A reinvenção de um autor: Enigmas da Primavera, de João Almino, por João Cezar de Castro Rocha

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A reinvenção de um autor: Enigmas da Primavera

por João Cezar de Castro Rocha

Enigmas da Primavera: o título do novo romance de João Almino antecipa a surpresa que aguarda o fiel leitor do Quinteto encerrado com Cidade Livre (2010), cuja arquitetura ficcional remete à cidade de Brasília.

Na ficção de Almino, como bem sabe o leitor de Ideias para onde passar o fim do mundo (1987), Brasília é um laboratório de experiências linguísticas, políticas e existenciais. Afinal, a cidade favorece a superposição de paradoxos e paralaxes: racionalidade e misticismo; utopia modernista e corrupção endêmica; promessa de futuro e atavismo.

Neste novo romance, Brasília ainda fornece parcialmente o cenário da ação narrativa. No entanto, não seria excessivo sugerir que João Almino literalmente reinventou sua literatura com a escrita de Enigmas da Primavera. Reinvenção que talvez possa ser mais bem compreendida pela leitura das quatro epígrafes; pórticos para essa nova fase de sua ficção.

 

(Pórticos ou pilotis – se você pensar na paisagem urbana de Brasília.)

 

Vejamos, então, as epígrafes-pilotis.

A frase-valise de Claude Lévi-Strauss esclarece a reflexão que estrutura as peregrinações do protagonista do romance – Majnun. Vale dizer, o paradoxo multissecular do Islã, que, em seus primórdios, assumiu a tolerância como fundamento ético da própria religião, e, hoje em dia, tem sua doutrina interpretada indevidamente por uma série de grupos fundamentalistas, cuja marca-d’água é a intolerância absoluta.

Sintomático, portanto, que o protagonista já não saiba viver sem recorrer o tempo todo à tríade nossa de cada dia: iPad, iPhone, laptop… Ora, se o universo digital foi decisivo na propagação de tantas primaveras políticas no mundo contemporâneo, esse mesmo universo se metamorfoseia muito rapidamente numa miríade de Faixas de Gaza, cuja virulência alimenta uma escalada incontrolável de violência simbólica.

Nesse contexto, os versos de Antonio Machado:

 

            La primavera ha venido.

            Nadie sabe cómo ha sido.

 

Cifram à perfeição a perplexidade provocada pelos inúmeros movimentos de contestação de estruturas políticas tradicionais e de afirmação das liberdades individuais, cujos rumos por vezes desnorteiam inclusive os observadores mais otimistas.

            No romance, Almino reúne com habilidade os indignados franceses e espanhóis com as manifestações brasileiras de junho de 2013 – muito provavelmente esta é uma das primeiras tentativas de enfrentar o desafio de dar forma literária ao presente imediato.

No fundo, quem sabe como interpretar essa onda de protestos que tanto se agiganta como se esfuma num piscar de olhos?

Quando surgirão os Gabriel Tarde, Gustave Le Bon e Sigmund Freud do universo digital?

Como interpretar a psicologia das multidões cibernéticas no mundo da política na era da reprodutibilidade viral?

Enigmas da Primavera articula uma reflexão pioneira acerca do exercício da política no século XXI. Para tanto, esboçar uma análise das manifestações de junho de 2013 é passo ousado, porém indispensável. Nas palavras do protagonista, o eixo daquelas manifestações talvez se encontre “na vontade da gente participar, no salto das redes sociais pras ruas, na desconfiança quanto aos representantes políticos, na horizontalidade das manifestações. Não existem líderes entre nós. Estamos no mesmo barco. Somos iguais”.

Talvez – eu escrevi.

Afinal, a velocidade das mudanças torna temerário todo esforço de análise.

 

(Temerário: isto é: incontornável.)

 

Esse cenário somente se complica com as duas epígrafes que ainda não comentei.

Impressiona o impacto que a Espanha produziu na ficção de João Almino; impacto esse que evoca a presença da Andaluzia na poesia de João Cabral de Melo Neto, cuja obra, a partir da vivência espanhola, concentrou-se entre Recife e Sevilha. De igual modo, e ao que tudo indica, na prosa de Almino, a imagem de Brasília, agora, articula-se à visão do mundo inspirada na cultura espanhola, e, sobretudo, no seu elo, no passado distante, com a tradição árabe. Penso na primeira experiência decididamente multicultural da civilização europeia, cujo momento mais expressivo continua sendo a “Escuela de Traductores de Toledo”. Aliás, mencionada no romance: “Começou falando das contribuições dos árabes para a ciência e a cultura na Europa durante a Idade Média. Um dos começos da Europa teria sido a Toledo muçulmana”.

