lembrando-se de que sua avó Mona explicou que ela sequer precisava usar véu.

—  Veja a gente — disse o líbio. — Esse cara usa touca porque quer. Para as mulheres, sim…

—  Mas a fé tem suas regras sobre vestuário, ou não tem? Pois o comportamento exterior revela a retidão do espírito. A felicidade está em imitar Maomé. Por isso a obrigação de colocar um turbante quando se está de pé — informou o americano. — Para as mulheres, a obrigação é claríssima: devem conservar seus pudores; devem cobrir o colo com seus véus e não devem mostrar seus atrativos a não ser aos maridos, os pais, os sogros, os filhos, os ir- mãos…

—  Você gravou isso para controlar sua namorada? — interrompeu o líbio.

—  O pudor também é uma virtude masculina.

—  Veja só quem fala! Onde está seu turbante, cara?

—  contestou o líbio.

—  Confesso que deveria estar usando, embora eu esteja sentado. Minha touca substitui por enquanto o turbante. E também é importante que você comece com o pé direito quando calça os sapatos.

—  Por quê? — perguntou Majnun.

—  É o que deve ser feito para que as portas da felicidade não se fechem para você — esclareceu o barbudo alto, o americano de touca. — Da mesma forma que você deve comer com a mão direita e que, quando cortar as unhas, deve começar pelo indicador da mão direita e ter- minar pelo polegar da mão direita; e que deve começar pelo dedo mindinho do pé direito e terminar pelo dedo mindinho do pé esquerdo.

Majnun notou que aqueles dois, o líbio e o barbudo americano, não se entendiam. Seriam de seitas diferentes? Parecia óbvio que o barbudo pertencia a um grupo militante, talvez um dos que ele tinha visitado pela inter- net. Como achou grosseiro perguntar diretamente, introduziu o tema de maneira sutil:

—  Queria me converter ao Islã, como disse. Mas qual Islã?

—  O Islã é um só — disse o barbudo.

—  O que quero dizer é: seria sunita? Xiita? Ismaelita? Sufi? Druso? Alauita? Salafista? Wahabista? Que diferença faz?

—  Você está fazendo confusão. Alauita também é xiita. Os ismaelitas, apesar de só reconhecerem os primeiros sete imãs do xiismo e não os doze, são xiitas. Salafistas e wahabistas também são sunitas — falou o libanês de cabelo frisado.

Explicou que os sunitas e os xiitas se dividiam na questão da sucessão do Profeta. Para os xiitas, os imãs eram sucessores de Ali, primo e genro de Maomé, bem como quarto califa. Dentro do próprio xiismo também tinha havido divergências a propósito dos sucessores: o sexto imã, Ja’far as-Sadiq, designou como sucessor seu filho primogênito Ismael, mas, como este morreu antes do pai, a sucessão ficou com seu outro filho, Musa al-Kazim, reconhecido como verdadeiro sucessor pela maior parte dos xiitas. Outros acreditaram, porém, que Ismael não havia morrido, apenas se ocultado, e são seus segui- dores. Por isso são conhecidos como ismaelitas. Acham que Ismael voltará no final dos tempos. Dissimulam sua religião, se são obrigados a isso quando perseguidos, para se precaver e se resguardar, o que está baseado no Corão.

O marroquino, que havia estado calado, sugeriu, com olhar profundo e voz suave, que Majnun fosse a um centro, do qual fez menção de lhe dar o endereço, porém o líbio se opôs imediatamente, aconselhando Majnun a não se envolver “naquilo”. Sugeriu que fosse a uma mesquita.

—  Qual mesquita? — perguntou Majnun.

—  Vá à Mesquita da M-30, que todo mundo conhece e você pode localizar facilmente.

Deitado num banco do parque, usando sua mochila como travesseiro e olhando uma lua inquisidora, Majnun adormeceu com a ideia de que a única salvação estava em sua novela. Lá haveria lugar para ele, Suzana, Carmen e Laila.

Para tornar os quatro personagens irreconhecíveis, inclusive ele próprio, começou por vesti-los com suas mantas e respectivos turbantes e então transportou-os à Idade Média, mais precisamente a Granada. Salpicou uma ou outra palavra em árabe para impressionar o leitor. Fez de Suzana prisioneira cristã do sultão, ele próprio, Majnun, que as- sumiu o papel do pai de Boabdil, o sultão Abul Hassan, o vigésimo primeiro e penúltimo sultão de Granada. Ele, Majnun, não tinha uma barba tão espessa quanto a do sultão? Não era igualmente mau-caráter e violento? Não tinha o coração tão duro quanto o dele? Não era fato que ele trocou sua mulher, Fátima, por uma prisioneira cristã, Isabel de Solís, que passou a se chamar Soraya, assim como ele, Majnun, trocou injustamente Laila por Suzana? Suzana poderia ser Soraya, estrela da madrugada, e com ela Majnun teria dois filhos, Saab e Nasr, os mesmos que o sultão teve com Soraya. Mas seria justo comparar Laila com Fátima, também conhecida como Aixa al-Hurra, a liberta, honrada e honesta? Laila era menos virtuosa e mais atraente do que ela, mas na ficção tudo cabia. Cabia sobretudo descrever-se como um depravado. Pois Abu-l-Hassan Ali não havia uma vez convidado membros da corte para assistir a um banho de Soraya e depois oferecido a cada um deles uma tigela da água em que ela se havia banhado? Não bebia vinho e fumava haxixe em festas com escravas? Não era verdade que durante os treze primeiros séculos da Hégira, segundo a Charia, o homem podia comprar escravas e ter relações sexuais com elas? Que até a abolição do califado por Ata-turk em 1924 os califas tinham seus haréns, “reservas” de centenas ou mesmo de milhares de mulheres?

A novela seria realista e trágica. Trágica para ele, personagem principal, que perderia a guerra e o trono para seu filho. Para Suzana, aliás Soraya, seria o contrário: ela triunfaria quando Boabdil capitulasse diante dos cristãos; voltaria a ter seu nome cristão e batizaria seus dois filhos, que passariam a ser infantes de Granada com os nomes Don Fernando e Don Juan.

Majnun sentiu merecer esse fim trágico. Se nunca ha- via desempenhado os papéis execráveis do sultão, tinha sido apenas por não ser sultão, viver no século XXI e Suzana não ser sua escrava. Ele era vil e humano como a maldade, ou era a maldade mesma.

Pensou em anotar esses pensamentos, acrescentando uma ressalva: se não modificasse aquela novela, ele seria injusto com Laila, relegada ao papel de uma sultana abandonada, e sobretudo com Carmen, esquecida depois das primeiras frases. Mas nada anotou, pois estava escuro, e ele já instalado e sonolento no banco do parque.

Onde estão a honra e a desonra?

Ao acordar com a claridade do dia, uma quinta-feira, 18 de agosto, quando talvez o Papa já estivesse na cidade, notou que na noite anterior havia entrado outro e-mail de Laila no seu iPhone: “nao adianta se esconder a policia sabe que vc comprou as balas.”

O que fazer? Não seria um ato de covardia e sim, ao contrário, de coragem abandonar todos — Laila, Carmen, Suzana, seus avós —, desaparecer sem deixar traço e seguir para um país da África ou do Oriente Médio para ajudar numa revolução. Apostava que era isso que o ame- ricano barbudo estava fazendo. Por que não havia ficado com o contato dele?

Não ia se preocupar. Algum dia, se voltasse ao Brasil, esclareceria tudo. E se houvesse uma ordem de prisão pela Interpol?

Inquieto, passeou pelo parque e comprou de um mantero sudanês um chapéu de papel feito na China. Depois tomou o cuidado de se desviar do carro da polícia que afugentava os vendedores ambulantes, inclusive o sudanês. Saiu do parque e tomou café da manhã numa padaria da Plaza de la Independencia.

Caminhou até o Paseo del Prado e entrou no Museu Thyssen-Bornemisza. Passou meia hora diante de um quadro de Monet, “A ponte de Charing Cross”, de 1899, uma tarde, a luz filtrada através da bruma do inverno, algumas barcaças sob a ponte, a silhueta do Parlamento insinuando-se ao fundo. Imaginou jogar-se daquela ponte e se dissolver na paisagem imprecisa.

“Suzana tem razão. Está horrivelmente quente”, pen- sou, ao sair. Tirou a camisa, seguiu em direção ao Pra- do, subiu à direita, mochila nas costas, pela Calle de las Huertas, e foi lendo frases de escritores inscritas no calçamento. Deu por fim na Plaza de Santa Ana, cercada de restaurantes e cervejarias, cheia de gente.

Numa mesa em plena praça, pediu una caña e solomillo, um lombo de porco, acompanhado de batatas cozidas. Poderia se comprometer por razões religiosas a deixar de comer uma carne deliciosa? Até poderia aceitar que “a dieta é o começo de todo tratamento”, como queria o Profeta, mas para isso deixar de comer carne de porco?

As pálpebras começaram a pesar. Um rapaz da mesa ao lado lhe fez uma pergunta em inglês, que ele não entendeu. Majnun olhou ao redor. Já havia passado por ali, mas os prédios não lhe pareciam familiares, era como se os visse pela primeira vez e estivesse num sonho. Os dedos de suas mãos estavam inchados, talvez por causa do calor. Pensou em Suzana, em Laila. Seu coração bateu apressado e confuso. Sentiu-se asfixiado, tinha de sair dali rapidamente.

Poderia Carmen ser sua salvadora? Se ela tivesse celular, ligaria para ela. Para Suzana é que não. De novo o rapaz da mesa ao lado tentou iniciar uma conversa. “Desculpe”, Majnun respondeu, em português, “não entendo nada”. Chamou o garçom, pagou a conta e saiu, fugindo do rapaz.

Desceu lentamente na direção do bairro de Lavapiés, admirando as fachadas decadentes. Depois de quarenta minutos perambulando, encontrou um hotel barato com conexão de internet.

Subiu quatro escadas com a mochila nas costas e se deitou, sem conseguir fazer a sesta espanhola. Com olhos pregados no teto e boca semiaberta, afundou-se em pensamentos amargos, questionando-se sobre os rumos da vida, entre os quais os únicos claros eram a doença, a morte ou a prisão, a menos que partisse para lutar em algum lugar impelido pela mágoa, que pode ser autora de atos nobres, heroicos às vezes.

O tempo estava parado. Não podia ser medido com o metro das expectativas. Além disso, quando passava, não usava medidas uniformes, não era ordeiro e o surpreendia com saltos brutais. A virtude e o vício, a honra e a desonra, onde estariam?

Pensou em se desfazer dos escrúpulos para provar o sentimento cego, ser bandido, sem o peso da moral e da boa reputação, experimentando a liberdade selvagem. Seu coração palpitou quando imaginou o corpo nu de Suzana se debatendo na cama contra o seu. Ele devia voltar ao hotel e enfrentá-la; dizer-lhe tudo. Mas o quê? Ele não sabia o que queria e muito menos sabia ser mau. Era um mau mau.

