Abel Barros Baptista sobre HOMEM DE PAPEL

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SOBRE “HOMEM DE PAPEL”, LEIA POSFÁCIO DO PROFESSOR ABEL BARROS BAPTISTA, DA UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA:

“Olha, conselheiro… O senhor deve ficar no livro, é o que lhe digo. Nem Machado de Assis consegue permanecer como grande escritor sem a presença do senhor. Fique, conselheiro. O mundo lá fora, como está, não merece o senhor.” São palavras de uma certa D. Cesária, que o leitor vai encontrar bem cedo no livro que tem nas mãos. O mundo “lá fora” é o que vamos chamando de nosso, decerto aquele onde o mesmo leitor passa os seus dias; por oposição, lá dentro, o mundo é o do livro, e o livro é evidentemente Memorial de Aires. O problema do livro de João Almino fica assim posto por essa figura que já animava a obra de Machado com tanta maldade como graça: não tanto o problema de sair do livro, antes o de, saindo, ficar neste outro mundo, o que chamamos nosso. Nenhum mistério. De entrada se percebe que Aires está no livro e é o livro; e o livro, por sua vez, circula nesse nosso mundo, presente e próximo, pela mão de Flor, que tem no mesmo conselheiro Aires o seu interlocutor favorito. (Flor, não Flora, advertência em atenção aos machadianos assíduos.) Num certo sentido, o empreendimento ficcional de João Almino ajeita-se bem à formulação que descrevia D. Cesária: dá interesse a um reputado entediado e movimento a um confirmado defunto. Num primeiro movimento, a deslocação de Aires sugere que o romance o traz a este nosso mundo para o consertar, ao mundo, ou para que ele se conserte, o conselheiro. Quando o célebre verso de Shelley comparece — I can give not what men call love —, a sugestão é de algum intuito redescritivo, como se João Almino pretendesse, trazendo Aires ao nosso presente, restituir-lhe uma oportunidade de amor que negou a si mesmo no romance de Machado e, depois, uma oportunidade de empenho que lhe parecia negar a condição diplomática. A primeira possibilidade de Homem de Papel é assim a metaficcional; Aires narrando-se de novo, mas para se inventar novo. Entretanto, num lance surpreendente se compreende que Homem de Papel vai noutro sentido sem renunciar a esse primeiro. Ficar ou não ficar no mundo deste século, este mundo merecê-lo ou não, enquanto decisões e juízos atribuídos ao conselheiro Aires, emergem no confronto com a brutalidade desse “mundo lá fora” e abrem o caminho para uma alegoria delirante e sarcástica da actual conjuntura política brasileira, incompatível tanto com a diplomacia como com o tédio da controvérsia famosamente caracterizadores de Aires. O contraste é grande, e enorme a distância da delicadeza melancólica à boçalidade em que Aires fica tentado a morar para sempre. D. Cesária adverte que assim se prejudicaria a grandeza de Machado, que o mundo lá fora não merece o conselheiro: e eis a graça sem maldade nenhuma e a maldade sem graça nenhuma reunidas num só problema: ficar ou não ficar fora do livro. João Almino subverte Aires para o restituir ao original Aires de 1908: depois de ter transformado esse mesmo original em gerador de encontros e desencontros catalisados politicamente pelo aparecimento de uma anta. A discrepância entre os dois movimentos é suficientemente flagrante para operar uma lição de literatura: surpreendente e inteligente, remetendo ao passado sem perder a atração pelo presente, denunciando e do mesmo passo contemplando. E irónico, claro, divertidamente irónico, ou não fosse Aires o mais eminentemente personagem machadiano transportável para fora do livro e o mais eminentemente capaz de restaurar a necessidade de a ele regressar.

Abel Barros Baptista, Universidade Nova de Lisboa