De fato: entre os séculos XII e XIII, sábios árabes, judeus e cristãos trabalharam lado a lado num processo exemplar de tradução e retradução trilíngue. Desse modo, preservou-se o legado da cultura grega clássica, ampliando-se, e muito, o futuro repertório humanístico europeu. Toledo tornou-se, assim, uma autêntica cidade-ponte entre as tradições culturais do Oriente e do Ocidente.

Por isso mesmo, El Greco não poderia ter imaginado lugar mais propício para encerrar sua carreira e criar algumas de suas telas mais celebradas.

Claro: o percurso do pintor se assemelha a uma inesperada metonímia dessa vocação multicultural, pois sua arte pôs em circulação uma complexa rede que articulava a tradição bizantina dos ícones, as técnicas, adversárias, no privilégio da cor ou do desenho, respectivamente, das escolas veneziana e romana, e, por fim, o influxo da pintura espanhola.

A seu modo, a escrita de João Almino busca emular essa atmosfera de apropriações simultâneas de tradições diversas.

Explico.

Melhor: venho à epígrafe extraída da tradução de Jordi Quingles de um dos textos centrais do cânone árabe.

            A trama de Enigmas da Primavera atualiza, ou seja, transforma, a mais divulgada história de amor da literatura árabe, transmitida oralmente e codificada, no século XII, pelo poeta persa Nizami – e, desde então, reescrita um sem-fim de vezes.

           

            (E até mesmo no registro da música pop; como o protagonista recorda, pois ele “procurou no YouTube a canção de Eric Clapton”, inspirada na lenda árabe.)

 

            Ademais, o protagonista do romance tem o nome do personagem do poema de Nizami: Majnun, isto é, o louco – louco de amor, bem entendido. Na verdade, esse nome era antes o epíteto de um personagem histórico, Kais In al-Malawwah, que se apaixonou por uma jovem, Layla Alamiriyya, e, ao ser rejeitado pela família dela, passou a viver como um eremita no deserto. Posteriormente, ao inteirar-se do casamento de Layla, Kais perdeu a razão.

Vejamos as diferenças.

A Laila do romance de João Almino não é uma adolescente, porém uma balzaquiana que se envolve com o rapaz, pois “ela se vingava de seu marido” – confidencia o narrador.

            Há mais.

Na história árabe, como vimos, Kais enlouquece de amor, transformando-se no Majnun do poema. No romance de Almino, o protagonista já principia como Majnun, um personagem fronteiriço desde a primeira página. E isso talvez porque suas fraquezas e delírios sejam “própri[os] de seu tempo. O que não sabia era que o seu tempo podia mudar de feição”.

            E também, por que não, a própria literatura de João Almino?

            Se vejo bem, o autor de A idade do presente (1985) reinventa sua escrita no cruzamento de horizontes estéticos – Brasília e Espanha –, no atrito entre tempos históricos – o presente imediato, com seu futuro enigmático, e a Espanha medieval, com sua mescla ainda hoje imponderável das tradições árabe, cristã e hebraica –, e no encontro da chamada alta cultura com o universo pop – da literatura árabe a Walter Benjamin, de Rihanna ao grupo de hip-hop Ratatat.

            E não é tudo.

            No Quinteto dedicado à Brasília, o leitor acompanhou, passo a passo, uma experimentação fascinante com uma voz narrativa que aludia constantemente à dicção machadiana. De igual sorte, romance a romance, a frase tornava-se sempre mais apurada e minimalista, chegando a emular a prosa do Conselheiro Aires.

            Uma nova escrita, contudo, se insinua em Enigmas da Primavera. O narrador flerta com a tradição dos romances picarescos, sem abandonar o trato irreverente dispensado ao leitor; a frase adquire um colorido novo, no qual se alternam registros por vezes opostos – à concisão de um parágrafo sucedem-se descrições generosas da beleza de uma mulher ou dos desejos de Majnun.

Numa palavra, o leitor de Enigmas da Primavera tem diante de si um João Almino até então desconhecido.

Difícil imaginar conquista estética mais ousada para um autor consagrado.