Finalmente, resolveu fazer um esforço de reflexão racional, como um outro de si mesmo, um crítico que pudesse observá-lo a distância. Pensou no único conselho que seu avô Sérgio tinha lhe dado, citando um filósofo alemão: “Faze aquilo que quiseres ver convertido em lei universal.” Então, como se tivesse encontrado o caminho, tirou da mochila seu Corão em árabe. Sentou-se na cadeira, estirou as pernas sobre a cama, apoiou o computador sobre as coxas e se pôs à tarefa. Primeiro, faria sua pesquisa na internet para tentar entender melhor as diferenças entre sunitas e xiitas. Depois leria suras no seu Corão. Logo encontrou uma informação: com o assassinato do quarto califa, Ali, primeiro imã xiita, o califado ficou em mãos de Muawiya, que teve muitos seguidores

os sunitas, como sua avó — mas não foi reconhecido pelos xiitas, porque, ao contrário de Ali, primo e genro de Maomé, nas suas veias não corria o sangue do Profeta.

A touca não faz o muçulmano

Era 19 de agosto, sexta-feira. Acordou cedo e tomou um longo banho, enquanto repassava os sonhos da noite. Neles Laila e Carmen estavam confundidas, e Suzana inexplicavelmente não havia aparecido. Melhor, pensou. Ela era insignificante. Nunca mais queria vê-la. Nunca. Nunca mais mesmo! Essa mera ideia lhe trouxe uma ponta de alegria que transpareceu no leve sorriso dos músculos relaxados do rosto. Devia ter dormido mais, porém se sentia bem-disposto. Lavou os pés entre os dedos, pois não queria passar vergonha se na Mesquita o fizessem lavar os pés. Sexta-feira era dia de celebração, dia santificado, o domingo dos muçulmanos.

Aparou a barba e cortou as unhas das mãos e dos pés como indicado pelo barbudo americano. Escolheu as melhores roupas: calça de linho, mesmo amassada, e camisa polo azul. Será que seu chapéu podia substituir um turbante? Pôs os sapatos, em vez dos tênis com que andara desde que havia saído de Brasília.

Depois de comer algo no Café Barbieri, estudou o mapa no Google e seguiu de ônibus, Corão debaixo do braço, em direção à Mesquita da M-30, a Mesquita Omar de Madri.

[:es]Enigmas de la Primavera de João Almino
(Editorial Record, 2015)

Capítulo que promete escenas tórridas, que no hay razón para saltarse, incluso porque una promesa no es un hecho ni una deuda

— Date la vuelta del otro lado — Suzana le dijo de nuevo, poco después de entrar en la habitación.
Esta vez Majnun no tuvo duda: era a propósito. Suzana entró en el baño, mal envuelta en una sábana, quizá desnuda por debajo de aquella sábana. Él se acordó de las obras del Museo del Prado y la Suzana real fue asumiendo las formas de la Susana de las pinturas. Pronto se volvió una joven mal envuelta en una sábana que contemplaba una calavera, como en la postal que Laila le había enviado. Una corazonada. Prenuncio de peligro.
Se quitó el calzoncillo. Cuando ella salió del baño, se fue a su encuentro.
— No — gritó ella.
Majnun la arrojó con violencia sobre la cama, ambos desnudos, digladiando.
— Soy virgen — dijo.
Protestas fingidas, pensó él. La giró de espaldas, tirándola hasta el borde de la cama.
Saltemos los detalles.
— Cabrón — repitió ella. — Bruto. Fue una violación — dijo ella, llorando. — Me has violado, hijo de puta.
— No. Solo lo intenté.
— No hables conmigo nunca más — dijo, llorando. Y entonces le saltaron lágrimas y más lágrimas, unas de odio, otras de humillación, otras de rabia de sí misma por haber permitido que aquello sucediera, aunque no hubiera sucedido.
Mientras ella fue al baño, desnuda, para lavarse la espalda, él escribió en un pedacito de papel: “La alegría y la tristeza duermen en la misma cama”. Echó el papel dentro de la mochila.
— Vete de aquí — dijo ella, volviendo del baño, envuelta en una toalla.
— ¿A dónde?
— Al infierno. Aquí sí que no te quedas.
— ¿No eras tú la que quería cambiarse de hotel?
Ella alcanzó una chancla y se la arrojó con toda su fuerza sobre el rostro, lo que a él le pareció una muestra de cariño, como cuando ella lo había llamado bobo.
Ella puso la toalla de lado y se cubrió con la sábana.
— Hablo en serio. Desaparece de mi vida—dijo, con gritos llorosos.
— Disculpa, es que tú eres…
Pensó en varias jergas que denotaban excitación, pero optó por palabras sensatas, “eres guapa”, agregó, con la voz sofocada por el arrepentimiento.

— Para. ¡Basta, canalla!
Era el mismo término que el marido de Laila le había aplicado a él.
— Si tú supieras…
— Lo sé. Y no me interesa. ¡Desaparece de mi vida, gallina!
Ella tenía razón. Él era un cero a la izquierda, un mierda, un canalla.
— Voy a desaparecer. Nunca más volverás a verme – dijo.
— Genial. Ya estás tardando
La pared tembló. Debía de ser de nuevo la pareja vecina, dos hombres musculosos presionando la cama sobre la pared, como si fuera una máquina pilotera. Esta vez, Majnun no consiguió esbozar su risa, ni Suzana dio a entender que estaba oyendo.
Él caminó por las aceras estrechas, saltando meos y cacas de perro. ¿Por qué sentirse aniquilado, cuando debería estar orgulloso de la osadía?
Suzana iba, con certeza, a comentarlo con Carmen. Después, Carmen le diría: “Majnun, tenía un mejor concepto de ti. Ahora sé quién eres: un canalla”. ¡Qué vergüenza! Él era de verdad un idiota. ¿Por qué no conseguía entender a las mujeres? Suzana iba a quejarse a sus padres, la noticia se esparciría por Brasília, llegaría a su abuelo Darío, a su abuela Elvira, incluso hasta su querida abuela Mona… De boca en boca se amplificaría, él estaría expuesto como un violador, un agresor sexual… ¿Y Laila? ¿Le perdonaría?
El deseo era real, había que reconocerlo. ¡No amaba a Suzana, de eso estaba seguro, pero lo calentaba! Solo no lo había demostrado antes, dada su timidez. Desde el momento en el que la había visto deshacer la maleta el día de su llegada a Madrid, se despertaba de madrugada pensando en ella. O más exactamente en su cuerpo, mejor dicho, en los detalles de su cuerpo. Y entonces, comenzaba mentalmente a acariciarla en aquellas partes. Y no solamente a acariciarla. Creía ingenuamente que aquellos ejercicios mentales serían suficientes para calmar sus sentidos.
Lo que había hecho era grave, lo reconoció. Él no era aquella persona que se había abalanzado sobre Suzana o, al contrario, tal vez aquel era su verdadero yo, lascivo y confuso. Vio un bar de tapas con la fachada de una antigua farmacia: baldosa de filete azul y fondo amarillo a ambos lados de la puerta, en los que estaban dibujados un hombre encorbatado de un lado y una mujer con un vestido largo verde del otro, ambos haciendo publicidad de medicamentos. Entró sin saber lo que quería. Profirió frases sin sentido, en portugués, y logró entre ellas balbucear, con labios temblorosos, la palabra “vino”, que le fue traído una y otra vez. Bebió hasta completar la dosis cierta y necesaria de insensibilidad, anestesia del alma de quien necesitaba seguir caminando por las calles sin saber adónde iba.
Jadeante, respiraba con dificultad, y su corazón palpitaba. ¿Debía volver al hotel? ¿Disculparse de rodillas con Suzana? ¿Besar sus pies? Presintió, en una fracción de segundo, que Carmen lo protegería. No, él no tenía futuro. Todo estaba perdido. Sería mejor que la policía lo encontrara, que fuera juzgado y arrojado a la cárcel, donde su vida cobraría sentido. Apagó el móvil para no ser molestado.
Mareado, sintió un escalofrío en el calor, tal vez unas décimas de fiebre. ¿Hacia dónde caminaba? Ya había pasado por aquella calle viniendo en dirección contraria. ¿Estaría dando vueltas alrededor de la misma manzana? En una plaza triangular, con mesas en la acera, gente alegre alrededor de cañas y copas de vino gesticulaba sin cesar. ¿Estaría perdido? No. Bastaba con seguir el flujo, caminar por donde los otros caminaban.
¿Habría peligro por coger las calles desiertas y oscuras que más le atraían? Pronto encontró otro flujo de gente y de coches. ¿Qué hora sería? Reconoció la Gran Vía, que bajó siguiendo a un grupo de jóvenes, tal vez todos musulmanes, puesto que la mujer del centro estaba cubierta por un burka. Llegó a la Plaza de Cibeles, desde donde vio la Puerta de Alcalá. Pasados unos minutos, entró en el Parque del Retiro, acordándose de que allí se realizaba la fiesta del perdón. Era eso lo que necesitaba, el perdón. ¿Encontraría a Suzana?
Pasó por el lago, cogió a la izquierda y llegó a una alameda de confesionarios blancos, formas puntiagudas señalando hacia lo alto, cual cola de avión. Por lo que estimó, habría dos centenas de confesionarios. Pero ya era tarde, no había curas, la Fiesta del Perdón ya había terminado, hoy él no sería perdonado.
Cogió un camino a la derecha, que un poco más adelante hacía una curva también a la derecha. Apresuró el paso por el camino desierto, una vez más giró a la derecha y volvió por otra alameda ancha y mal iluminada.
Vio una placa que indicaba Palacio de Cristal. En el camino una chica de blusa de manga larga, sentada en un banco, le sonrió. ¿Estaría atrayendo las atenciones?
El Palacio de Cristal estaba cerrado. Miró su interior a través de las puertas de cristal. La exposición, titulada“Continuará”, era de una artista nacida en Sarajevo, Maja Bajevic. ¿Tendría relación con las protestas del 15-M? Había una referencia a Walter Benjamin, a una de sus Tesis sobre Filosofía de la Historia, específicamente la Tesis 5. Se sentó en un peldaño de la escalera. Una breve investigación en Google le remitió a una frase: “La verdadera imagen del pasado se nos escapa, pues el pasado es una imagen que resplandece en un instante y luego desaparece”.
Se levantó y apoyó el rostro en una de las puertas de cristal del Palacio. Vio lo que parecían andamios, parte de la exposición y, por encima de ellos, palabras escritas sobre una placa de vidrio completamente polvorienta. Se trataba de una instalación, “Performance / categoría-mala suerte”. Eran palabras efímeras, enseguida borradas para que otras pudieran ser escritas. Majnun pudo ver una cita de Antonio Machado: “Incierto es, en realidad, el futuro. ¿Quién sabe lo que va a pasar? Pero incierto es también el pretérito. ¿Quién sabe lo qué pasó?”
Volvió por el mismo camino. ¿La chica aún estaría allá? ¿Seguiría sentada en el banco? ¿Le sonreiría nuevamente?
Ahora, en compañía de dos chicas más, también con blusas de manga larga, ella hablaba con un joven que llevaba un uniforme azul de gimnasia. Majnun pasó muy despacio por su lado y la miró, pero ella lo ignoró. Estaba concentrada en la conversación que era en inglés:
— So, have you read the Mormon’s book?
Yes, I have, but…

