A epopeia candanga pelo avesso – Sobre Cidade Livre, de João Almino

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A epopeia candanga pelo avesso

João Vianney Cavalcanti Nuto (*)

Aprendemos a falar de Brasília em tons e motivos épicos. Brasília tem seu profeta: D. Bosco. Tem seu herói fundador: Juscelino Kubitschek. Seus generais desbravadores: Bernardo Sayão e Israel Pinheiro. Seus sábios: Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. E também seus bravos e anônimos soldados: os candangos.
Brasília também tem seu exército de bardos maiores e menores, entre poetas, ficcionistas, historiadores, jornalistas e testemunhas de sua construção. Contudo, como acontece com outros feitos grandiosos, o brilho épico ofuscante do início aos poucos se contrapõe à sobriedade crítica de alguns cronistas – que, no entanto, nunca negam o caráter heróico da empreitada, mas acrescentam-lhe aqueles aspectos incômodos que o discurso heróico prefere ignorar. É esse olhar crítico – atento às mazelas que o discurso oficial abafa – que hoje encontramos no documentário Companheiros velhos de guerra, de Wladimir Carvalho, e no recente romance Cidade Livre, de João Almino.
João Almino não apresenta um grande painel épico da construção de Brasília; tampouco apresenta um romance do tipo historiográfico. Antes elabora um romance em que o tom de recordação íntima se contrapõe à memória monumental épica, esta também presente, mas sempre em segundo plano. O que conduz e dá o tom do romance é a recordação de J.A., jornalista criado na Cidade Livre (como se chamava o atual Núcleo Bandeirante na época da construção da nova capital). Para falar de si – de seus conflitos com o pai – enquanto relembra a construção de Brasília, o narrador adulto recorda sua infância, recorre a antigas anotações do pai e à ajuda de seguidores do seu blog (suporte fictício do romance) e eventualmente acata as sugestões do revisor João Almino…
Como narrador protagonista, é J.A. quem conduz a narrativa, mas essa condução é dividida virtualmente com o pai, que, embora não atue como narrador, aparece como principal motivação das recordações e pesquisas de J.A. Isto acontece porque o que motiva o protagonista é a suposta culpa do pai no assassinato de Valdivino, operário amigo da família, morto em circunstâncias não explicadas. Valdivino, um dos muitos migrantes da construção de Brasília, agrega ao romance a visão não oficial dos candangos, a opressão sofrida por um empreendimento cuja grandeza literalmente atropelava e esmagava os homens envolvidos. Por meio do discurso de Valdivino, tomamos conhecimento da atuação violenta da GEB (Guarda Especial de Brasília); dos motins e mortes causados pela péssima qualidade da comida servida aos operários; de episódios obscuros como as mortes ocorridas por ocasião da abertura das comportas para inundação da área onde hoje é o Lago Paranoá.
Outro personagem importante, tanto no desenvolvimento do conflito quanto na apresentação da visão não oficial é Lucrécia. Esse personagem ambíguo é uma mistura de prostituta com sacerdotisa de um sincretismo de várias religiões, caracterizada por um discurso delirante que junta fragmentos das mais diversas crenças: o Eldorado encontrado pelo desaparecido explorador Fawcet; reminiscências egípcias, profecias diversas; elementos de várias religiões protestantes; do espiritismo; tudo isso misturado com apropriação mística pessoal de dados antropológicos sobre os primeiros homens americanos… Mostra-se assim o lado místico de Brasília, do qual Tia Neiva é apenas uma das evocações. Mas a ambigüidade de Lucrécia vai mais além, pois ela é causa não somente do enriquecimento nem sempre lícito do pai do narrador como também é suposta causa da morte de Valdivino. Assim vemos na figura ambígua de Lucrécia uma alegoria da própria Brasília.
A visão não oficial também é fornecida por personagens coadjuvantes, como Francisca e Matilde, tias de J.A. Em segundo plano, sempre filtrados pela subjetividade dos personagens, transparecem fragmentos do discurso oficial, por meio de citações sobre a grandiosidade de Brasília, em declarações deslumbradas de personalidades como presidentes André Malraux; Aldous Huxley; Frank Capra; os então presidentes Giovanni Gronchi, da Itália, Lopez Mateus, do México, e Eisenhower, dos Estados Unidos, entre outros.
A segunda voz épica, já presente nos discursos oficiais mencionados, é recriada de maneira sutil pelo autor. Sem perder o tom intimista, o autor recria o presságio típico das narrativas épicas, por meio do comportamento do cachorro Tufão, e também o insinua o maravilhoso épico no relato sobre a morte de Bernardo Sayão, atingido por um pau de feitiço, defensor da floresta.
Em Cidade Livre, João Almino evita tanto a pura reprodução pura e simples do discurso oficial sobre Brasília quanto o simples deslocamento desse discurso, que evocaria o trabalho dos operários no mesmo tom épico. Evita também estruturar sua narrativa pela acumulação excessiva de dados históricos. Assim, logra construir um belo romance de estilo memorialista, com discretas observações sobre a evocação e reconstrução do passado pela narrativa.