(E mais não digo, pois seria impertinente privar o leitor da alegria da descoberta.)

A reinvenção de um autor: Enigmas da Primavera

por João Cezar de Castro Rocha

Enigmas da Primavera: o título do novo romance de João Almino antecipa a surpresa que aguarda o fiel leitor do Quinteto encerrado com Cidade Livre (2010), cuja arquitetura ficcional remete à cidade de Brasília.

Na ficção de Almino, como bem sabe o leitor de Ideias para onde passar o fim do mundo (1987), Brasília é um laboratório de experiências linguísticas, políticas e existenciais. Afinal, a cidade favorece a superposição de paradoxos e paralaxes: racionalidade e misticismo; utopia modernista e corrupção endêmica; promessa de futuro e atavismo.

Neste novo romance, Brasília ainda fornece parcialmente o cenário da ação narrativa. No entanto, não seria excessivo sugerir que João Almino literalmente reinventou sua literatura com a escrita de Enigmas da Primavera. Reinvenção que talvez possa ser mais bem compreendida pela leitura das quatro epígrafes; pórticos para essa nova fase de sua ficção.

 

(Pórticos ou pilotis – se você pensar na paisagem urbana de Brasília.)

 

Vejamos, então, as epígrafes-pilotis.

A frase-valise de Claude Lévi-Strauss esclarece a reflexão que estrutura as peregrinações do protagonista do romance – Majnun. Vale dizer, o paradoxo multissecular do Islã, que, em seus primórdios, assumiu a tolerância como fundamento ético da própria religião, e, hoje em dia, tem sua doutrina interpretada indevidamente por uma série de grupos fundamentalistas, cuja marca-d’água é a intolerância absoluta.

Sintomático, portanto, que o protagonista já não saiba viver sem recorrer o tempo todo à tríade nossa de cada dia: iPad, iPhone, laptop… Ora, se o universo digital foi decisivo na propagação de tantas primaveras políticas no mundo contemporâneo, esse mesmo universo se metamorfoseia muito rapidamente numa miríade de Faixas de Gaza, cuja virulência alimenta uma escalada incontrolável de violência simbólica.

Nesse contexto, os versos de Antonio Machado:

 

            La primavera ha venido.

            Nadie sabe cómo ha sido.

 

Cifram à perfeição a perplexidade provocada pelos inúmeros movimentos de contestação de estruturas políticas tradicionais e de afirmação das liberdades individuais, cujos rumos por vezes desnorteiam inclusive os observadores mais otimistas.

            No romance, Almino reúne com habilidade os indignados franceses e espanhóis com as manifestações brasileiras de junho de 2013 – muito provavelmente esta é uma das primeiras tentativas de enfrentar o desafio de dar forma literária ao presente imediato.

No fundo, quem sabe como interpretar essa onda de protestos que tanto se agiganta como se esfuma num piscar de olhos?

Quando surgirão os Gabriel Tarde, Gustave Le Bon e Sigmund Freud do universo digital?

Como interpretar a psicologia das multidões cibernéticas no mundo da política na era da reprodutibilidade viral?

Enigmas da Primavera articula uma reflexão pioneira acerca do exercício da política no século XXI. Para tanto, esboçar uma análise das manifestações de junho de 2013 é passo ousado, porém indispensável. Nas palavras do protagonista, o eixo daquelas manifestações talvez se encontre “na vontade da gente participar, no salto das redes sociais pras ruas, na desconfiança quanto aos representantes políticos, na horizontalidade das manifestações. Não existem líderes entre nós. Estamos no mesmo barco. Somos iguais”.

Talvez – eu escrevi.

Afinal, a velocidade das mudanças torna temerário todo esforço de análise.

 

(Temerário: isto é: incontornável.)

 

Esse cenário somente se complica com as duas epígrafes que ainda não comentei.

Impressiona o impacto que a Espanha produziu na ficção de João Almino; impacto esse que evoca a presença da Andaluzia na poesia de João Cabral de Melo Neto, cuja obra, a partir da vivência espanhola, concentrou-se entre Recife e Sevilha. De igual modo, e ao que tudo indica, na prosa de Almino, a imagem de Brasília, agora, articula-se à visão do mundo inspirada na cultura espanhola, e, sobretudo, no seu elo, no passado distante, com a tradição árabe. Penso na primeira experiência decididamente multicultural da civilização europeia, cujo momento mais expressivo continua sendo a “Escuela de Traductores de Toledo”. Aliás, mencionada no romance: “Começou falando das contribuições dos árabes para a ciência e a cultura na Europa durante a Idade Média. Um dos começos da Europa teria sido a Toledo muçulmana”.