La luna inquisidora y la novela trágica
Al llegar de nuevo al lago, vio al otro lado personas sentadas en los peldaños del Monumento a Alfonso XII. Siguió hacia allí. Sintiendo un viento caliente en el rostro, se emocionó con la luna temblando en el agua. Los árboles, al fondo, se dibujaban sobre el cielo gris pálido, sin nubes y tenuemente claro.
Un grupo de chicos – que había visto antes, con un chico menos y sin la mujer del burka – hablaba en árabe. Se acercó y los saludó, también en árabe. Los jóvenes fueron simpáticos y amables, y su simpatía y amabilidad se redobló cuando se enteraron de que venía desde Brasil. Quisieron encaminar la charla hacia el fútbol, pero a Majnun no le gustaba el fútbol y aún no seguía las polémicas sobre la construcción de estadios como haría en 2013.
Uno de los jóvenes tenía un primo en São Paulo y hacía algunos años había pensado en vivir en Brasil. Intercambiaron impresiones sobre São Paulo, ciudad que se estaba volviendo más violenta que Rio. El chico sonreía, observando a los demás, y principalmente a Majnun, y estiraba, con gesto sutil e irónico, las comisuras de los labios bordeados por un fino bigote.
Majnun quiso librarse de aquella sonrisa provocadora con una pregunta impúdica:
— ¿Sois todos musulmanes?
Sí, todos lo eran. Pero venían de distintos lugares. Él venía de Libia; otro de Marruecos, de una ciudad del norte, cercana a Ceuta; el barbudo, que llevaba un gorro en la cabeza, de los Estados Unidos, y el rubio de pelo rizado, del Líbano.
— ¿Del Líbano?
Majnun, entonces, les contó sus vínculos con el Líbano y Egipto, por parte de sus abuelos paternos.
— En el caso de este tipo, es el padre que viene de Oriente Medio — dijo el libio, apuntando al estadounidense;
— Su padre nació en Yemen — dijo el marroquí. El estadounidense se mantuvo callado y serio.
Majnun habló sobre su abuela, Mona, y las conversaciones que había tenido con ella sobre el Islam, incluso sobre su posible conversión.
Por fin, expuso un tema que le interesaba, sobre todo, aquella noche. Si dos jóvenes no casados tuviesen una relación sexual, ¿Alá les perdonaría?
— Alá no es vengativo. Es tolerante, sapientísimo, como dice El Corán – dijo el chico sonriente de bigote fino, el libio, cuyos labios, hundidos en las comisuras, seguían siendo irónicos.
— Bueno, no te engañes. Por la Sharia, es tan fácil casarse como divorciarse. Pero relaciones sexuales fuera del matrimonio, ni pensar. Los dos debían morir – dijo en árabe, con un perceptible acento, el barbudo del gorro, el estadounidense, un chico alto, de rostro quemado y viril, marcado por pliegues laterales.
Tenía ojos expresivos, llenos de orgullo y le parecieron, a Majnun, de integridad.
— No exageres, ¿dónde sucede eso? — preguntó el libio, el que tenía un primo en São Paulo.
— Tiene que suceder en todas partes, si son musulmanes.
— Son sus ideas radicales.
— Está en El Corán.
— No de esa manera. Y después, son necesarias pruebas: cuatro testigos tienen que haberlo visto, pero haberlo visto todo todo, hasta la pluma dentro del tintero, como dicen los ulemas, lo que hace la regla impracticable.
— En el caso de mujeres adúlteras, no hay duda, deben ser apedreadas hasta la muerte — argumentó el barbudo del gorro, el estadounidense de rostro quemado.
— El Corán no menciona apedreamiento y sí cien vergajazos — aclaró el libio —, pero incluso eso no tiene sentido hoy en día. Para los que cometen adulterio, tanto hombres como mujeres, dice que hay que dejarlos tranquilos si se arrepienten y se corrigen.
— Esos excesos existen en unos pocos lugares, como en Irán: Pena de muerte por apedreamiento para las adúlteras y noventa y nueve latigazos para quien mantenga relaciones sexuales fuera del matrimonio — explicó el libanés rubio de pelo rizado.
Majnun imaginó que, además de sus aproximaciones a Suzana, si fuera musulmán, aquella noche, habría cometido otra violación.
— ¿Está prohibido tomar vino? — preguntó
— No, no está. Si lees el libro con atención, concluye que el vino puede ser fabricado y que produce tanto daños como beneficios. La prohibición es solo para el exceso, que conduce a la intoxicación – respondió el libio.
— En realidad, un verso de Medina dice que las bebidas embriagantes son maniobras abominables de Satanás — defendió el estadounidense.
— No confundas al chico. Mira, no es porque te gusta el vino que no puedes convertirte — dijo el libio.
— ¿Y hay alguna regla sobre cómo vestirse? — quiso saber Majnun, acordándose de que su abuela Mona le había explicado que ella ni tan siquiera necesitaba usar el velo.
— Míranos — dijo el libio. — Este tipo lleva gorro porque quiere. Para las mujeres, sí…
— Pero la fe tiene sus reglas sobre el vestuario, ¿o no las tiene? Puesto que el comportamiento exterior revela la rectitud del espíritu. La felicidad está en imitar a Mahoma. Por eso la obligación de ponerse un turbante cuando se está de pie — informó el estadounidense. — Para las mujeres, la obligación está muy clara: deben preservar sus pudores; deben cubrir el cuello con sus velos y no deben mostrar sus atractivos a no ser a sus maridos, padres, suegros, hijos, hermanos…
— ¿Grabaste eso para controlar a tu novia? — interrumpió el libio.
— El pudor también es una virtud masculina.
— ¡Mira quién habla! ¿Dónde está tu turbante, tío?— Contestó el libio.
— Confieso que debería llevarlo puesto, aunque esté sentado. Mi gorro sustituye, por ahora, al turbante. Y también es importante que comiences con el pie derecho cuando te calzas los zapatos.
— ¿Por qué? — preguntó Majnun.
— Es lo que se debe hacer para que las puertas de la felicidad no se te cierren — esclareció el barbudo alto, el estadounidense de gorro.
— Del mismo modo que debes comer con la mano derecha y que, al cortarte las uñas, debes comenzar por el dedo índice de la mano derecha y terminar por el pulgar de la mano derecha; y que debes comenzar por el dedo meñique del pie derecho y terminar por el dedo meñique del pie izquierdo.

Majnun notó que aquellos dos, el libio y el barbudo estadounidense, no se entendían. ¿Serían de sectas diferentes? Parecía obvio que el barbudo pertenecía a un grupo militante, tal vez uno de los que había visitado por internet. Como le pareció grosero preguntarle directamente, introdujo el tema de manera sutil:
— Quería convertirme al Islam, como ya he dicho. Pero, ¿qué Islam?
— El Islam es uno solo — dijo el barbudo.
— Lo que quiero decir es: ¿sería sunita? ¿Chiita? ¿Ismaelita? ¿Sufí? ¿Druso? ¿Alauita? ¿Salafista? ¿Wahabí? ¿Qué diferencia hay?
— Te estás confundiendo. Alauita también es chiita. Los ismaelitas, a pesar de reconocer solo a los primeros siete imanes del chiismo y no a los doce, son chiitas. Salafistas y wahabíes también son sunitas — Dijo el libanés de pelo rizado.
Explicó que los sunitas y chiitas se dividían en la cuestión de la sucesión del Profeta. Para los chiitas, los imanes eran sucesores de Ali, primo y yerno de Mahoma, así como cuarto califa. Dentro del propio chiismo, también habían existido divergencias a propósito de los sucesores: el sexto imam, Já’far as-Sadiq, designó como sucesor a su hijo primogénito Ismael, pero, como este se murió antes de su padre, la sucesión se quedó con su otro hijo, Musa al-Kazim, reconocido como verdadero sucesor por la mayor parte de los chiitas. Otros creyeron, sin embargo, que Ismael no había muerto, que apenas se estaba ocultando, y son sus seguidores. Por esto son conocidos como ismaelitas. Creen que Ismael regresará en el final de los tiempos. Encubren su religión, si están obligados a hacerlo cuando son perseguidos, para prevenirse y resguardarse, lo que está basado en El Corán.
El marroquí, que había permanecido en silencio, sugirió, con una profunda mirada y voz suave, que Majnun fuera a un centro, del cual tuvo la intención de darle la dirección, no obstante el libio se opuso de inmediato, aconsejándole a Majnun que no se involucrase “en aquello”. Le sugirió que fuese a una mezquita.
— ¿Qué mezquita? — le preguntó Majnun.
— Vete a la Mezquita de la M-30, que todo el mundo conoce y puedes localizarla con facilidad.
Acostado en un banco del parque, usando su mochila como almohada y mirando una luna inquisidora, Majnun se adormeció con la idea de que la única salvación estaba en su novela. Allí habría lugar para él, Suzana, Carmen y Laila.
Para hacer los cuatro personajes irreconocibles, incluyéndose a sí mismo, empezó por vestirlos con sus mantas y sus respectivos turbantes y, luego, los trasladó a la Edad Media, más concretamente a Granada. Salpicó alguna que otra palabra en árabe para impresionar al lector. Hizo a Suzana prisionera cristiana del sultán, él mismo, Majnun, quien asumió el papel del padre de Boabdil, el sultán Abul Hassan, el vigésimo primero y penúltimo sultán de Granada. Él, Majnun, ¿no tenía una barba tan espesa como la del sultán? ¿No era del mismo modo malvado y violento? ¿No tenía el corazón tan duro como el del sultán? ¿No era cierto que cambió a su mujer, Fátima, por una prisionera cristiana, Isabel de Solís, que pasó a llamarse Soraya, así como él, Majnun, cambió injustamente a Laila por Suzana? Suzana podría ser Soraya, estrella de la madrugada, y con ella Majnun tendría dos hijos, Saab y Nasr, los mismos que el sultán tuvo con Soraya. Pero, ¿sería justo comparar a Laila con Fátima, también conocida como Aixa al-Hurra, la libre, honrada y honesta? Laila era menos virtuosa y más atractiva que ella, pero en la ficción todo era posible. Cabía, sobre todo, describirse como un depravado. Pues, ¿Abu-l-Hassan Ali no había invitado una vez a los miembros de la corte para asistir a un baño de Soraya y después les había ofrecido, a cada uno de ellos, un cuenco del agua en la que ella se había bañado? ¿No bebía vino y fumaba hachís en fiestas con las esclavas? ¿No era verdad que durante los trece primeros siglos de la Hégira, según la Sharia, el hombre podía comprar esclavas y tener relaciones sexuales con ellas? ¿Que hasta la abolición del califato, por Ataturk en 1924, los califas tenían sus harenes,“reservas” con centenas o incluso millares de mujeres?
La novela sería realista y trágica. Trágica para él, personaje principal, que perdería la guerra y el trono en favor de su hijo. Para Suzana, o sea Soraya, sería lo contrario: ella triunfaría cuando Boabdil capitulase ante los cristianos; volvería a recuperar su nombre cristiano y bautizaría a sus dos hijos, que se pasarían a ser infantes de Granada, con los nombres de don Fernando y don Juan.
Majnun sintió merecer ese fin trágico. Si nunca había desempeñado los papeles execrables del sultán, había sido apenas por no ser sultán, vivir en el siglo XXI y Suzana no ser su esclava. Él era vil y humano como la maldad, o era la propia maldad.
Pensó en anotar esos pensamientos, añadiendo una advertencia: si no modificase aquella novela, sería injusto con Laila, relegada al papel de una sultana abandonada y, sobre todo, con Carmen, olvidada tras las primeras frases. Pero no anotó nada, ya que estaba oscuro y ya se había instalado y estaba somnoliento en el banco del parque.

