APRENDER A NADAR

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Pensar – Correio Braziliense, 15 de julho de 2001

Rogério Menezes

Os romances de Adriana Lisboa, Rubens Figueiredo e João Almino comprovam: a nova literatura brasileira a está no bom caminho

A literatura brasileira – pelo menos a produzida nestes sete primeiros meses de 2001 – vai muito bem, obrigada. Pelo menos três fatos atestam tal afirmação. Vamos a eles.

Os novos romances de Adriana Lisboa, 30 (Sinfonia em branco), Rubens Figueiredo, 45 (Barco a seco) e João Almino, 51 (As cinco estações do amor) talvez estejam léguas aquém do que os mais ferrenhamente canônicos poderiam considerar obras-primas. Têm, aqui e ali, alguns pequenos defeitos. Quais? Descubra-os você mesmo, caro leitor.

Mas, cá para nós, caro leitor, quem disse que a literatura de um país se faz apenas com obras-primas?

A árdua e nobre missão de escrever obras-primas é resultado de aprendizado constante, de renhida labuta literária, sem tréguas, de talvez mais transpiração do que inspiração. Escrever romances deve ser ofício como outro qualquer: exige experiência acumulada em que o saber advém da prática repetida. Se possível, exaustivamente.

Como diria o camarada Mao Tsé-Tung (ou teria sido Jards Macalé?), aprende-se a nadar nadando. Ou seja: o escritor, seja em que país tiver nascido, só chegará à grande literatura – se é que um dia chegará – exercitando-se constantemente, pondo a cara à tapa, expondo-se em praça pública, não se deixando abater por críticos e passíveis, intolerantes com que ainda não foi consagrado – e, eventualmente, incompetentes. E, importantíssimo, lendo, lendo muito – de Almanaque Capivarol a Franz Kafka.

Sinfonia em branco, Barco a seco e As cinco estações do amor podem não ser obras-primas, mas os autores que os escreveram demonstram: estão no bom caminho, na busca do texto preciso, exato, contundente, bem escrito, vigoroso e impregnado de emoção. Sem emoção não há nada. Absolutamente nada. Muito menos grande literatura.

Adriana, Almino e Rubens escreveram livros muito bons, ótimos augúrios do que poderá vir por aí na literatura brasileira deste início de século. Que sejam.

Há neles – e isso os engrandece – a edificante preocupação em registrar, sem firulas, a pulsação do homem contemporâneo, desses seres cheios de tensão e fúria que a gente vê por aí e por aqui, no volante dos automóveis, atravessando nervosamente faixas dos pedestres, morrendo e matando, devorando e sendo devorado.

Em As cinco estações do amor, João Almino (também autor dos romances Idéias para onde passar o fim do mundo e Samba-enredo) mergulha na alma de Ana, às vezes Diana, professora universitária aposentada de 55 anos, em conflito com o excesso de lixo, real e metafórico, que acumulou durante a vida inteira. Eis a questão: livrar-se ou não desses baús todos que quase a levaram à loucura. A resolução do dilema, a decifração do enigma, significa sobreviver ou não sobreviver.

Ao contrário do que se possa pensar, esse ato de simplificar a vida, para Ana (ou para qualquer um de nós), dói. Dói muito. Mas Ana sobrevive.

Como se vê, Ana é gente como eu, como você, encontrável a qualquer momento, em qualquer lugar ou esquina – de Brasília ou de Tóquio.

Barco a seco, de Rubens Figueiredo (também autor de O livro dos lobos e As palavras secretas), desvenda a mente de homem pobre que descobre no mercado da arte a (única) chance de melhorar na vida, de sair do abismo social que o (des)nutriu. Especializa-se na dissecação do cadáver artístico de pintor obscuro chamado Emilio Vega, especializado em desenhar aparentemente simplórias paisagens marinhas.

Dessa quase fusão entre obcecado (Gaspar, o narrador) e obcecando (Emilio Vega) resulta notável – e duro – retrato do corpo e da alma de todos nós – entre a miséria, o caos e a morte. Apesar de narrativa cercada de mar por todos os lados, o romance é seco, enxuto – de precisão quase gracilianorâmica. O título do romance é, portanto, adequadíssimo.

