ENTRE FACAS, ALGODÃO, de João Almino, por Hans Gumbrecht

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Talvez mais do que seus aclamados romances anteriores, este livro de João Almino, sua obra-prima até agora, se inscreve vigorosamente no momento que a história do romance atravessa nestes inícios do século 21. Como trajetória na cultura ocidental, essa história começou na época do Iluminismo, quando o romance surgiu das funções épicas de construção e costura do mundo. Somente com o advento do romance, o final da narrativa se fez final em aberto que atrairia a curiosidade dos leitores e tornaria a dinâmica do enredo decisiva para a participação afetiva do leitor. Georg Lukács associou esse surgimento do romance de final em aberto com a condição existencial de “desabrigado transcendental”, reflexo da perda da religião como moldura estável da vida humana. Porém, na nossa retrospectiva atual, descobrimos que os mais destacados romances desde o começo do século 20 se inscrevem num retorno à forma do épico, retorno da abertura narrativa e existencial à construção literária do mundo; retorno que pode muito bem contrastar com a contínua erosão da estabilidade em nossas vidas e mundos cotidianos. Enquanto uma produção de romances mais voltados ao consumo tem continuado a explorar todas as possíveis variedades de finais em aberto, absolutas obras-primas como Ulisses, de Joyce, Em busca do tempo perdido, de Proust, O homem sem qualidades, de Musil, ou Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, têm evocado e reconstituído, na forma da ficção, mundos específicos em seus lugares físicos e específicos.
Entre facas, algodão compartilha desse gesto, que tem a conotação de ser fiel às origens da narrativa na cultura ocidental e ao mesmo tempo de ir além da dinâmica da Modernidade. Em vez de realçar a trajetória do enredo, sua principal dinâmica é a da moagem lenta, fundacional e, até certo ponto, circular das três dimensões indispensáveis à vida humana: espaço, tempo e família. Cada uma dessas dimensões, no texto de Almino, oscila entre uma camada de substância e uma de forma em movimento. Essa oscilação às vezes evoca o conceito aristotélico do “símbolo”, que também repousa na distinção entre “substância” e “forma”. No romance épico de Almino, o espaço, na sua substância, está retratado por pedaço de terra específico, território a ser vendido e comprado; na sua forma, por mapeamento de cidades e paisagens brasileiras entre as quais os protagonistas viajam. O tempo, em sua forma, move-se ao longo da sequência de dias de calendário, orientada para o futuro e potencialmente sem fim; torna-se substância no esforço sempre difícil e frequentemente enganoso de recuperar o passado como memória. Finalmente, a família é forma nas condições instáveis do casamento e das relações amorosas; torna-se substância nas reivindicações nunca certas de relações de sangue entre irmãos e gerações distintas. E a família também continua a ser a origem latente da tragédia, na medida em que pode ter perdido sua substância clássica e se transformado num jogo vibrante de gestos comunicativos.
Neste romance de Almino, o entrelaçamento complexo e pacientemente sensível dessas três dimensões é a matriz de um tom e atmosfera peculiares. Essa matriz é posta em ação pelos instrumentos e dispositivos tecnológicos que os personagens usam para interagir em suas conversas. Disso deriva uma surpreendente impressão de leveza e do efêmero, juntamente com um ritmo veloz no desdobramento da narrativa e um distanciamento estranho da voz narrativa que inicialmente parece estar em proximidade imediata e ser irresistível ao olho (e ouvido) do leitor. Como na tradição do épico, vemos um mundo surgindo. Entretanto, como ocorre frequentemente na literatura do século passado e do presente, a inflexão romanesca do impulso épico faz de seu mundo um mundo desamparado; mundo que podemos habitar tanto no espaço quanto na imaginação, sem considerá-lo lar existencial. Deixei o romance de João Almino — e, no entanto, me senti enriquecido.
Hans Ulrich Gumbrecht
Professor Albert Guérard de Literatura
na Universidade de Stanford

[:en]ENTRE FACAS, ALGODÃO, by João Almino

More perhaps than any of its highly acclaimed predecessors, João Almino’s new novel, his masterpiece to date, inscribes itself powerfully into the early twenty-first century moment of its genre’s history. This history had begun, as a trajectory within Western culture, during the age of Enlightenment when the novel emerged from the world-making and world-stitching functions of the epic. Only with the appearance of the novel, the ending of the narrative became an open ending that would attract the readers’ curiosity and make the dynamics of the plot decisive for any affective participation. Georg Lukàcs associated this development, i.e. the appearance of the open ended novel, with an existential condition of “transcendental homelessness” that reacted to the loss of religion as a stable framework of human life. In our present-day retrospective, however, we can discover that most eminent novels since the early twentieth century have been part of a return towards the form of a the epic, a return from narrative and existential openness towards literary world making, a return that may well stand in contrast to an ongoing erosion of all stability in our everyday worlds and lives. While a more consumer-oriented production of novels has continued to play through all possible varieties of open endings, absolute masterpieces like Joyce’s “Ulysses,” Proust’s “Recherche,” Musil’s “Man without Qualities,” or Guimaraes Rosa’s “Grande Sertao – Veredas” have conjured up and re-constituted, in the mode of fiction, specific worlds on their specific physical places.