¿Dónde están el honor y el deshonor?
Al despertarse con la claridad del día, un jueves, 18 de agosto, cuando quizás el Papa ya estuviese en la ciudad, se dio cuenta de que la noche anterior había entrado otro e-mail de Laila en su iPhone: “No sirve de nada esconderse, la policía sabe que tú compraste las balas”.
¿Qué hacer? No sería un acto de cobardía y sí, al contrario, de valentía, abandonar a todos — Laila, Carmen, Suzana, sus abuelos —, desaparecer sin dejar rastro y trasladarse a un país de África o de Oriente Medio para ayudar en una revolución. Apostaba que era eso lo que el estadounidense barbudo estaba haciendo. ¿Por qué no se había quedado con su contacto?
No iba a preocuparse. Algún día, si volviera a Brasil, iba a aclararlo todo. ¿Y si hubiera una orden de prisión por parte de Interpol?
Inquieto, paseó por el parque y se compró de un mantero sudanés un sombrero de papel hecho en China. Después, tuvo cuidado de desviarse del coche de la policía que ahuyentaba a los vendedores ambulantes, inclusive al sudanés. Salió del parque y desayunó en una panadería de la Plaza de la Independencia.
Caminó hasta el Paseo del Prado y entró en el Museo Thyssen-Bornemisza. Pasó media hora delante de un cuadro de Monet, “El puente de Charing Cross”, de 1899, una tarde, la luz se filtraba a través de la bruma del invierno, unas barcazas bajo el puente, la silueta del Parlamento insinuándose al fondo. Se imaginó tirarse desde aquel puente y diluirse en el paisaje impreciso.
“Suzana tiene razón. Hace un calor infernal”, pensó al salir. Se quitó la camisa, siguió en dirección al Prado, subió a la derecha, con la mochila en la espalda, por la Calle de las Huertas, y fue leyendo frases de los escritores, inscritas en la calzada. Salió, por fin, en la Plaza de Santa Ana, rodeada de restaurantes y cervecerías, llena de gente.
En una mesa en plena plaza, pidió una caña y solomillo, un lomo de cerdo, acompañado de patatas cocidas. ¿Podría comprometerse, por razones religiosas, a dejar de comer una carne deliciosa? Incluso podría aceptar que “la dieta es el inicio de todo tratamiento”, como quería el Profeta, pero, para eso, ¿dejar de comer carne de cerdo?
Los párpados comenzaron a pesar. Un chico de la mesa de al lado le hizo una pregunta en inglés, que no entendió. Majnun miró a su alrededor. Ya había pasado por allí, por ende los edificios no le parecían familiares, era como si los viera por primera vez y estuviera en un sueño. Los dedos de sus manos estaban hinchados, tal vez a causa del calor. Pensó en Suzana, en Laila. Su corazón latió apresurado y confuso. Se sintió asfixiado, tenía que salir de allí rápidamente.
¿Podría ser Carmen su salvadora? Si ella tuviera móvil, la llamaría. A Suzana, no. De nuevo, el chico de la mesa de al lado trató de entablar una conversación. “Perdón”, Majnun le contestó, en portugués, “no entiendo nada”. Llamó al camarero, pagó la cuenta y se fue huyendo del chico.
Bajó lentamente hacia el barrio de Lavapiés, admirando las fachadas decadentes. Después de cuarenta minutos deambulando, encontró un hotel barato con conexión a internet.
Subió cuatro escaleras con la mochila en la espalda y se acostó, sin lograr echar la siesta española. Con los ojos pegados al techo y la boca entreabierta, se hundió en pensamientos amargos, preguntándose sobre los rumbos de la vida, entre los cuales los únicos claros eran la enfermedad, la muerte o la cárcel, a menos que partiera para luchar en algún lugar impelido por la pena, que puede ser la autora de actos nobles, heroicos en ocasiones.
El tiempo estaba parado. No se podía medir con el metro de las expectativas. Además de eso, cuando pasaba, no empleaba medidas uniformes, era desordenado y lo sorprendía con saltos brutales. La virtud y el vicio, la honra y la deshonra, ¿dónde estarían?
Pensó en deshacerse de los escrúpulos para probar el sentimiento ciego, ser bandido, sin el peso de la moral ni de la buena reputación, probando la libertad salvaje. Su corazón palpitó cuando imaginó el cuerpo desnudo de Suzana, debatiéndose en la cama, contra el suyo. Él debía volver al hotel y enfrentarla; decirle todo. Pero, ¿qué? Él no sabía lo que quería ni mucho menos sabía ser malo. Era un malo malo.
Finalmente, decidió hacer un esfuerzo de reflexión racional, como fuera de sí mismo, un crítico que pudiera observarlo en la distancia. Pensó en un único consejo que su abuelo Sergio le había dado, citando a un filósofo alemán: “Haz aquello que quieras ver convertido en ley universal”. Entonces, como si hubiera encontrado el camino, sacó de la mochila su Corán en árabe. Se sentó en la silla, estiró las piernas sobre la cama, apoyó el ordenador sobre los muslos y se puso manos a la obra. Primero, haría su investigación en internet, para intentar comprender mejor las diferencias entre sunitas y chiitas. Enseguida leería suras en su Corán. Luego encontró una información: con el asesinato del cuarto califa, Ali, primer imán chiita, el califato quedó en manos de Muawiya, que tuvo muchos seguidores, los sunitas, como su abuela — pero no fue reconocido por los chiitas, porque, al contrario de Ali, primo y yerno de Mahoma, por sus venas no corría la sangre del Profeta.

El gorro no hace al musulmán
Era 19 de agosto, viernes. Se despertó temprano y se dio una larga ducha, mientras repasaba los sueños de la noche. En ellos, Laila y Carmen estaban confundidas y Suzana, inexplicablemente, no había aparecido. Mejor, pensó. Ella era insignificante. No quería verla nunca más. Nunca. ¡Nunca más de verdad! Esa mera idea le trajo una punta de alegría que traspareció en una ligera sonrisa con los músculos relajados de la cara. Debería de haber dormido más, empero se sentía muy dispuesto. Se lavó entre los dedos de los pies, puesto que no quería pasar vergüenza si en la Mezquita le hacían lavarse los pies. El viernes era día de celebración, día santificado, el domingo de los musulmanes.
Se afeitó la barba y se cortó las uñas de las manos y de los pies, conforme le había indicado el barbudo estadounidense. Eligió las mejoras ropas: pantalones de lino, aunque arrugados, y un polo azul. ¿Podrá su sombrero sustituir a un turbante? Se puso los zapatos, en lugar de los tenis, con los que anduvo desde que había salido de Brasília.
Tras comer algo en el Café Barbieri, estudió el mapa en Google y se fue en autobús, con El Corán bajo el brazo, en dirección a la Mezquita de la M-30, la Mezquita Omar de Madrid.
Autor: João Almino
Traducción: Mei Santana

El original en portugués del mismo fragmento:

Capítulo que promete cenas tórridas, que não são razão para ser pulado, mesmo porque promessa não é fato nem dívida

—  Vire-se pro outro lado — Suzana lhe disse de novo, pouco depois de entrarem no quarto.

Desta vez Majnun não teve dúvida: era de propósito. Suzana entrou no banheiro mal enrolada no lençol, talvez nua por baixo daquele lençol. Ele se lembrou dos quadros do Museu do Prado, e a Suzana real foi assumindo as formas da Susana dos quadros. Logo se transformou na jovem mal enrolada num lençol que contemplava uma caveira, como  no  cartão  que  Laila lhe tinha enviado. Mau pressentimento. Prenúncio de perigo.

Tirou a cueca. Quando ela saiu do banheiro, foi ao encontro dela.

—  Não — ela gritou.

Majnun a jogou violentamente sobre a cama, os dois nus, se digladiando.

—  Sou virgem — ela disse.

Era o mesmo termo que o marido de Laila tinha aplicado a ele.

—  Se você soubesse…

—  Sei. E não me interessa. Xô, galinha!

Ela tinha razão. Ele era um zero à esquerda, um merda, um cafajeste.

—  Vou desaparecer. Você nunca mais vai me ver — disse.

—  Ótimo. Já vai tarde.

A parede tremeu. Devia ser novamente o casal vizinho, dois homens musculosos pressionando a cama sobre a parede como uma máquina bate-estaca. Desta vez Majnun não conseguiu esboçar seu riso, nem Suzana deu a entender que estava ouvindo.

Ele caminhou pelas calçadas estreitas, saltando mijos e bostas de cachorro. Por que sentir-se arrasado, quando deveria estar orgulhoso da ousadia?

Suzana ia certamente comentar com Carmen. De- pois, Carmen lhe diria: “Majnun, eu fazia melhor conceito de você. Agora sei quem você é: um cafajeste.” Que vergonha! Ele era mesmo um idiota. Por que não conseguia entender as mulheres? Suzana  ia  queixar-se aos pais, a notícia se espalharia por Brasília, chegaria a seu avô Dario, a sua avó Elvira, até a sua querida avó Mona… De boca em boca se amplificaria, ele seria ex- posto como um tarado, um agressor sexual… E Laila? Será que o perdoaria?

O desejo era real, tinha de reconhecer. Não amava Suzana, disso tinha certeza, mas que tesão sentia! Só não havia demonstrado antes por timidez. Desde que a tinha

visto desfazer a mala no dia da chegada a Madri, acordava de madrugada pensando nela. Ou mais exatamente em seu corpo; melhor dizendo, em detalhes de seu corpo. E então começava mentalmente a acariciá-la naquelas partes. E não somente a acariciá-la. Achara ingenuamente que aqueles exercícios mentais seriam suficientes para acalmar seus sentidos.

O que fizera era grave, reconheceu. Ele não era aquela pessoa que avançou sobre Suzana ou, ao contrário, vai ver aquele era seu eu verdadeiro, lascivo e confuso. Viu um bar de tapas com fachada de antiga farmácia: azulejos de friso azul e fundo amarelo dos dois lados da porta, nos quais estavam desenhados um homem engravatado de um lado e uma mulher de longo vestido verde do outro, ambos fazendo propaganda de remédios. Entrou sem saber o que queria. Pronunciou frases sem sentido, em português, e conseguiu no meio delas balbuciar, com lábios tremidos, a palavra “vino”, que lhe foi trazido uma e outra vez. Bebeu até completar a dose certa e necessária de insensibilidade, anestesia da alma de quem precisava seguir caminhando pelas ruas sem saber aonde ia.

Ofegante, respirava com dificuldade, e seu coração palpitava. Devia voltar ao hotel? Desculpar-se de joelhos com Suzana? Beijar seus pés? Pressentiu numa fração de segundo que Carmen o protegeria. Não, ele não tinha futuro. Tudo perdido. Melhor que a polícia o encontras- se, que fosse julgado e jogado na prisão, onde sua vida ganharia sentido. Desligou o celular para não ser impor- tunado.

Tonto, sentiu um calafrio no calor, talvez começo de febre. Para onde caminhava? Já havia passado por aquela rua vindo no sentido contrário. Estaria dando voltas em torno ao mesmo quarteirão? Numa praça triangular com mesas na calçada, gente alegre em torno de chopes e ta- ças de vinho gesticulava sem parar. Estaria ele perdido? Não. Bastava seguir o fluxo, caminhar por onde os outros caminhavam.