De fato: entre os séculos XII e XIII, sábios árabes, judeus e cristãos trabalharam lado a lado num processo exemplar de tradução e retradução trilíngue. Desse modo, preservou-se o legado da cultura grega clássica, ampliando-se, e muito, o futuro repertório humanístico europeu. Toledo tornou-se, assim, uma autêntica cidade-ponte entre as tradições culturais do Oriente e do Ocidente.

Por isso mesmo, El Greco não poderia ter imaginado lugar mais propício para encerrar sua carreira e criar algumas de suas telas mais celebradas.

Claro: o percurso do pintor se assemelha a uma inesperada metonímia dessa vocação multicultural, pois sua arte pôs em circulação uma complexa rede que articulava a tradição bizantina dos ícones, as técnicas, adversárias, no privilégio da cor ou do desenho, respectivamente, das escolas veneziana e romana, e, por fim, o influxo da pintura espanhola.

A seu modo, a escrita de João Almino busca emular essa atmosfera de apropriações simultâneas de tradições diversas.

Explico.

Melhor: venho à epígrafe extraída da tradução de Jordi Quingles de um dos textos centrais do cânone árabe.

            A trama de Enigmas da Primavera atualiza, ou seja, transforma, a mais divulgada história de amor da literatura árabe, transmitida oralmente e codificada, no século XII, pelo poeta persa Nizami – e, desde então, reescrita um sem-fim de vezes.

           

            (E até mesmo no registro da música pop; como o protagonista recorda, pois ele “procurou no YouTube a canção de Eric Clapton”, inspirada na lenda árabe.)

 

            Ademais, o protagonista do romance tem o nome do personagem do poema de Nizami: Majnun, isto é, o louco – louco de amor, bem entendido. Na verdade, esse nome era antes o epíteto de um personagem histórico, Kais In al-Malawwah, que se apaixonou por uma jovem, Layla Alamiriyya, e, ao ser rejeitado pela família dela, passou a viver como um eremita no deserto. Posteriormente, ao inteirar-se do casamento de Layla, Kais perdeu a razão.

Vejamos as diferenças.

A Laila do romance de João Almino não é uma adolescente, porém uma balzaquiana que se envolve com o rapaz, pois “ela se vingava de seu marido” – confidencia o narrador.

            Há mais.

Na história árabe, como vimos, Kais enlouquece de amor, transformando-se no Majnun do poema. No romance de Almino, o protagonista já principia como Majnun, um personagem fronteiriço desde a primeira página. E isso talvez porque suas fraquezas e delírios sejam “própri[os] de seu tempo. O que não sabia era que o seu tempo podia mudar de feição”.

            E também, por que não, a própria literatura de João Almino?

            Se vejo bem, o autor de A idade do presente (1985) reinventa sua escrita no cruzamento de horizontes estéticos – Brasília e Espanha –, no atrito entre tempos históricos – o presente imediato, com seu futuro enigmático, e a Espanha medieval, com sua mescla ainda hoje imponderável das tradições árabe, cristã e hebraica –, e no encontro da chamada alta cultura com o universo pop – da literatura árabe a Walter Benjamin, de Rihanna ao grupo de hip-hop Ratatat.

            E não é tudo.

            No Quinteto dedicado à Brasília, o leitor acompanhou, passo a passo, uma experimentação fascinante com uma voz narrativa que aludia constantemente à dicção machadiana. De igual sorte, romance a romance, a frase tornava-se sempre mais apurada e minimalista, chegando a emular a prosa do Conselheiro Aires.

            Uma nova escrita, contudo, se insinua em Enigmas da Primavera. O narrador flerta com a tradição dos romances picarescos, sem abandonar o trato irreverente dispensado ao leitor; a frase adquire um colorido novo, no qual se alternam registros por vezes opostos – à concisão de um parágrafo sucedem-se descrições generosas da beleza de uma mulher ou dos desejos de Majnun.

Numa palavra, o leitor de Enigmas da Primavera tem diante de si um João Almino até então desconhecido.

Difícil imaginar conquista estética mais ousada para um autor consagrado.