“Entre Facas, Algodão” shares this gesture, which has a connotation of being faithful to the origin of the novel in the Western tradition and at the same time of going beyond the dynamics of Modernity. Rather than foregrounding the trajectory of the plot, its main dynamic is the slow, foundational, and, to a certain degree, circular grinding out of three dimensions that are indispensable to human life: Space, Time, and Family. Each of these dimensions, in Almino’s text, oscillates between a layer of substance and a layer of form in movement, and this oscillation sometimes evokes the Aristotelian concept of the “symbol” that also relies on the distinction between “substance” and “form.” Space in Almino’s epic novel is based on a specific piece of land, a territory to be sold and purchased, as its substance, and, as its form, on a mapping of Brazilian cities and landscapes between which the protagonists travel. Time moves along the potentially endless and forward-oriented sequence of calendar days as its form, and becomes embodied substance in the always difficult and often deceptive effort of recuperating the past as memory. Finally, family is form in the instable conditions of marriage and love relations, and becomes substance in the never certain claims of blood relations between siblings and different generations – and family also continues to be the latent origin of tragedy, as it my have lost its classical substance and turned into a flickering play of communicative gestures today.

In Almino’s latest novel the complex and patiently moving intertwinement of these three dimensions becomes the matrix of a peculiar epic tone and atmosphere (“Stimmung”). At the same time, this matrix becomes activated, in the conversations and interactions between its characters, by the technological tools and gadgets that they use to interact. A surprising impression of lightness and the ephemeral follows from that, together with a swift pace of the narrative’s unfolding and a strange remoteness of the narrative voice that at first seems to be immediately close and even overwhelming for the reader’s eye (and ear). As in the epic tradition, we see a world emerging. But as so often, in the literature of the past century and our present, the novelistic inflection of the epic impulse makes its world a destitute world, a world that we may inhabit, both in space and in our imagination, without finding it to be an existential home. With this taste of a familiar existential lack, a lack that Friedrich Hölderlin may have written about for the first time, I left João Almino’s novel – and yet felt enriched.