(*) Professor do Departamento de Teoria Literária e Literaturas da UnB
[:en]A epopeia candanga pelo avesso

João Vianney Cavalcanti Nuto ( *)

Aprendemos a falar de Brasília em tons e motivos épicos. Brasília tem seu profeta: D. Bosco. Tem seu herói fundador: Juscelino Kubitschek. Seus generais desbravadores: Bernardo Sayão e Israel Pinheiro. Seus sábios: Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. E também seus bravos e anônimos soldados: os candangos.
Brasília também tem seu exército de bardos maiores e menores, entre poetas, ficcionistas, historiadores, jornalistas e testemunhas de sua construção. Contudo, como acontece com outros feitos grandiosos, o brilho épico ofuscante do início aos poucos se contrapõe à sobriedade crítica de alguns cronistas – que, no entanto, nunca negam o caráter heróico da empreitada, mas acrescentam-lhe aqueles aspectos incômodos que o discurso heróico prefere ignorar. É esse olhar crítico – atento às mazelas que o discurso oficial abafa – que hoje encontramos no documentário Companheiros velhos de guerra, de Wladimir Carvalho, e no recente romance Cidade Livre, de João Almino.
João Almino não apresenta um grande painel épico da construção de Brasília; tampouco apresenta um romance do tipo historiográfico. Antes elabora um romance em que o tom de recordação íntima se contrapõe à memória monumental épica, esta também presente, mas sempre em segundo plano. O que conduz e dá o tom do romance é a recordação de J.A., jornalista criado na Cidade Livre (como se chamava o atual Núcleo Bandeirante na época da construção da nova capital). Para falar de si – de seus conflitos com o pai – enquanto relembra a construção de Brasília, o narrador adulto recorda sua infância, recorre a antigas anotações do pai e à ajuda de seguidores do seu blog (suporte fictício do romance) e eventualmente acata as sugestões do revisor João Almino…
Como narrador protagonista, é J.A. quem conduz a narrativa, mas essa condução é dividida virtualmente com o pai, que, embora não atue como narrador, aparece como principal motivação das recordações e pesquisas de J.A. Isto acontece porque o que motiva o protagonista é a suposta culpa do pai no assassinato de Valdivino, operário amigo da família, morto em circunstâncias não explicadas. Valdivino, um dos muitos migrantes da construção de Brasília, agrega ao romance a visão não oficial dos candangos, a opressão sofrida por um empreendimento cuja grandeza literalmente atropelava e esmagava os homens envolvidos. Por meio do discurso de Valdivino, tomamos conhecimento da atuação violenta da GEB (Guarda Especial de Brasília); dos motins e mortes causados pela péssima qualidade da comida servida aos operários; de episódios obscuros como as mortes ocorridas por ocasião da abertura das comportas para inundação da área onde hoje é o Lago Paranoá.
Outro personagem importante, tanto no desenvolvimento do conflito quanto na apresentação da visão não oficial é Lucrécia. Esse personagem ambíguo é uma mistura de prostituta com sacerdotisa de um sincretismo de várias religiões, caracterizada por um discurso delirante que junta fragmentos das mais diversas crenças: o Eldorado encontrado pelo desaparecido explorador Fawcet; reminiscências egípcias, profecias diversas; elementos de várias religiões protestantes; do espiritismo; tudo isso misturado com apropriação mística pessoal de dados antropológicos sobre os primeiros homens americanos… Mostra-se assim o lado místico de Brasília, do qual Tia Neiva é apenas uma das evocações. Mas a ambigüidade de Lucrécia vai mais além, pois ela é causa não somente do enriquecimento nem sempre lícito do pai do narrador como também é suposta causa da morte de Valdivino. Assim vemos na figura ambígua de Lucrécia uma alegoria da própria Brasília.
A visão não oficial também é fornecida por personagens coadjuvantes, como Francisca e Matilde, tias de J.A. Em segundo plano, sempre filtrados pela subjetividade dos personagens, transparecem fragmentos do discurso oficial, por meio de citações sobre a grandiosidade de Brasília, em declarações deslumbradas de personalidades como presidentes André Malraux; Aldous Huxley; Frank Capra; os então presidentes Giovanni Gronchi, da Itália, Lopez Mateus, do México, e Eisenhower, dos Estados Unidos, entre outros.
A segunda voz épica, já presente nos discursos oficiais mencionados, é recriada de maneira sutil pelo autor. Sem perder o tom intimista, o autor recria o presságio típico das narrativas épicas, por meio do comportamento do cachorro Tufão, e também o insinua o maravilhoso épico no relato sobre a morte de Bernardo Sayão, atingido por um pau de feitiço, defensor da floresta.
Em Cidade Livre, João Almino evita tanto a pura reprodução pura e simples do discurso oficial sobre Brasília quanto o simples deslocamento desse discurso, que evocaria o trabalho dos operários no mesmo tom épico. Evita também estruturar sua narrativa pela acumulação excessiva de dados históricos. Assim, logra construir um belo romance de estilo memorialista, com discretas observações sobre a evocação e reconstrução do passado pela narrativa.