(E mais não digo, pois seria impertinente privar o leitor da alegria da descoberta.)

A reinvenção de um autor: Enigmas da Primavera

por João Cezar de Castro Rocha

Enigmas da Primavera: o título do novo romance de João Almino antecipa a surpresa que aguarda o fiel leitor do Quinteto encerrado com Cidade Livre (2010), cuja arquitetura ficcional remete à cidade de Brasília.

Na ficção de Almino, como bem sabe o leitor de Ideias para onde passar o fim do mundo (1987), Brasília é um laboratório de experiências linguísticas, políticas e existenciais. Afinal, a cidade favorece a superposição de paradoxos e paralaxes: racionalidade e misticismo; utopia modernista e corrupção endêmica; promessa de futuro e atavismo.

Neste novo romance, Brasília ainda fornece parcialmente o cenário da ação narrativa. No entanto, não seria excessivo sugerir que João Almino literalmente reinventou sua literatura com a escrita de Enigmas da Primavera. Reinvenção que talvez possa ser mais bem compreendida pela leitura das quatro epígrafes; pórticos para essa nova fase de sua ficção.

 

(Pórticos ou pilotis – se você pensar na paisagem urbana de Brasília.)

 

Vejamos, então, as epígrafes-pilotis.

A frase-valise de Claude Lévi-Strauss esclarece a reflexão que estrutura as peregrinações do protagonista do romance – Majnun. Vale dizer, o paradoxo multissecular do Islã, que, em seus primórdios, assumiu a tolerância como fundamento ético da própria religião, e, hoje em dia, tem sua doutrina interpretada indevidamente por uma série de grupos fundamentalistas, cuja marca-d’água é a intolerância absoluta.

Sintomático, portanto, que o protagonista já não saiba viver sem recorrer o tempo todo à tríade nossa de cada dia: iPad, iPhone, laptop… Ora, se o universo digital foi decisivo na propagação de tantas primaveras políticas no mundo contemporâneo, esse mesmo universo se metamorfoseia muito rapidamente numa miríade de Faixas de Gaza, cuja virulência alimenta uma escalada incontrolável de violência simbólica.

Nesse contexto, os versos de Antonio Machado:

 

            La primavera ha venido.

            Nadie sabe cómo ha sido.

 

Cifram à perfeição a perplexidade provocada pelos inúmeros movimentos de contestação de estruturas políticas tradicionais e de afirmação das liberdades individuais, cujos rumos por vezes desnorteiam inclusive os observadores mais otimistas.

            No romance, Almino reúne com habilidade os indignados franceses e espanhóis com as manifestações brasileiras de junho de 2013 – muito provavelmente esta é uma das primeiras tentativas de enfrentar o desafio de dar forma literária ao presente imediato.

No fundo, quem sabe como interpretar essa onda de protestos que tanto se agiganta como se esfuma num piscar de olhos?

Quando surgirão os Gabriel Tarde, Gustave Le Bon e Sigmund Freud do universo digital?

Como interpretar a psicologia das multidões cibernéticas no mundo da política na era da reprodutibilidade viral?

Enigmas da Primavera articula uma reflexão pioneira acerca do exercício da política no século XXI. Para tanto, esboçar uma análise das manifestações de junho de 2013 é passo ousado, porém indispensável. Nas palavras do protagonista, o eixo daquelas manifestações talvez se encontre “na vontade da gente participar, no salto das redes sociais pras ruas, na desconfiança quanto aos representantes políticos, na horizontalidade das manifestações. Não existem líderes entre nós. Estamos no mesmo barco. Somos iguais”.

Talvez – eu escrevi.

Afinal, a velocidade das mudanças torna temerário todo esforço de análise.

 

(Temerário: isto é: incontornável.)

 

Esse cenário somente se complica com as duas epígrafes que ainda não comentei.

Impressiona o impacto que a Espanha produziu na ficção de João Almino; impacto esse que evoca a presença da Andaluzia na poesia de João Cabral de Melo Neto, cuja obra, a partir da vivência espanhola, concentrou-se entre Recife e Sevilha. De igual modo, e ao que tudo indica, na prosa de Almino, a imagem de Brasília, agora, articula-se à visão do mundo inspirada na cultura espanhola, e, sobretudo, no seu elo, no passado distante, com a tradição árabe. Penso na primeira experiência decididamente multicultural da civilização europeia, cujo momento mais expressivo continua sendo a “Escuela de Traductores de Toledo”. Aliás, mencionada no romance: “Começou falando das contribuições dos árabes para a ciência e a cultura na Europa durante a Idade Média. Um dos começos da Europa teria sido a Toledo muçulmana”.