Adriana Lisboa, também autora de Os fios da memória, a mais jovem dessa literária trindade, é ambiciosa. Ao contrário de seus pares, que preferem centrar fogo em um só personagem-protagonista, divide, irmãmente, a narrativa de Sinfonia em branco por várias criaturas: os pais, Otacília e Afonso Olímpio, as filhas, Clarice e Maria Inês, e seus respectivos homens: Tomás, Ilton Xavier e João Miguel.

Adriana Lisboa afunda-se em saga familiar, com aqueles desdobramentos de praxe: incesto, rivalidade entre irmãs, doenças terminais, sentimentos reprimidos. Nada que Lucio Cardoso não tivesse sublimemente retratado em Casa assassinada. Ou Milton Hatoum, menos brilhantemente, em Dois irmãos.

Adriana Lisboa, apesar de nos fazer lembrar outros romances sobre o mesmo tema, é competentíssima na arte de nos enredar nas tramas e sub-tramas, nos novelos e des-novelos, nos sentimentos e nas emoções dos personagens que criou.

O que nos leva a crer: essa jovem escritora carioca, que morou em Brasília, é a mais retumbante revelação da literatura brasileira de sua geração.

Depois da leitura desses três romances ficou-me a impressão: novos Gracilianos-Ramos e Lucios-Cardosos e estão em processo. Bom. Muito bom.

Pensar – Correio Braziliense, 15 de julho de 2001

Rogério Menezes

Os romances de Adriana Lisboa, Rubens Figueiredo e João Almino comprovam: a nova literatura brasileira a está no bom caminho

A literatura brasileira – pelo menos a produzida nestes sete primeiros meses de 2001 – vai muito bem, obrigada. Pelo menos três fatos atestam tal afirmação. Vamos a eles.

Os novos romances de Adriana Lisboa, 30 (Sinfonia em branco), Rubens Figueiredo, 45 (Barco a seco) e João Almino, 51 (As cinco estações do amor) talvez estejam léguas aquém do que os mais ferrenhamente canônicos poderiam considerar obras-primas. Têm, aqui e ali, alguns pequenos defeitos. Quais? Descubra-os você mesmo, caro leitor.

Mas, cá para nós, caro leitor, quem disse que a literatura de um país se faz apenas com obras-primas?

A árdua e nobre missão de escrever obras-primas é resultado de aprendizado constante, de renhida labuta literária, sem tréguas, de talvez mais transpiração do que inspiração. Escrever romances deve ser ofício como outro qualquer: exige experiência acumulada em que o saber advém da prática repetida. Se possível, exaustivamente.

Como diria o camarada Mao Tsé-Tung (ou teria sido Jards Macalé?), aprende-se a nadar nadando. Ou seja: o escritor, seja em que país tiver nascido, só chegará à grande literatura – se é que um dia chegará – exercitando-se constantemente, pondo a cara à tapa, expondo-se em praça pública, não se deixando abater por críticos e passíveis, intolerantes com que ainda não foi consagrado – e, eventualmente, incompetentes. E, importantíssimo, lendo, lendo muito – de Almanaque Capivarol a Franz Kafka.

Sinfonia em branco, Barco a seco e As cinco estações do amor podem não ser obras-primas, mas os autores que os escreveram demonstram: estão no bom caminho, na busca do texto preciso, exato, contundente, bem escrito, vigoroso e impregnado de emoção. Sem emoção não há nada. Absolutamente nada. Muito menos grande literatura.

Adriana, Almino e Rubens escreveram livros muito bons, ótimos augúrios do que poderá vir por aí na literatura brasileira deste início de século. Que sejam.

Há neles – e isso os engrandece – a edificante preocupação em registrar, sem firulas, a pulsação do homem contemporâneo, desses seres cheios de tensão e fúria que a gente vê por aí e por aqui, no volante dos automóveis, atravessando nervosamente faixas dos pedestres, morrendo e matando, devorando e sendo devorado.

Em As cinco estações do amor, João Almino (também autor dos romances Idéias para onde passar o fim do mundo e Samba-enredo) mergulha na alma de Ana, às vezes Diana, professora universitária aposentada de 55 anos, em conflito com o excesso de lixo, real e metafórico, que acumulou durante a vida inteira. Eis a questão: livrar-se ou não desses baús todos que quase a levaram à loucura. A resolução do dilema, a decifração do enigma, significa sobreviver ou não sobreviver.

Ao contrário do que se possa pensar, esse ato de simplificar a vida, para Ana (ou para qualquer um de nós), dói. Dói muito. Mas Ana sobrevive.