HANS ULRICH GUMBRECHT
[:es]Talvez mais do que seus aclamados romances anteriores, este livro de João Almino, sua obra-prima até agora, se inscreve vigorosamente no momento que a história do romance atravessa nestes inícios do século 21. Como trajetória na cultura ocidental, essa história começou na época do Iluminismo, quando o romance surgiu das funções épicas de construção e costura do mundo. Somente com o advento do romance, o final da narrativa se fez final em aberto que atrairia a curiosidade dos leitores e tornaria a dinâmica do enredo decisiva para a participação afetiva do leitor. Georg Lukács associou esse surgimento do romance de final em aberto com a condição existencial de “desabrigado transcendental”, reflexo da perda da religião como moldura estável da vida humana. Porém, na nossa retrospectiva atual, descobrimos que os mais destacados romances desde o começo do século 20 se inscrevem num retorno à forma do épico, retorno da abertura narrativa e existencial à construção literária do mundo; retorno que pode muito bem contrastar com a contínua erosão da estabilidade em nossas vidas e mundos cotidianos. Enquanto uma produção de romances mais voltados ao consumo tem continuado a explorar todas as possíveis variedades de finais em aberto, absolutas obras-primas como Ulisses, de Joyce, Em busca do tempo perdido, de Proust, O homem sem qualidades, de Musil, ou Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, têm evocado e reconstituído, na forma da ficção, mundos específicos em seus lugares físicos e específicos.
Entre facas, algodão compartilha desse gesto, que tem a conotação de ser fiel às origens da narrativa na cultura ocidental e ao mesmo tempo de ir além da dinâmica da Modernidade. Em vez de realçar a trajetória do enredo, sua principal dinâmica é a da moagem lenta, fundacional e, até certo ponto, circular das três dimensões indispensáveis à vida humana: espaço, tempo e família. Cada uma dessas dimensões, no texto de Almino, oscila entre uma camada de substância e uma de forma em movimento. Essa oscilação às vezes evoca o conceito aristotélico do “símbolo”, que também repousa na distinção entre “substância” e “forma”. No romance épico de Almino, o espaço, na sua substância, está retratado por pedaço de terra específico, território a ser vendido e comprado; na sua forma, por mapeamento de cidades e paisagens brasileiras entre as quais os protagonistas viajam. O tempo, em sua forma, move-se ao longo da sequência de dias de calendário, orientada para o futuro e potencialmente sem fim; torna-se substância no esforço sempre difícil e frequentemente enganoso de recuperar o passado como memória. Finalmente, a família é forma nas condições instáveis do casamento e das relações amorosas; torna-se substância nas reivindicações nunca certas de relações de sangue entre irmãos e gerações distintas. E a família também continua a ser a origem latente da tragédia, na medida em que pode ter perdido sua substância clássica e se transformado num jogo vibrante de gestos comunicativos.
Neste romance de Almino, o entrelaçamento complexo e pacientemente sensível dessas três dimensões é a matriz de um tom e atmosfera peculiares. Essa matriz é posta em ação pelos instrumentos e dispositivos tecnológicos que os personagens usam para interagir em suas conversas. Disso deriva uma surpreendente impressão de leveza e do efêmero, juntamente com um ritmo veloz no desdobramento da narrativa e um distanciamento estranho da voz narrativa que inicialmente parece estar em proximidade imediata e ser irresistível ao olho (e ouvido) do leitor. Como na tradição do épico, vemos um mundo surgindo. Entretanto, como ocorre frequentemente na literatura do século passado e do presente, a inflexão romanesca do impulso épico faz de seu mundo um mundo desamparado; mundo que podemos habitar tanto no espaço quanto na imaginação, sem considerá-lo lar existencial. Deixei o romance de João Almino — e, no entanto, me senti enriquecido.
Hans Ulrich Gumbrecht
Professor Albert Guérard de Literatura
na Universidade de Stanford

[:fr]ENTRE FACAS, ALGODÃO, by João Almino

More perhaps than any of its highly acclaimed predecessors, João Almino’s new novel, his masterpiece to date, inscribes itself powerfully into the early twenty-first century moment of its genre’s history. This history had begun, as a trajectory within Western culture, during the age of Enlightenment when the novel emerged from the world-making and world-stitching functions of the epic. Only with the appearance of the novel, the ending of the narrative became an open ending that would attract the readers’ curiosity and make the dynamics of the plot decisive for any affective participation. Georg Lukàcs associated this development, i.e. the appearance of the open ended novel, with an existential condition of “transcendental homelessness” that reacted to the loss of religion as a stable framework of human life. In our present-day retrospective, however, we can discover that most eminent novels since the early twentieth century have been part of a return towards the form of a the epic, a return from narrative and existential openness towards literary world making, a return that may well stand in contrast to an ongoing erosion of all stability in our everyday worlds and lives. While a more consumer-oriented production of novels has continued to play through all possible varieties of open endings, absolute masterpieces like Joyce’s “Ulysses,” Proust’s “Recherche,” Musil’s “Man without Qualities,” or Guimaraes Rosa’s “Grande Sertao – Veredas” have conjured up and re-constituted, in the mode of fiction, specific worlds on their specific physical places.

“Entre Facas, Algodão” shares this gesture, which has a connotation of being faithful to the origin of the novel in the Western tradition and at the same time of going beyond the dynamics of Modernity. Rather than foregrounding the trajectory of the plot, its main dynamic is the slow, foundational, and, to a certain degree, circular grinding out of three dimensions that are indispensable to human life: Space, Time, and Family. Each of these dimensions, in Almino’s text, oscillates between a layer of substance and a layer of form in movement, and this oscillation sometimes evokes the Aristotelian concept of the “symbol” that also relies on the distinction between “substance” and “form.” Space in Almino’s epic novel is based on a specific piece of land, a territory to be sold and purchased, as its substance, and, as its form, on a mapping of Brazilian cities and landscapes between which the protagonists travel. Time moves along the potentially endless and forward-oriented sequence of calendar days as its form, and becomes embodied substance in the always difficult and often deceptive effort of recuperating the past as memory. Finally, family is form in the instable conditions of marriage and love relations, and becomes substance in the never certain claims of blood relations between siblings and different generations – and family also continues to be the latent origin of tragedy, as it my have lost its classical substance and turned into a flickering play of communicative gestures today.