De fato: entre os séculos XII e XIII, sábios árabes, judeus e cristãos trabalharam lado a lado num processo exemplar de tradução e retradução trilíngue. Desse modo, preservou-se o legado da cultura grega clássica, ampliando-se, e muito, o futuro repertório humanístico europeu. Toledo tornou-se, assim, uma autêntica cidade-ponte entre as tradições culturais do Oriente e do Ocidente.

Por isso mesmo, El Greco não poderia ter imaginado lugar mais propício para encerrar sua carreira e criar algumas de suas telas mais celebradas.

Claro: o percurso do pintor se assemelha a uma inesperada metonímia dessa vocação multicultural, pois sua arte pôs em circulação uma complexa rede que articulava a tradição bizantina dos ícones, as técnicas, adversárias, no privilégio da cor ou do desenho, respectivamente, das escolas veneziana e romana, e, por fim, o influxo da pintura espanhola.

A seu modo, a escrita de João Almino busca emular essa atmosfera de apropriações simultâneas de tradições diversas.

Explico.

Melhor: venho à epígrafe extraída da tradução de Jordi Quingles de um dos textos centrais do cânone árabe.

            A trama de Enigmas da Primavera atualiza, ou seja, transforma, a mais divulgada história de amor da literatura árabe, transmitida oralmente e codificada, no século XII, pelo poeta persa Nizami – e, desde então, reescrita um sem-fim de vezes.

           

            (E até mesmo no registro da música pop; como o protagonista recorda, pois ele “procurou no YouTube a canção de Eric Clapton”, inspirada na lenda árabe.)

 

            Ademais, o protagonista do romance tem o nome do personagem do poema de Nizami: Majnun, isto é, o louco – louco de amor, bem entendido. Na verdade, esse nome era antes o epíteto de um personagem histórico, Kais In al-Malawwah, que se apaixonou por uma jovem, Layla Alamiriyya, e, ao ser rejeitado pela família dela, passou a viver como um eremita no deserto. Posteriormente, ao inteirar-se do casamento de Layla, Kais perdeu a razão.

Vejamos as diferenças.

A Laila do romance de João Almino não é uma adolescente, porém uma balzaquiana que se envolve com o rapaz, pois “ela se vingava de seu marido” – confidencia o narrador.

            Há mais.

Na história árabe, como vimos, Kais enlouquece de amor, transformando-se no Majnun do poema. No romance de Almino, o protagonista já principia como Majnun, um personagem fronteiriço desde a primeira página. E isso talvez porque suas fraquezas e delírios sejam “própri[os] de seu tempo. O que não sabia era que o seu tempo podia mudar de feição”.

            E também, por que não, a própria literatura de João Almino?

            Se vejo bem, o autor de A idade do presente (1985) reinventa sua escrita no cruzamento de horizontes estéticos – Brasília e Espanha –, no atrito entre tempos históricos – o presente imediato, com seu futuro enigmático, e a Espanha medieval, com sua mescla ainda hoje imponderável das tradições árabe, cristã e hebraica –, e no encontro da chamada alta cultura com o universo pop – da literatura árabe a Walter Benjamin, de Rihanna ao grupo de hip-hop Ratatat.

            E não é tudo.

            No Quinteto dedicado à Brasília, o leitor acompanhou, passo a passo, uma experimentação fascinante com uma voz narrativa que aludia constantemente à dicção machadiana. De igual sorte, romance a romance, a frase tornava-se sempre mais apurada e minimalista, chegando a emular a prosa do Conselheiro Aires.

            Uma nova escrita, contudo, se insinua em Enigmas da Primavera. O narrador flerta com a tradição dos romances picarescos, sem abandonar o trato irreverente dispensado ao leitor; a frase adquire um colorido novo, no qual se alternam registros por vezes opostos – à concisão de um parágrafo sucedem-se descrições generosas da beleza de uma mulher ou dos desejos de Majnun.

Numa palavra, o leitor de Enigmas da Primavera tem diante de si um João Almino até então desconhecido.

Difícil imaginar conquista estética mais ousada para um autor consagrado.

(E mais não digo, pois seria impertinente privar o leitor da alegria da descoberta.)