(*) Professor do Departamento de Teoria Literária e Literaturas da UnB[:es]A epopeia candanga pelo avesso

João Vianney Cavalcanti Nuto (*)

Aprendemos a falar de Brasília em tons e motivos épicos. Brasília tem seu profeta: D. Bosco. Tem seu herói fundador: Juscelino Kubitschek. Seus generais desbravadores: Bernardo Sayão e Israel Pinheiro. Seus sábios: Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. E também seus bravos e anônimos soldados: os candangos.
Brasília também tem seu exército de bardos maiores e menores, entre poetas, ficcionistas, historiadores, jornalistas e testemunhas de sua construção. Contudo, como acontece com outros feitos grandiosos, o brilho épico ofuscante do início aos poucos se contrapõe à sobriedade crítica de alguns cronistas – que, no entanto, nunca negam o caráter heróico da empreitada, mas acrescentam-lhe aqueles aspectos incômodos que o discurso heróico prefere ignorar. É esse olhar crítico – atento às mazelas que o discurso oficial abafa – que hoje encontramos no documentário Companheiros velhos de guerra, de Wladimir Carvalho, e no recente romance Cidade Livre, de João Almino.
João Almino não apresenta um grande painel épico da construção de Brasília; tampouco apresenta um romance do tipo historiográfico. Antes elabora um romance em que o tom de recordação íntima se contrapõe à memória monumental épica, esta também presente, mas sempre em segundo plano. O que conduz e dá o tom do romance é a recordação de J.A., jornalista criado na Cidade Livre (como se chamava o atual Núcleo Bandeirante na época da construção da nova capital). Para falar de si – de seus conflitos com o pai – enquanto relembra a construção de Brasília, o narrador adulto recorda sua infância, recorre a antigas anotações do pai e à ajuda de seguidores do seu blog (suporte fictício do romance) e eventualmente acata as sugestões do revisor João Almino…
Como narrador protagonista, é J.A. quem conduz a narrativa, mas essa condução é dividida virtualmente com o pai, que, embora não atue como narrador, aparece como principal motivação das recordações e pesquisas de J.A. Isto acontece porque o que motiva o protagonista é a suposta culpa do pai no assassinato de Valdivino, operário amigo da família, morto em circunstâncias não explicadas. Valdivino, um dos muitos migrantes da construção de Brasília, agrega ao romance a visão não oficial dos candangos, a opressão sofrida por um empreendimento cuja grandeza literalmente atropelava e esmagava os homens envolvidos. Por meio do discurso de Valdivino, tomamos conhecimento da atuação violenta da GEB (Guarda Especial de Brasília); dos motins e mortes causados pela péssima qualidade da comida servida aos operários; de episódios obscuros como as mortes ocorridas por ocasião da abertura das comportas para inundação da área onde hoje é o Lago Paranoá.