Haveria perigo em tomar as ruas desertas e escuras que mais o atraíam? Logo encontrou outro fluxo de gente e de carros. Que horas seriam? Reconheceu a Gran Vía, que desceu seguindo um grupo de jovens, talvez todos muçulmanos, pois a mulher ao centro estava coberta por uma burca. Chegou à Plaza de Cibeles, de onde avistou a Puerta de Alcalá. Em minutos, entrou no Parque do Retiro, lembrando-se de que ali se realizava a festa do perdão. Era disso que precisava, de perdão. Encontraria Suzana?

Passou pelo lago, tomou à esquerda e chegou a uma alameda de confessionários brancos, formas pontiagudas apontando para o alto qual rabo de avião. Pelo que estimou, duas centenas de confessionários. Mas já era tarde, não havia padres, a Festa do Perdão havia terminado, hoje ele não seria perdoado.

Pegou um caminho à direita que logo adiante fez uma curva também à direita. Apressou o passo pelo caminho deserto, tornou a virar à direita e regressou por outra ala- meda larga e mal iluminada.

Viu uma placa indicando o Palácio de Cristal. No caminho uma moça de blusa de mangas compridas, sentada num banco, sorriu para ele. Estaria atraindo as atenções?

O Palácio de Cristal estava fechado. Olhou seu interior através das portas de vidro. A exposição, intitulada “Continuará”, era de uma artista nascida em Sarajevo, Maja Bajevic. Teria a ver com os protestos do 15-M? Havia uma referência a Walter Benjamin, a uma de suas Teses sobre a Filosofia da História, especificamente a Tese 5. Sentou-se num degrau da escada. Uma breve pesquisa no Google remeteu-o a uma frase: “A verdadeira imagem do passado nos escapa, pois o passado é uma imagem que resplandece num instante e logo desaparece.”

Levantou-se e encostou o rosto numa das portas de vidro do Palácio. Viu o que pareciam andaimes, parte da exposição, e, acima deles, palavras escritas sobre uma placa de vidro inteiramente empoeirada. Tratava-se de uma instalação, “Performance/categoria-azar”. Eram palavras efêmeras, logo apagadas para que outras viessem a ser escritas. Majnun conseguiu enxergar uma citação de Antonio Machado: “Incerto é, na verdade, o futuro. Quem sabe o que vai passar? Mas incerto é também o pretérito. Quem sabe o que passou?”

Voltou pelo mesmo caminho. A moça ainda estaria lá? Continuaria sentada no banco? Novamente sorriria para ele?

Agora, na companhia de mais duas moças igualmente com blusas de manga comprida, ela conversava com um jovem vestido com uniforme azul de ginástica. Majnun passou vagarosamente ao lado e olhou para ela, que o ignorou. Estava concentrada na conversa, feita em inglês:

—  So, have you read the Mormon’s book?

Yes, I have, but…

A lua inquisidora e a novela trágica

Chegando novamente ao lago, viu do outro lado pessoas sentadas nos degraus do Monumento a Alfonso XII. Seguiu para lá. Sentindo um vento quente no rosto, emocionou-se com a lua tremulando na água. As árvores, ao fundo, desenhavam-se sobre o céu cinza pálido, sem nu- vem e tenuemente claro.

Um grupo de rapazes — o que ele tinha visto antes, com um rapaz a menos e sem a mulher de burca — conversava em árabe. Aproximou-se e os cumprimentou, também em árabe. Os jovens foram simpáticos e gentis, e sua simpatia e gentileza dobraram de tamanho quando souberam que ele vinha do Brasil. Quiseram enveredar a conversa pelo futebol, mas Majnun não gostava de futebol e ainda não acompanhava as polêmicas sobre a construção de estádios como viria a fazer em 2013.

Um dos jovens tinha um primo em São Paulo e havia alguns anos tinha pensado em morar no Brasil. Trocaram impressões sobre São Paulo, cidade que estava ficando mais violenta do que o Rio. O rapaz sorria, observando os

demais e principalmente Majnun, e repuxava, com gesto sutil e irônico, os cantos dos lábios, margeados por um bigode fino.

Majnun quis livrar-se daquele sorriso provocador com uma pergunta despudorada:

—  Vocês são todos muçulmanos?

Sim, todos eram. Mas vinham de distintos lugares. Ele vinha da Líbia; um outro, do Marrocos, de uma cidade do norte, próxima a Ceuta; o barbudo com uma touca na cabeça, dos Estados Unidos, e o louro de cabelo frisado, do Líbano.

—  Do Líbano?

Majnun então contou suas ligações com o Líbano e o Egito, através de seus avós paternos.

—  No caso desse cara, é o pai que vem do Oriente Médio — disse o líbio, apontando para o americano.

—  O pai dele nasceu no Iêmen — disse o marroquino. O americano manteve-se calado e sério.

Majnun falou sobre sua avó Mona e as conversas que havia tido com ela sobre o Islã, inclusive sobre sua possível conversão.

Finalmente levantou um assunto que o interessava especialmente naquela noite. Se dois jovens não casados tivessem relação sexual, Alá os perdoaria?

—  Alá não é vingativo. É tolerante, sapientíssimo, como diz o Corão — falou o rapaz sorridente de bigode fino, o líbio, cujos lábios afundados nos cantos continuavam irônicos.

Bom, não se engane. Pela Charia, tanto é fácil casar como se divorciar. Mas relação sexual fora do casamento, nem pensar. Os dois deviam morrer — falou em árabe, com um perceptível sotaque, o barbudo de touca, o americano, um rapaz alto, de rosto queimado e viril, marcado por pregas laterais.

Tinha olhos expressivos, cheios de orgulho e, pareceram a Majnun, de integridade.

—  Não exagere, onde isso acontece? — perguntou o líbio, o que tinha um primo em São Paulo.

—  Tem de acontecer em todo lugar, se são muçulmanos.

—  São suas ideias radicais.

—  Está no Corão.

—  Não desse jeito. E depois é preciso prova: quatro testemunhas têm que ter visto, mas visto mesmo tudo, até a pena dentro do tinteiro, como dizem os ulemás, o que torna a regra impraticável.

—  No caso de mulheres adúlteras, não há dúvida, de- vem ser apedrejadas até morrer — argumentou o barbudo de touca, o americano de rosto queimado.

—  O Corão não menciona apedrejamento e sim cem vergastadas — esclareceu o líbio —, mas mesmo isso não faz sentido hoje em dia. Para quem cometer adultério, homens e mulheres, diz para deixá-los tranquilos caso se arrependam e se corrijam.

—  Esses excessos existem em alguns poucos lugares, como o Irã: pena de morte por apedrejamento para as adúlteras e noventa e nove chicotadas para quem mantenha relações sexuais fora do casamento — esclareceu o libanês louro de cabelo frisado.

Majnun imaginou que, além de seus avanços sobre Suzana, se fosse muçulmano naquela noite teria cometido outra transgressão.

—  É proibido tomar vinho? — perguntou.

—  Não, não é. Se você lê o Livro com atenção, conclui que o vinho pode ser fabricado e que ele traz tanto malefícios quanto benefícios. A proibição é só para o ex- cesso, que leva à intoxicação — respondeu o líbio.

—  Na verdade, um verso de Medina diz que as bebi- das inebriantes são manobras abomináveis de Satanás — defendeu o americano.

—  Não confunda o rapaz. Olha, não é porque você gosta de vinho que não pode se converter — falou o líbio.

—  E existe alguma regra sobre como se vestir? — quis saber Majnun, lembrando-se de que sua avó Mona explicou que ela sequer precisava usar véu.

—  Veja a gente — disse o líbio. — Esse cara usa touca porque quer. Para as mulheres, sim…

—  Mas a fé tem suas regras sobre vestuário, ou não tem? Pois o comportamento exterior revela a retidão do espírito. A felicidade está em imitar Maomé. Por isso a obrigação de colocar um turbante quando se está de pé — informou o americano. — Para as mulheres, a obrigação é claríssima: devem conservar seus pudores; devem cobrir o colo com seus véus e não devem mostrar seus atrativos a não ser aos maridos, os pais, os sogros, os filhos, os ir- mãos…

—  Você gravou isso para controlar sua namorada? — interrompeu o líbio.

—  O pudor também é uma virtude masculina.

—  Veja só quem fala! Onde está seu turbante, cara?

—  contestou o líbio.

—  Confesso que deveria estar usando, embora eu esteja sentado. Minha touca substitui por enquanto o turbante. E também é importante que você comece com o pé direito quando calça os sapatos.

—  Por quê? — perguntou Majnun.

—  É o que deve ser feito para que as portas da felicidade não se fechem para você — esclareceu o barbudo alto, o americano de touca. — Da mesma forma que você deve comer com a mão direita e que, quando cortar as unhas, deve começar pelo indicador da mão direita e ter- minar pelo polegar da mão direita; e que deve começar pelo dedo mindinho do pé direito e terminar pelo dedo mindinho do pé esquerdo.

Majnun notou que aqueles dois, o líbio e o barbudo americano, não se entendiam. Seriam de seitas diferentes? Parecia óbvio que o barbudo pertencia a um grupo militante, talvez um dos que ele tinha visitado pela inter- net. Como achou grosseiro perguntar diretamente, introduziu o tema de maneira sutil:

—  Queria me converter ao Islã, como disse. Mas qual Islã?

—  O Islã é um só — disse o barbudo.

—  O que quero dizer é: seria sunita? Xiita? Ismaelita? Sufi? Druso? Alauita? Salafista? Wahabista? Que diferença faz?

—  Você está fazendo confusão. Alauita também é xiita. Os ismaelitas, apesar de só reconhecerem os primeiros sete imãs do xiismo e não os doze, são xiitas. Salafistas e wahabistas também são sunitas — falou o libanês de cabelo frisado.

Explicou que os sunitas e os xiitas se dividiam na questão da sucessão do Profeta. Para os xiitas, os imãs eram sucessores de Ali, primo e genro de Maomé, bem como quarto califa. Dentro do próprio xiismo também tinha havido divergências a propósito dos sucessores: o sexto imã, Ja’far as-Sadiq, designou como sucessor seu filho primogênito Ismael, mas, como este morreu antes do pai, a sucessão ficou com seu outro filho, Musa al-Kazim, reconhecido como verdadeiro sucessor pela maior parte dos xiitas. Outros acreditaram, porém, que Ismael não havia morrido, apenas se ocultado, e são seus segui- dores. Por isso são conhecidos como ismaelitas. Acham que Ismael voltará no final dos tempos. Dissimulam sua religião, se são obrigados a isso quando perseguidos, para se precaver e se resguardar, o que está baseado no Corão.

O marroquino, que havia estado calado, sugeriu, com olhar profundo e voz suave, que Majnun fosse a um centro, do qual fez menção de lhe dar o endereço, porém o líbio se opôs imediatamente, aconselhando Majnun a não se envolver “naquilo”. Sugeriu que fosse a uma mesquita.

—  Qual mesquita? — perguntou Majnun.

—  Vá à Mesquita da M-30, que todo mundo conhece e você pode localizar facilmente.

Deitado num banco do parque, usando sua mochila como travesseiro e olhando uma lua inquisidora, Majnun adormeceu com a ideia de que a única salvação estava em sua novela. Lá haveria lugar para ele, Suzana, Carmen e Laila.