Como se vê, Ana é gente como eu, como você, encontrável a qualquer momento, em qualquer lugar ou esquina – de Brasília ou de Tóquio.

Barco a seco, de Rubens Figueiredo (também autor de O livro dos lobos e As palavras secretas), desvenda a mente de homem pobre que descobre no mercado da arte a (única) chance de melhorar na vida, de sair do abismo social que o (des)nutriu. Especializa-se na dissecação do cadáver artístico de pintor obscuro chamado Emilio Vega, especializado em desenhar aparentemente simplórias paisagens marinhas.

Dessa quase fusão entre obcecado (Gaspar, o narrador) e obcecando (Emilio Vega) resulta notável – e duro – retrato do corpo e da alma de todos nós – entre a miséria, o caos e a morte. Apesar de narrativa cercada de mar por todos os lados, o romance é seco, enxuto – de precisão quase gracilianorâmica. O título do romance é, portanto, adequadíssimo.

Adriana Lisboa, também autora de Os fios da memória, a mais jovem dessa literária trindade, é ambiciosa. Ao contrário de seus pares, que preferem centrar fogo em um só personagem-protagonista, divide, irmãmente, a narrativa de Sinfonia em branco por várias criaturas: os pais, Otacília e Afonso Olímpio, as filhas, Clarice e Maria Inês, e seus respectivos homens: Tomás, Ilton Xavier e João Miguel.

Adriana Lisboa afunda-se em saga familiar, com aqueles desdobramentos de praxe: incesto, rivalidade entre irmãs, doenças terminais, sentimentos reprimidos. Nada que Lucio Cardoso não tivesse sublimemente retratado em Casa assassinada. Ou Milton Hatoum, menos brilhantemente, em Dois irmãos.

Adriana Lisboa, apesar de nos fazer lembrar outros romances sobre o mesmo tema, é competentíssima na arte de nos enredar nas tramas e sub-tramas, nos novelos e des-novelos, nos sentimentos e nas emoções dos personagens que criou.

O que nos leva a crer: essa jovem escritora carioca, que morou em Brasília, é a mais retumbante revelação da literatura brasileira de sua geração.

Depois da leitura desses três romances ficou-me a impressão: novos Gracilianos-Ramos e Lucios-Cardosos e estão em processo. Bom. Muito bom.

Pensar – Correio Braziliense, 15 de julho de 2001

Rogério Menezes

Os romances de Adriana Lisboa, Rubens Figueiredo e João Almino comprovam: a nova literatura brasileira a está no bom caminho

A literatura brasileira – pelo menos a produzida nestes sete primeiros meses de 2001 – vai muito bem, obrigada. Pelo menos três fatos atestam tal afirmação. Vamos a eles.

Os novos romances de Adriana Lisboa, 30 (Sinfonia em branco), Rubens Figueiredo, 45 (Barco a seco) e João Almino, 51 (As cinco estações do amor) talvez estejam léguas aquém do que os mais ferrenhamente canônicos poderiam considerar obras-primas. Têm, aqui e ali, alguns pequenos defeitos. Quais? Descubra-os você mesmo, caro leitor.

Mas, cá para nós, caro leitor, quem disse que a literatura de um país se faz apenas com obras-primas?

A árdua e nobre missão de escrever obras-primas é resultado de aprendizado constante, de renhida labuta literária, sem tréguas, de talvez mais transpiração do que inspiração. Escrever romances deve ser ofício como outro qualquer: exige experiência acumulada em que o saber advém da prática repetida. Se possível, exaustivamente.

Como diria o camarada Mao Tsé-Tung (ou teria sido Jards Macalé?), aprende-se a nadar nadando. Ou seja: o escritor, seja em que país tiver nascido, só chegará à grande literatura – se é que um dia chegará – exercitando-se constantemente, pondo a cara à tapa, expondo-se em praça pública, não se deixando abater por críticos e passíveis, intolerantes com que ainda não foi consagrado – e, eventualmente, incompetentes. E, importantíssimo, lendo, lendo muito – de Almanaque Capivarol a Franz Kafka.

Sinfonia em branco, Barco a seco e As cinco estações do amor podem não ser obras-primas, mas os autores que os escreveram demonstram: estão no bom caminho, na busca do texto preciso, exato, contundente, bem escrito, vigoroso e impregnado de emoção. Sem emoção não há nada. Absolutamente nada. Muito menos grande literatura.

Adriana, Almino e Rubens escreveram livros muito bons, ótimos augúrios do que poderá vir por aí na literatura brasileira deste início de século. Que sejam.