In Almino’s latest novel the complex and patiently moving intertwinement of these three dimensions becomes the matrix of a peculiar epic tone and atmosphere (“Stimmung”). At the same time, this matrix becomes activated, in the conversations and interactions between its characters, by the technological tools and gadgets that they use to interact. A surprising impression of lightness and the ephemeral follows from that, together with a swift pace of the narrative’s unfolding and a strange remoteness of the narrative voice that at first seems to be immediately close and even overwhelming for the reader’s eye (and ear). As in the epic tradition, we see a world emerging. But as so often, in the literature of the past century and our present, the novelistic inflection of the epic impulse makes its world a destitute world, a world that we may inhabit, both in space and in our imagination, without finding it to be an existential home. With this taste of a familiar existential lack, a lack that Friedrich Hölderlin may have written about for the first time, I left João Almino’s novel – and yet felt enriched.

HANS ULRICH GUMBRECHT

Talvez mais do que seus aclamados romances anteriores, este livro de João Almino, sua obra-prima até agora, se inscreve vigorosamente no momento que a história do romance atravessa nestes inícios do século 21. Como trajetória na cultura ocidental, essa história começou na época do Iluminismo, quando o romance surgiu das funções épicas de construção e costura do mundo. Somente com o advento do romance, o final da narrativa se fez final em aberto que atrairia a curiosidade dos leitores e tornaria a dinâmica do enredo decisiva para a participação afetiva do leitor. Georg Lukács associou esse surgimento do romance de final em aberto com a condição existencial de “desabrigado transcendental”, reflexo da perda da religião como moldura estável da vida humana. Porém, na nossa retrospectiva atual, descobrimos que os mais destacados romances desde o começo do século 20 se inscrevem num retorno à forma do épico, retorno da abertura narrativa e existencial à construção literária do mundo; retorno que pode muito bem contrastar com a contínua erosão da estabilidade em nossas vidas e mundos cotidianos. Enquanto uma produção de romances mais voltados ao consumo tem continuado a explorar todas as possíveis variedades de finais em aberto, absolutas obras-primas como Ulisses, de Joyce, Em busca do tempo perdido, de Proust, O homem sem qualidades, de Musil, ou Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, têm evocado e reconstituído, na forma da ficção, mundos específicos em seus lugares físicos e específicos.
Entre facas, algodão compartilha desse gesto, que tem a conotação de ser fiel às origens da narrativa na cultura ocidental e ao mesmo tempo de ir além da dinâmica da Modernidade. Em vez de realçar a trajetória do enredo, sua principal dinâmica é a da moagem lenta, fundacional e, até certo ponto, circular das três dimensões indispensáveis à vida humana: espaço, tempo e família. Cada uma dessas dimensões, no texto de Almino, oscila entre uma camada de substância e uma de forma em movimento. Essa oscilação às vezes evoca o conceito aristotélico do “símbolo”, que também repousa na distinção entre “substância” e “forma”. No romance épico de Almino, o espaço, na sua substância, está retratado por pedaço de terra específico, território a ser vendido e comprado; na sua forma, por mapeamento de cidades e paisagens brasileiras entre as quais os protagonistas viajam. O tempo, em sua forma, move-se ao longo da sequência de dias de calendário, orientada para o futuro e potencialmente sem fim; torna-se substância no esforço sempre difícil e frequentemente enganoso de recuperar o passado como memória. Finalmente, a família é forma nas condições instáveis do casamento e das relações amorosas; torna-se substância nas reivindicações nunca certas de relações de sangue entre irmãos e gerações distintas. E a família também continua a ser a origem latente da tragédia, na medida em que pode ter perdido sua substância clássica e se transformado num jogo vibrante de gestos comunicativos.
Neste romance de Almino, o entrelaçamento complexo e pacientemente sensível dessas três dimensões é a matriz de um tom e atmosfera peculiares. Essa matriz é posta em ação pelos instrumentos e dispositivos tecnológicos que os personagens usam para interagir em suas conversas. Disso deriva uma surpreendente impressão de leveza e do efêmero, juntamente com um ritmo veloz no desdobramento da narrativa e um distanciamento estranho da voz narrativa que inicialmente parece estar em proximidade imediata e ser irresistível ao olho (e ouvido) do leitor. Como na tradição do épico, vemos um mundo surgindo. Entretanto, como ocorre frequentemente na literatura do século passado e do presente, a inflexão romanesca do impulso épico faz de seu mundo um mundo desamparado; mundo que podemos habitar tanto no espaço quanto na imaginação, sem considerá-lo lar existencial. Deixei o romance de João Almino — e, no entanto, me senti enriquecido.
Hans Ulrich Gumbrecht
Professor Albert Guérard de Literatura
na Universidade de Stanford

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