A reinvenção de um autor: Enigmas da Primavera

por João Cezar de Castro Rocha

Enigmas da Primavera: o título do novo romance de João Almino antecipa a surpresa que aguarda o fiel leitor do Quinteto encerrado com Cidade Livre (2010), cuja arquitetura ficcional remete à cidade de Brasília.

Na ficção de Almino, como bem sabe o leitor de Ideias para onde passar o fim do mundo (1987), Brasília é um laboratório de experiências linguísticas, políticas e existenciais. Afinal, a cidade favorece a superposição de paradoxos e paralaxes: racionalidade e misticismo; utopia modernista e corrupção endêmica; promessa de futuro e atavismo.

Neste novo romance, Brasília ainda fornece parcialmente o cenário da ação narrativa. No entanto, não seria excessivo sugerir que João Almino literalmente reinventou sua literatura com a escrita de Enigmas da Primavera. Reinvenção que talvez possa ser mais bem compreendida pela leitura das quatro epígrafes; pórticos para essa nova fase de sua ficção.

 

(Pórticos ou pilotis – se você pensar na paisagem urbana de Brasília.)

 

Vejamos, então, as epígrafes-pilotis.

A frase-valise de Claude Lévi-Strauss esclarece a reflexão que estrutura as peregrinações do protagonista do romance – Majnun. Vale dizer, o paradoxo multissecular do Islã, que, em seus primórdios, assumiu a tolerância como fundamento ético da própria religião, e, hoje em dia, tem sua doutrina interpretada indevidamente por uma série de grupos fundamentalistas, cuja marca-d’água é a intolerância absoluta.

Sintomático, portanto, que o protagonista já não saiba viver sem recorrer o tempo todo à tríade nossa de cada dia: iPad, iPhone, laptop… Ora, se o universo digital foi decisivo na propagação de tantas primaveras políticas no mundo contemporâneo, esse mesmo universo se metamorfoseia muito rapidamente numa miríade de Faixas de Gaza, cuja virulência alimenta uma escalada incontrolável de violência simbólica.

Nesse contexto, os versos de Antonio Machado:

 

            La primavera ha venido.

            Nadie sabe cómo ha sido.

 

Cifram à perfeição a perplexidade provocada pelos inúmeros movimentos de contestação de estruturas políticas tradicionais e de afirmação das liberdades individuais, cujos rumos por vezes desnorteiam inclusive os observadores mais otimistas.

            No romance, Almino reúne com habilidade os indignados franceses e espanhóis com as manifestações brasileiras de junho de 2013 – muito provavelmente esta é uma das primeiras tentativas de enfrentar o desafio de dar forma literária ao presente imediato.

No fundo, quem sabe como interpretar essa onda de protestos que tanto se agiganta como se esfuma num piscar de olhos?

Quando surgirão os Gabriel Tarde, Gustave Le Bon e Sigmund Freud do universo digital?

Como interpretar a psicologia das multidões cibernéticas no mundo da política na era da reprodutibilidade viral?

Enigmas da Primavera articula uma reflexão pioneira acerca do exercício da política no século XXI. Para tanto, esboçar uma análise das manifestações de junho de 2013 é passo ousado, porém indispensável. Nas palavras do protagonista, o eixo daquelas manifestações talvez se encontre “na vontade da gente participar, no salto das redes sociais pras ruas, na desconfiança quanto aos representantes políticos, na horizontalidade das manifestações. Não existem líderes entre nós. Estamos no mesmo barco. Somos iguais”.

Talvez – eu escrevi.

Afinal, a velocidade das mudanças torna temerário todo esforço de análise.

 

(Temerário: isto é: incontornável.)

 

Esse cenário somente se complica com as duas epígrafes que ainda não comentei.

Impressiona o impacto que a Espanha produziu na ficção de João Almino; impacto esse que evoca a presença da Andaluzia na poesia de João Cabral de Melo Neto, cuja obra, a partir da vivência espanhola, concentrou-se entre Recife e Sevilha. De igual modo, e ao que tudo indica, na prosa de Almino, a imagem de Brasília, agora, articula-se à visão do mundo inspirada na cultura espanhola, e, sobretudo, no seu elo, no passado distante, com a tradição árabe. Penso na primeira experiência decididamente multicultural da civilização europeia, cujo momento mais expressivo continua sendo a “Escuela de Traductores de Toledo”. Aliás, mencionada no romance: “Começou falando das contribuições dos árabes para a ciência e a cultura na Europa durante a Idade Média. Um dos começos da Europa teria sido a Toledo muçulmana”.