Para tornar os quatro personagens irreconhecíveis, inclusive ele próprio, começou por vesti-los com suas mantas e respectivos turbantes e então transportou-os à Idade Média, mais precisamente a Granada. Salpicou uma ou outra palavra em árabe para impressionar o leitor. Fez de Suzana prisioneira cristã do sultão, ele próprio, Majnun, que as- sumiu o papel do pai de Boabdil, o sultão Abul Hassan, o vigésimo primeiro e penúltimo sultão de Granada. Ele, Majnun, não tinha uma barba tão espessa quanto a do sultão? Não era igualmente mau-caráter e violento? Não tinha o coração tão duro quanto o dele? Não era fato que ele trocou sua mulher, Fátima, por uma prisioneira cristã, Isabel de Solís, que passou a se chamar Soraya, assim como ele, Majnun, trocou injustamente Laila por Suzana? Suzana poderia ser Soraya, estrela da madrugada, e com ela Majnun teria dois filhos, Saab e Nasr, os mesmos que o sultão teve com Soraya. Mas seria justo comparar Laila com Fátima, também conhecida como Aixa al-Hurra, a liberta, honrada e honesta? Laila era menos virtuosa e mais atraente do que ela, mas na ficção tudo cabia. Cabia sobretudo descrever-se como um depravado. Pois Abu-l-Hassan Ali não havia uma vez convidado membros da corte para assistir a um banho de Soraya e depois oferecido a cada um deles uma tigela da água em que ela se havia banhado? Não bebia vinho e fumava haxixe em festas com escravas? Não era verdade que durante os treze primeiros séculos da Hégira, segundo a Charia, o homem podia comprar escravas e ter relações sexuais com elas? Que até a abolição do califado por Ata-turk em 1924 os califas tinham seus haréns, “reservas” de centenas ou mesmo de milhares de mulheres?

A novela seria realista e trágica. Trágica para ele, personagem principal, que perderia a guerra e o trono para seu filho. Para Suzana, aliás Soraya, seria o contrário: ela triunfaria quando Boabdil capitulasse diante dos cristãos; voltaria a ter seu nome cristão e batizaria seus dois filhos, que passariam a ser infantes de Granada com os nomes Don Fernando e Don Juan.

Majnun sentiu merecer esse fim trágico. Se nunca ha- via desempenhado os papéis execráveis do sultão, tinha sido apenas por não ser sultão, viver no século XXI e Suzana não ser sua escrava. Ele era vil e humano como a maldade, ou era a maldade mesma.

Pensou em anotar esses pensamentos, acrescentando uma ressalva: se não modificasse aquela novela, ele seria injusto com Laila, relegada ao papel de uma sultana abandonada, e sobretudo com Carmen, esquecida depois das primeiras frases. Mas nada anotou, pois estava escuro, e ele já instalado e sonolento no banco do parque.

Onde estão a honra e a desonra?

Ao acordar com a claridade do dia, uma quinta-feira, 18 de agosto, quando talvez o Papa já estivesse na cidade, notou que na noite anterior havia entrado outro e-mail de Laila no seu iPhone: “nao adianta se esconder a policia sabe que vc comprou as balas.”

O que fazer? Não seria um ato de covardia e sim, ao contrário, de coragem abandonar todos — Laila, Carmen, Suzana, seus avós —, desaparecer sem deixar traço e seguir para um país da África ou do Oriente Médio para ajudar numa revolução. Apostava que era isso que o ame- ricano barbudo estava fazendo. Por que não havia ficado com o contato dele?

Não ia se preocupar. Algum dia, se voltasse ao Brasil, esclareceria tudo. E se houvesse uma ordem de prisão pela Interpol?

Inquieto, passeou pelo parque e comprou de um mantero sudanês um chapéu de papel feito na China. Depois tomou o cuidado de se desviar do carro da polícia que afugentava os vendedores ambulantes, inclusive o sudanês. Saiu do parque e tomou café da manhã numa padaria da Plaza de la Independencia.

Caminhou até o Paseo del Prado e entrou no Museu Thyssen-Bornemisza. Passou meia hora diante de um quadro de Monet, “A ponte de Charing Cross”, de 1899, uma tarde, a luz filtrada através da bruma do inverno, algumas barcaças sob a ponte, a silhueta do Parlamento insinuando-se ao fundo. Imaginou jogar-se daquela ponte e se dissolver na paisagem imprecisa.

“Suzana tem razão. Está horrivelmente quente”, pen- sou, ao sair. Tirou a camisa, seguiu em direção ao Pra- do, subiu à direita, mochila nas costas, pela Calle de las Huertas, e foi lendo frases de escritores inscritas no calçamento. Deu por fim na Plaza de Santa Ana, cercada de restaurantes e cervejarias, cheia de gente.

Numa mesa em plena praça, pediu una caña e solomillo, um lombo de porco, acompanhado de batatas cozidas. Poderia se comprometer por razões religiosas a deixar de comer uma carne deliciosa? Até poderia aceitar que “a dieta é o começo de todo tratamento”, como queria o Profeta, mas para isso deixar de comer carne de porco?

As pálpebras começaram a pesar. Um rapaz da mesa ao lado lhe fez uma pergunta em inglês, que ele não entendeu. Majnun olhou ao redor. Já havia passado por ali, mas os prédios não lhe pareciam familiares, era como se os visse pela primeira vez e estivesse num sonho. Os dedos de suas mãos estavam inchados, talvez por causa do calor. Pensou em Suzana, em Laila. Seu coração bateu apressado e confuso. Sentiu-se asfixiado, tinha de sair dali rapidamente.

Poderia Carmen ser sua salvadora? Se ela tivesse celular, ligaria para ela. Para Suzana é que não. De novo o rapaz da mesa ao lado tentou iniciar uma conversa. “Desculpe”, Majnun respondeu, em português, “não entendo nada”. Chamou o garçom, pagou a conta e saiu, fugindo do rapaz.

Desceu lentamente na direção do bairro de Lavapiés, admirando as fachadas decadentes. Depois de quarenta minutos perambulando, encontrou um hotel barato com conexão de internet.

Subiu quatro escadas com a mochila nas costas e se deitou, sem conseguir fazer a sesta espanhola. Com olhos pregados no teto e boca semiaberta, afundou-se em pensamentos amargos, questionando-se sobre os rumos da vida, entre os quais os únicos claros eram a doença, a morte ou a prisão, a menos que partisse para lutar em algum lugar impelido pela mágoa, que pode ser autora de atos nobres, heroicos às vezes.

O tempo estava parado. Não podia ser medido com o metro das expectativas. Além disso, quando passava, não usava medidas uniformes, não era ordeiro e o surpreendia com saltos brutais. A virtude e o vício, a honra e a desonra, onde estariam?

Pensou em se desfazer dos escrúpulos para provar o sentimento cego, ser bandido, sem o peso da moral e da boa reputação, experimentando a liberdade selvagem. Seu coração palpitou quando imaginou o corpo nu de Suzana se debatendo na cama contra o seu. Ele devia voltar ao hotel e enfrentá-la; dizer-lhe tudo. Mas o quê? Ele não sabia o que queria e muito menos sabia ser mau. Era um mau mau.

Finalmente, resolveu fazer um esforço de reflexão racional, como um outro de si mesmo, um crítico que pudesse observá-lo a distância. Pensou no único conselho que seu avô Sérgio tinha lhe dado, citando um filósofo alemão: “Faze aquilo que quiseres ver convertido em lei universal.” Então, como se tivesse encontrado o caminho, tirou da mochila seu Corão em árabe. Sentou-se na cadeira, estirou as pernas sobre a cama, apoiou o computador sobre as coxas e se pôs à tarefa. Primeiro, faria sua pesquisa na internet para tentar entender melhor as diferenças entre sunitas e xiitas. Depois leria suras no seu Corão. Logo encontrou uma informação: com o assassinato do quarto califa, Ali, primeiro imã xiita, o califado ficou em mãos de Muawiya, que teve muitos seguidores

os sunitas, como sua avó — mas não foi reconhecido pelos xiitas, porque, ao contrário de Ali, primo e genro de Maomé, nas suas veias não corria o sangue do Profeta.

A touca não faz o muçulmano

Era 19 de agosto, sexta-feira. Acordou cedo e tomou um longo banho, enquanto repassava os sonhos da noite. Neles Laila e Carmen estavam confundidas, e Suzana inexplicavelmente não havia aparecido. Melhor, pensou. Ela era insignificante. Nunca mais queria vê-la. Nunca. Nunca mais mesmo! Essa mera ideia lhe trouxe uma ponta de alegria que transpareceu no leve sorriso dos músculos relaxados do rosto. Devia ter dormido mais, porém se sentia bem-disposto. Lavou os pés entre os dedos, pois não queria passar vergonha se na Mesquita o fizessem lavar os pés. Sexta-feira era dia de celebração, dia santificado, o domingo dos muçulmanos.

Aparou a barba e cortou as unhas das mãos e dos pés como indicado pelo barbudo americano. Escolheu as melhores roupas: calça de linho, mesmo amassada, e camisa polo azul. Será que seu chapéu podia substituir um turbante? Pôs os sapatos, em vez dos tênis com que andara desde que havia saído de Brasília.

Depois de comer algo no Café Barbieri, estudou o mapa no Google e seguiu de ônibus, Corão debaixo do braço, em direção à Mesquita da M-30, a Mesquita Omar de Madri.

[:fr]

de João Almino (editora Record, 2015)

Fragmento

Capítulo que promete cenas tórridas, que não são razão para ser pulado, mesmo porque promessa não é fato nem dívida

—  Vire-se pro outro lado — Suzana lhe disse de novo, pouco depois de entrarem no quarto.

Desta vez Majnun não teve dúvida: era de propósito. Suzana entrou no banheiro mal enrolada no lençol, talvez nua por baixo daquele lençol. Ele se lembrou dos quadros do Museu do Prado, e a Suzana real foi assumindo as formas da Susana dos quadros. Logo se transformou na jovem mal enrolada num lençol que contemplava uma caveira, como  no  cartão  que  Laila lhe tinha enviado. Mau pressentimento. Prenúncio de perigo.

Tirou a cueca. Quando ela saiu do banheiro, foi ao encontro dela.

—  Não — ela gritou.

Majnun a jogou violentamente sobre a cama, os dois nus, se digladiando.

—  Sou virgem — ela disse.

Era o mesmo termo que o marido de Laila tinha aplicado a ele.

—  Se você soubesse…

—  Sei. E não me interessa. Xô, galinha!

Ela tinha razão. Ele era um zero à esquerda, um merda, um cafajeste.

—  Vou desaparecer. Você nunca mais vai me ver — disse.

—  Ótimo. Já vai tarde.

A parede tremeu. Devia ser novamente o casal vizinho, dois homens musculosos pressionando a cama sobre a parede como uma máquina bate-estaca. Desta vez Majnun não conseguiu esboçar seu riso, nem Suzana deu a entender que estava ouvindo.

Ele caminhou pelas calçadas estreitas, saltando mijos e bostas de cachorro. Por que sentir-se arrasado, quando deveria estar orgulhoso da ousadia?

Suzana ia certamente comentar com Carmen. De- pois, Carmen lhe diria: “Majnun, eu fazia melhor conceito de você. Agora sei quem você é: um cafajeste.” Que vergonha! Ele era mesmo um idiota. Por que não conseguia entender as mulheres? Suzana  ia  queixar-se aos pais, a notícia se espalharia por Brasília, chegaria a seu avô Dario, a sua avó Elvira, até a sua querida avó Mona… De boca em boca se amplificaria, ele seria ex- posto como um tarado, um agressor sexual… E Laila? Será que o perdoaria?