Outro personagem importante, tanto no desenvolvimento do conflito quanto na apresentação da visão não oficial é Lucrécia. Esse personagem ambíguo é uma mistura de prostituta com sacerdotisa de um sincretismo de várias religiões, caracterizada por um discurso delirante que junta fragmentos das mais diversas crenças: o Eldorado encontrado pelo desaparecido explorador Fawcet; reminiscências egípcias, profecias diversas; elementos de várias religiões protestantes; do espiritismo; tudo isso misturado com apropriação mística pessoal de dados antropológicos sobre os primeiros homens americanos… Mostra-se assim o lado místico de Brasília, do qual Tia Neiva é apenas uma das evocações. Mas a ambigüidade de Lucrécia vai mais além, pois ela é causa não somente do enriquecimento nem sempre lícito do pai do narrador como também é suposta causa da morte de Valdivino. Assim vemos na figura ambígua de Lucrécia uma alegoria da própria Brasília.
A visão não oficial também é fornecida por personagens coadjuvantes, como Francisca e Matilde, tias de J.A. Em segundo plano, sempre filtrados pela subjetividade dos personagens, transparecem fragmentos do discurso oficial, por meio de citações sobre a grandiosidade de Brasília, em declarações deslumbradas de personalidades como presidentes André Malraux; Aldous Huxley; Frank Capra; os então presidentes Giovanni Gronchi, da Itália, Lopez Mateus, do México, e Eisenhower, dos Estados Unidos, entre outros.
A segunda voz épica, já presente nos discursos oficiais mencionados, é recriada de maneira sutil pelo autor. Sem perder o tom intimista, o autor recria o presságio típico das narrativas épicas, por meio do comportamento do cachorro Tufão, e também o insinua o maravilhoso épico no relato sobre a morte de Bernardo Sayão, atingido por um pau de feitiço, defensor da floresta.
Em Cidade Livre, João Almino evita tanto a pura reprodução pura e simples do discurso oficial sobre Brasília quanto o simples deslocamento desse discurso, que evocaria o trabalho dos operários no mesmo tom épico. Evita também estruturar sua narrativa pela acumulação excessiva de dados históricos. Assim, logra construir um belo romance de estilo memorialista, com discretas observações sobre a evocação e reconstrução do passado pela narrativa.

(*) Professor do Departamento de Teoria Literária e Literaturas da UnB[:fr]A epopeia candanga pelo avesso

João Vianney Cavalcanti Nuto (*)