De fato: entre os séculos XII e XIII, sábios árabes, judeus e cristãos trabalharam lado a lado num processo exemplar de tradução e retradução trilíngue. Desse modo, preservou-se o legado da cultura grega clássica, ampliando-se, e muito, o futuro repertório humanístico europeu. Toledo tornou-se, assim, uma autêntica cidade-ponte entre as tradições culturais do Oriente e do Ocidente.

Por isso mesmo, El Greco não poderia ter imaginado lugar mais propício para encerrar sua carreira e criar algumas de suas telas mais celebradas.

Claro: o percurso do pintor se assemelha a uma inesperada metonímia dessa vocação multicultural, pois sua arte pôs em circulação uma complexa rede que articulava a tradição bizantina dos ícones, as técnicas, adversárias, no privilégio da cor ou do desenho, respectivamente, das escolas veneziana e romana, e, por fim, o influxo da pintura espanhola.

A seu modo, a escrita de João Almino busca emular essa atmosfera de apropriações simultâneas de tradições diversas.

Explico.

Melhor: venho à epígrafe extraída da tradução de Jordi Quingles de um dos textos centrais do cânone árabe.

            A trama de Enigmas da Primavera atualiza, ou seja, transforma, a mais divulgada história de amor da literatura árabe, transmitida oralmente e codificada, no século XII, pelo poeta persa Nizami – e, desde então, reescrita um sem-fim de vezes.

           

            (E até mesmo no registro da música pop; como o protagonista recorda, pois ele “procurou no YouTube a canção de Eric Clapton”, inspirada na lenda árabe.)

 

            Ademais, o protagonista do romance tem o nome do personagem do poema de Nizami: Majnun, isto é, o louco – louco de amor, bem entendido. Na verdade, esse nome era antes o epíteto de um personagem histórico, Kais In al-Malawwah, que se apaixonou por uma jovem, Layla Alamiriyya, e, ao ser rejeitado pela família dela, passou a viver como um eremita no deserto. Posteriormente, ao inteirar-se do casamento de Layla, Kais perdeu a razão.

Vejamos as diferenças.

A Laila do romance de João Almino não é uma adolescente, porém uma balzaquiana que se envolve com o rapaz, pois “ela se vingava de seu marido” – confidencia o narrador.

            Há mais.

Na história árabe, como vimos, Kais enlouquece de amor, transformando-se no Majnun do poema. No romance de Almino, o protagonista já principia como Majnun, um personagem fronteiriço desde a primeira página. E isso talvez porque suas fraquezas e delírios sejam “própri[os] de seu tempo. O que não sabia era que o seu tempo podia mudar de feição”.

            E também, por que não, a própria literatura de João Almino?

            Se vejo bem, o autor de A idade do presente (1985) reinventa sua escrita no cruzamento de horizontes estéticos – Brasília e Espanha –, no atrito entre tempos históricos – o presente imediato, com seu futuro enigmático, e a Espanha medieval, com sua mescla ainda hoje imponderável das tradições árabe, cristã e hebraica –, e no encontro da chamada alta cultura com o universo pop – da literatura árabe a Walter Benjamin, de Rihanna ao grupo de hip-hop Ratatat.

            E não é tudo.

            No Quinteto dedicado à Brasília, o leitor acompanhou, passo a passo, uma experimentação fascinante com uma voz narrativa que aludia constantemente à dicção machadiana. De igual sorte, romance a romance, a frase tornava-se sempre mais apurada e minimalista, chegando a emular a prosa do Conselheiro Aires.

            Uma nova escrita, contudo, se insinua em Enigmas da Primavera. O narrador flerta com a tradição dos romances picarescos, sem abandonar o trato irreverente dispensado ao leitor; a frase adquire um colorido novo, no qual se alternam registros por vezes opostos – à concisão de um parágrafo sucedem-se descrições generosas da beleza de uma mulher ou dos desejos de Majnun.

Numa palavra, o leitor de Enigmas da Primavera tem diante de si um João Almino até então desconhecido.

Difícil imaginar conquista estética mais ousada para um autor consagrado.

(E mais não digo, pois seria impertinente privar o leitor da alegria da descoberta.)