Há neles – e isso os engrandece – a edificante preocupação em registrar, sem firulas, a pulsação do homem contemporâneo, desses seres cheios de tensão e fúria que a gente vê por aí e por aqui, no volante dos automóveis, atravessando nervosamente faixas dos pedestres, morrendo e matando, devorando e sendo devorado.

Em As cinco estações do amor, João Almino (também autor dos romances Idéias para onde passar o fim do mundo e Samba-enredo) mergulha na alma de Ana, às vezes Diana, professora universitária aposentada de 55 anos, em conflito com o excesso de lixo, real e metafórico, que acumulou durante a vida inteira. Eis a questão: livrar-se ou não desses baús todos que quase a levaram à loucura. A resolução do dilema, a decifração do enigma, significa sobreviver ou não sobreviver.

Ao contrário do que se possa pensar, esse ato de simplificar a vida, para Ana (ou para qualquer um de nós), dói. Dói muito. Mas Ana sobrevive.

Como se vê, Ana é gente como eu, como você, encontrável a qualquer momento, em qualquer lugar ou esquina – de Brasília ou de Tóquio.

Barco a seco, de Rubens Figueiredo (também autor de O livro dos lobos e As palavras secretas), desvenda a mente de homem pobre que descobre no mercado da arte a (única) chance de melhorar na vida, de sair do abismo social que o (des)nutriu. Especializa-se na dissecação do cadáver artístico de pintor obscuro chamado Emilio Vega, especializado em desenhar aparentemente simplórias paisagens marinhas.

Dessa quase fusão entre obcecado (Gaspar, o narrador) e obcecando (Emilio Vega) resulta notável – e duro – retrato do corpo e da alma de todos nós – entre a miséria, o caos e a morte. Apesar de narrativa cercada de mar por todos os lados, o romance é seco, enxuto – de precisão quase gracilianorâmica. O título do romance é, portanto, adequadíssimo.

Adriana Lisboa, também autora de Os fios da memória, a mais jovem dessa literária trindade, é ambiciosa. Ao contrário de seus pares, que preferem centrar fogo em um só personagem-protagonista, divide, irmãmente, a narrativa de Sinfonia em branco por várias criaturas: os pais, Otacília e Afonso Olímpio, as filhas, Clarice e Maria Inês, e seus respectivos homens: Tomás, Ilton Xavier e João Miguel.

Adriana Lisboa afunda-se em saga familiar, com aqueles desdobramentos de praxe: incesto, rivalidade entre irmãs, doenças terminais, sentimentos reprimidos. Nada que Lucio Cardoso não tivesse sublimemente retratado em Casa assassinada. Ou Milton Hatoum, menos brilhantemente, em Dois irmãos.

Adriana Lisboa, apesar de nos fazer lembrar outros romances sobre o mesmo tema, é competentíssima na arte de nos enredar nas tramas e sub-tramas, nos novelos e des-novelos, nos sentimentos e nas emoções dos personagens que criou.

O que nos leva a crer: essa jovem escritora carioca, que morou em Brasília, é a mais retumbante revelação da literatura brasileira de sua geração.

Depois da leitura desses três romances ficou-me a impressão: novos Gracilianos-Ramos e Lucios-Cardosos e estão em processo. Bom. Muito bom.

Pensar – Correio Braziliense, 15 de julho de 2001

Rogério Menezes

Os romances de Adriana Lisboa, Rubens Figueiredo e João Almino comprovam: a nova literatura brasileira a está no bom caminho

A literatura brasileira – pelo menos a produzida nestes sete primeiros meses de 2001 – vai muito bem, obrigada. Pelo menos três fatos atestam tal afirmação. Vamos a eles.

Os novos romances de Adriana Lisboa, 30 (Sinfonia em branco), Rubens Figueiredo, 45 (Barco a seco) e João Almino, 51 (As cinco estações do amor) talvez estejam léguas aquém do que os mais ferrenhamente canônicos poderiam considerar obras-primas. Têm, aqui e ali, alguns pequenos defeitos. Quais? Descubra-os você mesmo, caro leitor.

Mas, cá para nós, caro leitor, quem disse que a literatura de um país se faz apenas com obras-primas?

A árdua e nobre missão de escrever obras-primas é resultado de aprendizado constante, de renhida labuta literária, sem tréguas, de talvez mais transpiração do que inspiração. Escrever romances deve ser ofício como outro qualquer: exige experiência acumulada em que o saber advém da prática repetida. Se possível, exaustivamente.