Aprendemos a falar de Brasília em tons e motivos épicos. Brasília tem seu profeta: D. Bosco. Tem seu herói fundador: Juscelino Kubitschek. Seus generais desbravadores: Bernardo Sayão e Israel Pinheiro. Seus sábios: Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. E também seus bravos e anônimos soldados: os candangos.
Brasília também tem seu exército de bardos maiores e menores, entre poetas, ficcionistas, historiadores, jornalistas e testemunhas de sua construção. Contudo, como acontece com outros feitos grandiosos, o brilho épico ofuscante do início aos poucos se contrapõe à sobriedade crítica de alguns cronistas – que, no entanto, nunca negam o caráter heróico da empreitada, mas acrescentam-lhe aqueles aspectos incômodos que o discurso heróico prefere ignorar. É esse olhar crítico – atento às mazelas que o discurso oficial abafa – que hoje encontramos no documentário Companheiros velhos de guerra, de Wladimir Carvalho, e no recente romance Cidade Livre, de João Almino.
João Almino não apresenta um grande painel épico da construção de Brasília; tampouco apresenta um romance do tipo historiográfico. Antes elabora um romance em que o tom de recordação íntima se contrapõe à memória monumental épica, esta também presente, mas sempre em segundo plano. O que conduz e dá o tom do romance é a recordação de J.A., jornalista criado na Cidade Livre (como se chamava o atual Núcleo Bandeirante na época da construção da nova capital). Para falar de si – de seus conflitos com o pai – enquanto relembra a construção de Brasília, o narrador adulto recorda sua infância, recorre a antigas anotações do pai e à ajuda de seguidores do seu blog (suporte fictício do romance) e eventualmente acata as sugestões do revisor João Almino…
Como narrador protagonista, é J.A. quem conduz a narrativa, mas essa condução é dividida virtualmente com o pai, que, embora não atue como narrador, aparece como principal motivação das recordações e pesquisas de J.A. Isto acontece porque o que motiva o protagonista é a suposta culpa do pai no assassinato de Valdivino, operário amigo da família, morto em circunstâncias não explicadas. Valdivino, um dos muitos migrantes da construção de Brasília, agrega ao romance a visão não oficial dos candangos, a opressão sofrida por um empreendimento cuja grandeza literalmente atropelava e esmagava os homens envolvidos. Por meio do discurso de Valdivino, tomamos conhecimento da atuação violenta da GEB (Guarda Especial de Brasília); dos motins e mortes causados pela péssima qualidade da comida servida aos operários; de episódios obscuros como as mortes ocorridas por ocasião da abertura das comportas para inundação da área onde hoje é o Lago Paranoá.
Outro personagem importante, tanto no desenvolvimento do conflito quanto na apresentação da visão não oficial é Lucrécia. Esse personagem ambíguo é uma mistura de prostituta com sacerdotisa de um sincretismo de várias religiões, caracterizada por um discurso delirante que junta fragmentos das mais diversas crenças: o Eldorado encontrado pelo desaparecido explorador Fawcet; reminiscências egípcias, profecias diversas; elementos de várias religiões protestantes; do espiritismo; tudo isso misturado com apropriação mística pessoal de dados antropológicos sobre os primeiros homens americanos… Mostra-se assim o lado místico de Brasília, do qual Tia Neiva é apenas uma das evocações. Mas a ambigüidade de Lucrécia vai mais além, pois ela é causa não somente do enriquecimento nem sempre lícito do pai do narrador como também é suposta causa da morte de Valdivino. Assim vemos na figura ambígua de Lucrécia uma alegoria da própria Brasília.
A visão não oficial também é fornecida por personagens coadjuvantes, como Francisca e Matilde, tias de J.A. Em segundo plano, sempre filtrados pela subjetividade dos personagens, transparecem fragmentos do discurso oficial, por meio de citações sobre a grandiosidade de Brasília, em declarações deslumbradas de personalidades como presidentes André Malraux; Aldous Huxley; Frank Capra; os então presidentes Giovanni Gronchi, da Itália, Lopez Mateus, do México, e Eisenhower, dos Estados Unidos, entre outros.
A segunda voz épica, já presente nos discursos oficiais mencionados, é recriada de maneira sutil pelo autor. Sem perder o tom intimista, o autor recria o presságio típico das narrativas épicas, por meio do comportamento do cachorro Tufão, e também o insinua o maravilhoso épico no relato sobre a morte de Bernardo Sayão, atingido por um pau de feitiço, defensor da floresta.
Em Cidade Livre, João Almino evita tanto a pura reprodução pura e simples do discurso oficial sobre Brasília quanto o simples deslocamento desse discurso, que evocaria o trabalho dos operários no mesmo tom épico. Evita também estruturar sua narrativa pela acumulação excessiva de dados históricos. Assim, logra construir um belo romance de estilo memorialista, com discretas observações sobre a evocação e reconstrução do passado pela narrativa.

(*) Professor do Departamento de Teoria Literária e Literaturas da UnB[:]