O desejo era real, tinha de reconhecer. Não amava Suzana, disso tinha certeza, mas que tesão sentia! Só não havia demonstrado antes por timidez. Desde que a tinha

visto desfazer a mala no dia da chegada a Madri, acordava de madrugada pensando nela. Ou mais exatamente em seu corpo; melhor dizendo, em detalhes de seu corpo. E então começava mentalmente a acariciá-la naquelas partes. E não somente a acariciá-la. Achara ingenuamente que aqueles exercícios mentais seriam suficientes para acalmar seus sentidos.

O que fizera era grave, reconheceu. Ele não era aquela pessoa que avançou sobre Suzana ou, ao contrário, vai ver aquele era seu eu verdadeiro, lascivo e confuso. Viu um bar de tapas com fachada de antiga farmácia: azulejos de friso azul e fundo amarelo dos dois lados da porta, nos quais estavam desenhados um homem engravatado de um lado e uma mulher de longo vestido verde do outro, ambos fazendo propaganda de remédios. Entrou sem saber o que queria. Pronunciou frases sem sentido, em português, e conseguiu no meio delas balbuciar, com lábios tremidos, a palavra “vino”, que lhe foi trazido uma e outra vez. Bebeu até completar a dose certa e necessária de insensibilidade, anestesia da alma de quem precisava seguir caminhando pelas ruas sem saber aonde ia.

Ofegante, respirava com dificuldade, e seu coração palpitava. Devia voltar ao hotel? Desculpar-se de joelhos com Suzana? Beijar seus pés? Pressentiu numa fração de segundo que Carmen o protegeria. Não, ele não tinha futuro. Tudo perdido. Melhor que a polícia o encontras- se, que fosse julgado e jogado na prisão, onde sua vida ganharia sentido. Desligou o celular para não ser impor- tunado.

Tonto, sentiu um calafrio no calor, talvez começo de febre. Para onde caminhava? Já havia passado por aquela rua vindo no sentido contrário. Estaria dando voltas em torno ao mesmo quarteirão? Numa praça triangular com mesas na calçada, gente alegre em torno de chopes e ta- ças de vinho gesticulava sem parar. Estaria ele perdido? Não. Bastava seguir o fluxo, caminhar por onde os outros caminhavam.

Haveria perigo em tomar as ruas desertas e escuras que mais o atraíam? Logo encontrou outro fluxo de gente e de carros. Que horas seriam? Reconheceu a Gran Vía, que desceu seguindo um grupo de jovens, talvez todos muçulmanos, pois a mulher ao centro estava coberta por uma burca. Chegou à Plaza de Cibeles, de onde avistou a Puerta de Alcalá. Em minutos, entrou no Parque do Retiro, lembrando-se de que ali se realizava a festa do perdão. Era disso que precisava, de perdão. Encontraria Suzana?

Passou pelo lago, tomou à esquerda e chegou a uma alameda de confessionários brancos, formas pontiagudas apontando para o alto qual rabo de avião. Pelo que estimou, duas centenas de confessionários. Mas já era tarde, não havia padres, a Festa do Perdão havia terminado, hoje ele não seria perdoado.

Pegou um caminho à direita que logo adiante fez uma curva também à direita. Apressou o passo pelo caminho deserto, tornou a virar à direita e regressou por outra ala- meda larga e mal iluminada.

Viu uma placa indicando o Palácio de Cristal. No caminho uma moça de blusa de mangas compridas, sentada num banco, sorriu para ele. Estaria atraindo as atenções?

O Palácio de Cristal estava fechado. Olhou seu interior através das portas de vidro. A exposição, intitulada “Continuará”, era de uma artista nascida em Sarajevo, Maja Bajevic. Teria a ver com os protestos do 15-M? Havia uma referência a Walter Benjamin, a uma de suas Teses sobre a Filosofia da História, especificamente a Tese 5. Sentou-se num degrau da escada. Uma breve pesquisa no Google remeteu-o a uma frase: “A verdadeira imagem do passado nos escapa, pois o passado é uma imagem que resplandece num instante e logo desaparece.”

Levantou-se e encostou o rosto numa das portas de vidro do Palácio. Viu o que pareciam andaimes, parte da exposição, e, acima deles, palavras escritas sobre uma placa de vidro inteiramente empoeirada. Tratava-se de uma instalação, “Performance/categoria-azar”. Eram palavras efêmeras, logo apagadas para que outras viessem a ser escritas. Majnun conseguiu enxergar uma citação de Antonio Machado: “Incerto é, na verdade, o futuro. Quem sabe o que vai passar? Mas incerto é também o pretérito. Quem sabe o que passou?”

Voltou pelo mesmo caminho. A moça ainda estaria lá? Continuaria sentada no banco? Novamente sorriria para ele?

Agora, na companhia de mais duas moças igualmente com blusas de manga comprida, ela conversava com um jovem vestido com uniforme azul de ginástica. Majnun passou vagarosamente ao lado e olhou para ela, que o ignorou. Estava concentrada na conversa, feita em inglês:

—  So, have you read the Mormon’s book?

Yes, I have, but…

A lua inquisidora e a novela trágica

Chegando novamente ao lago, viu do outro lado pessoas sentadas nos degraus do Monumento a Alfonso XII. Seguiu para lá. Sentindo um vento quente no rosto, emocionou-se com a lua tremulando na água. As árvores, ao fundo, desenhavam-se sobre o céu cinza pálido, sem nu- vem e tenuemente claro.

Um grupo de rapazes — o que ele tinha visto antes, com um rapaz a menos e sem a mulher de burca — conversava em árabe. Aproximou-se e os cumprimentou, também em árabe. Os jovens foram simpáticos e gentis, e sua simpatia e gentileza dobraram de tamanho quando souberam que ele vinha do Brasil. Quiseram enveredar a conversa pelo futebol, mas Majnun não gostava de futebol e ainda não acompanhava as polêmicas sobre a construção de estádios como viria a fazer em 2013.

Um dos jovens tinha um primo em São Paulo e havia alguns anos tinha pensado em morar no Brasil. Trocaram impressões sobre São Paulo, cidade que estava ficando mais violenta do que o Rio. O rapaz sorria, observando os

demais e principalmente Majnun, e repuxava, com gesto sutil e irônico, os cantos dos lábios, margeados por um bigode fino.

Majnun quis livrar-se daquele sorriso provocador com uma pergunta despudorada:

—  Vocês são todos muçulmanos?

Sim, todos eram. Mas vinham de distintos lugares. Ele vinha da Líbia; um outro, do Marrocos, de uma cidade do norte, próxima a Ceuta; o barbudo com uma touca na cabeça, dos Estados Unidos, e o louro de cabelo frisado, do Líbano.

—  Do Líbano?

Majnun então contou suas ligações com o Líbano e o Egito, através de seus avós paternos.

—  No caso desse cara, é o pai que vem do Oriente Médio — disse o líbio, apontando para o americano.

—  O pai dele nasceu no Iêmen — disse o marroquino. O americano manteve-se calado e sério.

Majnun falou sobre sua avó Mona e as conversas que havia tido com ela sobre o Islã, inclusive sobre sua possível conversão.

Finalmente levantou um assunto que o interessava especialmente naquela noite. Se dois jovens não casados tivessem relação sexual, Alá os perdoaria?

—  Alá não é vingativo. É tolerante, sapientíssimo, como diz o Corão — falou o rapaz sorridente de bigode fino, o líbio, cujos lábios afundados nos cantos continuavam irônicos.

Bom, não se engane. Pela Charia, tanto é fácil casar como se divorciar. Mas relação sexual fora do casamento, nem pensar. Os dois deviam morrer — falou em árabe, com um perceptível sotaque, o barbudo de touca, o americano, um rapaz alto, de rosto queimado e viril, marcado por pregas laterais.

Tinha olhos expressivos, cheios de orgulho e, pareceram a Majnun, de integridade.

—  Não exagere, onde isso acontece? — perguntou o líbio, o que tinha um primo em São Paulo.

—  Tem de acontecer em todo lugar, se são muçulmanos.

—  São suas ideias radicais.

—  Está no Corão.

—  Não desse jeito. E depois é preciso prova: quatro testemunhas têm que ter visto, mas visto mesmo tudo, até a pena dentro do tinteiro, como dizem os ulemás, o que torna a regra impraticável.

—  No caso de mulheres adúlteras, não há dúvida, de- vem ser apedrejadas até morrer — argumentou o barbudo de touca, o americano de rosto queimado.

—  O Corão não menciona apedrejamento e sim cem vergastadas — esclareceu o líbio —, mas mesmo isso não faz sentido hoje em dia. Para quem cometer adultério, homens e mulheres, diz para deixá-los tranquilos caso se arrependam e se corrijam.

—  Esses excessos existem em alguns poucos lugares, como o Irã: pena de morte por apedrejamento para as adúlteras e noventa e nove chicotadas para quem mantenha relações sexuais fora do casamento — esclareceu o libanês louro de cabelo frisado.

Majnun imaginou que, além de seus avanços sobre Suzana, se fosse muçulmano naquela noite teria cometido outra transgressão.

—  É proibido tomar vinho? — perguntou.

—  Não, não é. Se você lê o Livro com atenção, conclui que o vinho pode ser fabricado e que ele traz tanto malefícios quanto benefícios. A proibição é só para o ex- cesso, que leva à intoxicação — respondeu o líbio.

—  Na verdade, um verso de Medina diz que as bebi- das inebriantes são manobras abomináveis de Satanás — defendeu o americano.

—  Não confunda o rapaz. Olha, não é porque você gosta de vinho que não pode se converter — falou o líbio.

—  E existe alguma regra sobre como se vestir? — quis saber Majnun, lembrando-se de que sua avó Mona explicou que ela sequer precisava usar véu.

—  Veja a gente — disse o líbio. — Esse cara usa touca porque quer. Para as mulheres, sim…

—  Mas a fé tem suas regras sobre vestuário, ou não tem? Pois o comportamento exterior revela a retidão do espírito. A felicidade está em imitar Maomé. Por isso a obrigação de colocar um turbante quando se está de pé — informou o americano. — Para as mulheres, a obrigação é claríssima: devem conservar seus pudores; devem cobrir o colo com seus véus e não devem mostrar seus atrativos a não ser aos maridos, os pais, os sogros, os filhos, os ir- mãos…

—  Você gravou isso para controlar sua namorada? — interrompeu o líbio.

—  O pudor também é uma virtude masculina.

—  Veja só quem fala! Onde está seu turbante, cara?

—  contestou o líbio.

—  Confesso que deveria estar usando, embora eu esteja sentado. Minha touca substitui por enquanto o turbante. E também é importante que você comece com o pé direito quando calça os sapatos.

—  Por quê? — perguntou Majnun.

—  É o que deve ser feito para que as portas da felicidade não se fechem para você — esclareceu o barbudo alto, o americano de touca. — Da mesma forma que você deve comer com a mão direita e que, quando cortar as unhas, deve começar pelo indicador da mão direita e ter- minar pelo polegar da mão direita; e que deve começar pelo dedo mindinho do pé direito e terminar pelo dedo mindinho do pé esquerdo.

Majnun notou que aqueles dois, o líbio e o barbudo americano, não se entendiam. Seriam de seitas diferentes? Parecia óbvio que o barbudo pertencia a um grupo militante, talvez um dos que ele tinha visitado pela inter- net. Como achou grosseiro perguntar diretamente, introduziu o tema de maneira sutil:

—  Queria me converter ao Islã, como disse. Mas qual Islã?