Como diria o camarada Mao Tsé-Tung (ou teria sido Jards Macalé?), aprende-se a nadar nadando. Ou seja: o escritor, seja em que país tiver nascido, só chegará à grande literatura – se é que um dia chegará – exercitando-se constantemente, pondo a cara à tapa, expondo-se em praça pública, não se deixando abater por críticos e passíveis, intolerantes com que ainda não foi consagrado – e, eventualmente, incompetentes. E, importantíssimo, lendo, lendo muito – de Almanaque Capivarol a Franz Kafka.

Sinfonia em branco, Barco a seco e As cinco estações do amor podem não ser obras-primas, mas os autores que os escreveram demonstram: estão no bom caminho, na busca do texto preciso, exato, contundente, bem escrito, vigoroso e impregnado de emoção. Sem emoção não há nada. Absolutamente nada. Muito menos grande literatura.

Adriana, Almino e Rubens escreveram livros muito bons, ótimos augúrios do que poderá vir por aí na literatura brasileira deste início de século. Que sejam.

Há neles – e isso os engrandece – a edificante preocupação em registrar, sem firulas, a pulsação do homem contemporâneo, desses seres cheios de tensão e fúria que a gente vê por aí e por aqui, no volante dos automóveis, atravessando nervosamente faixas dos pedestres, morrendo e matando, devorando e sendo devorado.

Em As cinco estações do amor, João Almino (também autor dos romances Idéias para onde passar o fim do mundo e Samba-enredo) mergulha na alma de Ana, às vezes Diana, professora universitária aposentada de 55 anos, em conflito com o excesso de lixo, real e metafórico, que acumulou durante a vida inteira. Eis a questão: livrar-se ou não desses baús todos que quase a levaram à loucura. A resolução do dilema, a decifração do enigma, significa sobreviver ou não sobreviver.

Ao contrário do que se possa pensar, esse ato de simplificar a vida, para Ana (ou para qualquer um de nós), dói. Dói muito. Mas Ana sobrevive.

Como se vê, Ana é gente como eu, como você, encontrável a qualquer momento, em qualquer lugar ou esquina – de Brasília ou de Tóquio.

Barco a seco, de Rubens Figueiredo (também autor de O livro dos lobos e As palavras secretas), desvenda a mente de homem pobre que descobre no mercado da arte a (única) chance de melhorar na vida, de sair do abismo social que o (des)nutriu. Especializa-se na dissecação do cadáver artístico de pintor obscuro chamado Emilio Vega, especializado em desenhar aparentemente simplórias paisagens marinhas.

Dessa quase fusão entre obcecado (Gaspar, o narrador) e obcecando (Emilio Vega) resulta notável – e duro – retrato do corpo e da alma de todos nós – entre a miséria, o caos e a morte. Apesar de narrativa cercada de mar por todos os lados, o romance é seco, enxuto – de precisão quase gracilianorâmica. O título do romance é, portanto, adequadíssimo.

Adriana Lisboa, também autora de Os fios da memória, a mais jovem dessa literária trindade, é ambiciosa. Ao contrário de seus pares, que preferem centrar fogo em um só personagem-protagonista, divide, irmãmente, a narrativa de Sinfonia em branco por várias criaturas: os pais, Otacília e Afonso Olímpio, as filhas, Clarice e Maria Inês, e seus respectivos homens: Tomás, Ilton Xavier e João Miguel.

Adriana Lisboa afunda-se em saga familiar, com aqueles desdobramentos de praxe: incesto, rivalidade entre irmãs, doenças terminais, sentimentos reprimidos. Nada que Lucio Cardoso não tivesse sublimemente retratado em Casa assassinada. Ou Milton Hatoum, menos brilhantemente, em Dois irmãos.

Adriana Lisboa, apesar de nos fazer lembrar outros romances sobre o mesmo tema, é competentíssima na arte de nos enredar nas tramas e sub-tramas, nos novelos e des-novelos, nos sentimentos e nas emoções dos personagens que criou.

O que nos leva a crer: essa jovem escritora carioca, que morou em Brasília, é a mais retumbante revelação da literatura brasileira de sua geração.

Depois da leitura desses três romances ficou-me a impressão: novos Gracilianos-Ramos e Lucios-Cardosos e estão em processo. Bom. Muito bom.