—  O Islã é um só — disse o barbudo.

—  O que quero dizer é: seria sunita? Xiita? Ismaelita? Sufi? Druso? Alauita? Salafista? Wahabista? Que diferença faz?

—  Você está fazendo confusão. Alauita também é xiita. Os ismaelitas, apesar de só reconhecerem os primeiros sete imãs do xiismo e não os doze, são xiitas. Salafistas e wahabistas também são sunitas — falou o libanês de cabelo frisado.

Explicou que os sunitas e os xiitas se dividiam na questão da sucessão do Profeta. Para os xiitas, os imãs eram sucessores de Ali, primo e genro de Maomé, bem como quarto califa. Dentro do próprio xiismo também tinha havido divergências a propósito dos sucessores: o sexto imã, Ja’far as-Sadiq, designou como sucessor seu filho primogênito Ismael, mas, como este morreu antes do pai, a sucessão ficou com seu outro filho, Musa al-Kazim, reconhecido como verdadeiro sucessor pela maior parte dos xiitas. Outros acreditaram, porém, que Ismael não havia morrido, apenas se ocultado, e são seus segui- dores. Por isso são conhecidos como ismaelitas. Acham que Ismael voltará no final dos tempos. Dissimulam sua religião, se são obrigados a isso quando perseguidos, para se precaver e se resguardar, o que está baseado no Corão.

O marroquino, que havia estado calado, sugeriu, com olhar profundo e voz suave, que Majnun fosse a um centro, do qual fez menção de lhe dar o endereço, porém o líbio se opôs imediatamente, aconselhando Majnun a não se envolver “naquilo”. Sugeriu que fosse a uma mesquita.

—  Qual mesquita? — perguntou Majnun.

—  Vá à Mesquita da M-30, que todo mundo conhece e você pode localizar facilmente.

Deitado num banco do parque, usando sua mochila como travesseiro e olhando uma lua inquisidora, Majnun adormeceu com a ideia de que a única salvação estava em sua novela. Lá haveria lugar para ele, Suzana, Carmen e Laila.

Para tornar os quatro personagens irreconhecíveis, inclusive ele próprio, começou por vesti-los com suas mantas e respectivos turbantes e então transportou-os à Idade Média, mais precisamente a Granada. Salpicou uma ou outra palavra em árabe para impressionar o leitor. Fez de Suzana prisioneira cristã do sultão, ele próprio, Majnun, que as- sumiu o papel do pai de Boabdil, o sultão Abul Hassan, o vigésimo primeiro e penúltimo sultão de Granada. Ele, Majnun, não tinha uma barba tão espessa quanto a do sultão? Não era igualmente mau-caráter e violento? Não tinha o coração tão duro quanto o dele? Não era fato que ele trocou sua mulher, Fátima, por uma prisioneira cristã, Isabel de Solís, que passou a se chamar Soraya, assim como ele, Majnun, trocou injustamente Laila por Suzana? Suzana poderia ser Soraya, estrela da madrugada, e com ela Majnun teria dois filhos, Saab e Nasr, os mesmos que o sultão teve com Soraya. Mas seria justo comparar Laila com Fátima, também conhecida como Aixa al-Hurra, a liberta, honrada e honesta? Laila era menos virtuosa e mais atraente do que ela, mas na ficção tudo cabia. Cabia sobretudo descrever-se como um depravado. Pois Abu-l-Hassan Ali não havia uma vez convidado membros da corte para assistir a um banho de Soraya e depois oferecido a cada um deles uma tigela da água em que ela se havia banhado? Não bebia vinho e fumava haxixe em festas com escravas? Não era verdade que durante os treze primeiros séculos da Hégira, segundo a Charia, o homem podia comprar escravas e ter relações sexuais com elas? Que até a abolição do califado por Ata-turk em 1924 os califas tinham seus haréns, “reservas” de centenas ou mesmo de milhares de mulheres?

A novela seria realista e trágica. Trágica para ele, personagem principal, que perderia a guerra e o trono para seu filho. Para Suzana, aliás Soraya, seria o contrário: ela triunfaria quando Boabdil capitulasse diante dos cristãos; voltaria a ter seu nome cristão e batizaria seus dois filhos, que passariam a ser infantes de Granada com os nomes Don Fernando e Don Juan.

Majnun sentiu merecer esse fim trágico. Se nunca ha- via desempenhado os papéis execráveis do sultão, tinha sido apenas por não ser sultão, viver no século XXI e Suzana não ser sua escrava. Ele era vil e humano como a maldade, ou era a maldade mesma.

Pensou em anotar esses pensamentos, acrescentando uma ressalva: se não modificasse aquela novela, ele seria injusto com Laila, relegada ao papel de uma sultana abandonada, e sobretudo com Carmen, esquecida depois das primeiras frases. Mas nada anotou, pois estava escuro, e ele já instalado e sonolento no banco do parque.

Onde estão a honra e a desonra?

Ao acordar com a claridade do dia, uma quinta-feira, 18 de agosto, quando talvez o Papa já estivesse na cidade, notou que na noite anterior havia entrado outro e-mail de Laila no seu iPhone: “nao adianta se esconder a policia sabe que vc comprou as balas.”

O que fazer? Não seria um ato de covardia e sim, ao contrário, de coragem abandonar todos — Laila, Carmen, Suzana, seus avós —, desaparecer sem deixar traço e seguir para um país da África ou do Oriente Médio para ajudar numa revolução. Apostava que era isso que o ame- ricano barbudo estava fazendo. Por que não havia ficado com o contato dele?

Não ia se preocupar. Algum dia, se voltasse ao Brasil, esclareceria tudo. E se houvesse uma ordem de prisão pela Interpol?

Inquieto, passeou pelo parque e comprou de um mantero sudanês um chapéu de papel feito na China. Depois tomou o cuidado de se desviar do carro da polícia que afugentava os vendedores ambulantes, inclusive o sudanês. Saiu do parque e tomou café da manhã numa padaria da Plaza de la Independencia.

Caminhou até o Paseo del Prado e entrou no Museu Thyssen-Bornemisza. Passou meia hora diante de um quadro de Monet, “A ponte de Charing Cross”, de 1899, uma tarde, a luz filtrada através da bruma do inverno, algumas barcaças sob a ponte, a silhueta do Parlamento insinuando-se ao fundo. Imaginou jogar-se daquela ponte e se dissolver na paisagem imprecisa.

“Suzana tem razão. Está horrivelmente quente”, pen- sou, ao sair. Tirou a camisa, seguiu em direção ao Pra- do, subiu à direita, mochila nas costas, pela Calle de las Huertas, e foi lendo frases de escritores inscritas no calçamento. Deu por fim na Plaza de Santa Ana, cercada de restaurantes e cervejarias, cheia de gente.

Numa mesa em plena praça, pediu una caña e solomillo, um lombo de porco, acompanhado de batatas cozidas. Poderia se comprometer por razões religiosas a deixar de comer uma carne deliciosa? Até poderia aceitar que “a dieta é o começo de todo tratamento”, como queria o Profeta, mas para isso deixar de comer carne de porco?

As pálpebras começaram a pesar. Um rapaz da mesa ao lado lhe fez uma pergunta em inglês, que ele não entendeu. Majnun olhou ao redor. Já havia passado por ali, mas os prédios não lhe pareciam familiares, era como se os visse pela primeira vez e estivesse num sonho. Os dedos de suas mãos estavam inchados, talvez por causa do calor. Pensou em Suzana, em Laila. Seu coração bateu apressado e confuso. Sentiu-se asfixiado, tinha de sair dali rapidamente.

Poderia Carmen ser sua salvadora? Se ela tivesse celular, ligaria para ela. Para Suzana é que não. De novo o rapaz da mesa ao lado tentou iniciar uma conversa. “Desculpe”, Majnun respondeu, em português, “não entendo nada”. Chamou o garçom, pagou a conta e saiu, fugindo do rapaz.

Desceu lentamente na direção do bairro de Lavapiés, admirando as fachadas decadentes. Depois de quarenta minutos perambulando, encontrou um hotel barato com conexão de internet.

Subiu quatro escadas com a mochila nas costas e se deitou, sem conseguir fazer a sesta espanhola. Com olhos pregados no teto e boca semiaberta, afundou-se em pensamentos amargos, questionando-se sobre os rumos da vida, entre os quais os únicos claros eram a doença, a morte ou a prisão, a menos que partisse para lutar em algum lugar impelido pela mágoa, que pode ser autora de atos nobres, heroicos às vezes.

O tempo estava parado. Não podia ser medido com o metro das expectativas. Além disso, quando passava, não usava medidas uniformes, não era ordeiro e o surpreendia com saltos brutais. A virtude e o vício, a honra e a desonra, onde estariam?

Pensou em se desfazer dos escrúpulos para provar o sentimento cego, ser bandido, sem o peso da moral e da boa reputação, experimentando a liberdade selvagem. Seu coração palpitou quando imaginou o corpo nu de Suzana se debatendo na cama contra o seu. Ele devia voltar ao hotel e enfrentá-la; dizer-lhe tudo. Mas o quê? Ele não sabia o que queria e muito menos sabia ser mau. Era um mau mau.

Finalmente, resolveu fazer um esforço de reflexão racional, como um outro de si mesmo, um crítico que pudesse observá-lo a distância. Pensou no único conselho que seu avô Sérgio tinha lhe dado, citando um filósofo alemão: “Faze aquilo que quiseres ver convertido em lei universal.” Então, como se tivesse encontrado o caminho, tirou da mochila seu Corão em árabe. Sentou-se na cadeira, estirou as pernas sobre a cama, apoiou o computador sobre as coxas e se pôs à tarefa. Primeiro, faria sua pesquisa na internet para tentar entender melhor as diferenças entre sunitas e xiitas. Depois leria suras no seu Corão. Logo encontrou uma informação: com o assassinato do quarto califa, Ali, primeiro imã xiita, o califado ficou em mãos de Muawiya, que teve muitos seguidores

os sunitas, como sua avó — mas não foi reconhecido pelos xiitas, porque, ao contrário de Ali, primo e genro de Maomé, nas suas veias não corria o sangue do Profeta.

A touca não faz o muçulmano

Era 19 de agosto, sexta-feira. Acordou cedo e tomou um longo banho, enquanto repassava os sonhos da noite. Neles Laila e Carmen estavam confundidas, e Suzana inexplicavelmente não havia aparecido. Melhor, pensou. Ela era insignificante. Nunca mais queria vê-la. Nunca. Nunca mais mesmo! Essa mera ideia lhe trouxe uma ponta de alegria que transpareceu no leve sorriso dos músculos relaxados do rosto. Devia ter dormido mais, porém se sentia bem-disposto. Lavou os pés entre os dedos, pois não queria passar vergonha se na Mesquita o fizessem lavar os pés. Sexta-feira era dia de celebração, dia santificado, o domingo dos muçulmanos.

Aparou a barba e cortou as unhas das mãos e dos pés como indicado pelo barbudo americano. Escolheu as melhores roupas: calça de linho, mesmo amassada, e camisa polo azul. Será que seu chapéu podia substituir um turbante? Pôs os sapatos, em vez dos tênis com que andara desde que havia saído de Brasília.

Depois de comer algo no Café Barbieri, estudou o mapa no Google e seguiu de ônibus, Corão debaixo do braço, em direção à Mesquita da M-30, a Mesquita Omar de Madri.

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