Entre facas, lembranças e sabedoria – Revista Bravo! sobre Entre facas, algodão, de João Almino

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Revista Bravo!
Nov 27

Igor Zahir
Escritor, jornalista e crítico literário.

Entre facas, lembranças e sabedoria

Tempo, família e identidade se cruzam em novo romance do diplomata e acadêmico João Almino

A última vez em que eu havia me sentido fisgado a um livro de temática rural — foi com Os Malaquias, de Andrea del Fuego, que rendeu a ela (merecidamente) o Prêmio José Saramago em 2011. Após a leitura, poucas do mesmo estilo me atraíram. Geralmente essas tramas são repletas de clichês quanto ao “povo campestre” ou dão voltas em contextos ultrapassados e parecidos uns com os outros, como se os autores pegassem as ideias das novelas de Benedito Ruy Barbosa e passassem pra o papel. Então, foi sem grandes expectativas que decidi ler o novo livro do diplomata e escritor João Almino, cuja carreira já me desperta atenção há algum tempo.

Entre Facas, Algodão conta a história de um aposentado de 70 anos, que resolve reviver o passado — ou, ao menos, tentar. Separa-se da esposa, deixa para trás a zona de conforto em Taguatinga e segue em busca de uma nova vida no lugar onde passou sua infância no Nordeste. As memórias do assassinato do pai se mesclam à sede de vingança, e colidem com as lembranças de vários acontecimentos de sua juventude. A primeira e grande paixão. As relações de amizade, amor e ódio que fez na fazenda onde cresceu. Sensações que pareciam estar trancadas numa gaveta que todo mundo tem, como disse a atriz Tuna Dwek no meu livro sobre Lygia Fagundes Telles. Uma gaveta onde guardamos dores intransponíveis, experiências inesquecíveis, enfim, um lugar onde escondemos uma carga de emoção muito grande, muito forte. De vez em quando a gente perde a chave, de vez em quando a gente a reencontra. Em um ato de coragem, o protagonista do livro de Almino resolve abrir essa gaveta e o leitor acompanha o diário criado a partir dali.

O autor, embora diga que o romance não é autobiográfico, conseguiu uma proeza ainda maior. Ele teceu uma espécie de biografia de muito mais pessoas do que pode imaginar. Para mim, que cresci em Pernambuco, foi impossível não sentir a identificação com regionalismo e o vocabulário peculiar de quem conviveu com nativos do sertão. Almino faz um retrato dos moradores daquela região, e ao mesmo tempo inclui elementos que, de forma tão delicada, causam arrepios a quem passou pela mesma situação. Um exemplo é quando ele fala da morte da avó, que “não conseguia comer, sequer beber água. Quando tinha sede, umedeciam sua boca. Era só ossos, rosto de sofrimento e bondade”. Para alguém que presenciou a mesma coisa na própria família, esse e outros trechos do livro fazem com que um filme passe pela cabeça.

Os laços de família, aliás, são marcantes no romance. Seja ao relembrar o convívio do personagem com o pai, ou ao mencionar seu relacionamento com os filhos, tão diferentes entre si, e tão comuns a todos os clãs. Como disse, no posfácio, o professor da Universidade de Stanford Hans Ulrich Gumbrecht: “(…) a família é forma nas condições instáveis do casamento e das relações amorosas; torna-se substância nas reivindicações nunca certas de relações de sangue entre irmãos e gerações distintas. E a família também continua a ser a origem latente da tragédia, na medida em que pode ter perdido sua substancia clássica e se transformado num jogo vibrante de gestos comunicativos”.

Todos esses aspectos são trabalhados na trama pelo tempo e pelas memórias, colidindo muitas vezes com a identidade do protagonista. A propósito, esses três fatores (tempo, memória e identidade) estão constantemente presentes nos grandes livros resenhados nesta coluna. Perguntei-me os motivos de tal interesse por parte dos escritores contemporâneos, sempre resultando em obras que, surpreendentemente, nos fazem questionar as mesmas coisas, através de enredos tão distintos entre si. Deparei-me com uma entrevista do próprio Almino falando sobre como esses elementos são fundamentais para a “compreensão do mundo. No entanto, são objetos de uma busca permanente. Memória parcial. Identidade múltipla e em aberto. Essa instabilidade cria narrativas, que a literatura problematiza, exercendo seu papel.”

Diplomata, acadêmico, tendo ensinado em universidades no país e no exterior, o autor foi eleito para a Academia Brasileira de Letras este ano. Em seu discurso de posse, lembrou Ivo Pitanguy e citou a introdução do livro Viver Vale a Pena: “o que realmente importa para mim é saber que fui capaz de transmitir o que aprendi.” E para que não restasse qualquer dúvida, a ideia vem repetida: “Dentre todas as minhas atividades, a que me dá maior prazer, sem dúvida, é transmitir conhecimento”.
Para Hans Ulrich Gumbrecht, Entre Facas, Algodão é a obra-prima de João Almino. Eu espero que ele esteja enganado. Que Almino continue nos surpreendendo com novos romances, que lance outras obras tão fabulosas como esta mais recente, ciente de que cumpriu o papel citado em seu discurso na ABL e que sua sabedoria está sendo muito bem transmitida.
______
Entre Facas, Algodão, de João Almino. Editora Record, 192 págs. R$ 39,90.

Igor Zahir
Escritor, jornalista e crítico literário.

https://medium.com/revista-bravo/entre-facas-lembran%C3%A7as-e-sabedoria-a028c062e505[:en]Revista Bravo!
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Entre facas, lembranças e sabedoria

Tempo, família e identidade se cruzam em novo romance do diplomata e acadêmico João Almino

A última vez em que eu havia me sentido fisgado a um livro de temática rural — foi com Os Malaquias, de Andrea del Fuego, que rendeu a ela (merecidamente) o Prêmio José Saramago em 2011. Após a leitura, poucas do mesmo estilo me atraíram. Geralmente essas tramas são repletas de clichês quanto ao “povo campestre” ou dão voltas em contextos ultrapassados e parecidos uns com os outros, como se os autores pegassem as ideias das novelas de Benedito Ruy Barbosa e passassem pra o papel. Então, foi sem grandes expectativas que decidi ler o novo livro do diplomata e escritor João Almino, cuja carreira já me desperta atenção há algum tempo.

Entre Facas, Algodão conta a história de um aposentado de 70 anos, que resolve reviver o passado — ou, ao menos, tentar. Separa-se da esposa, deixa para trás a zona de conforto em Taguatinga e segue em busca de uma nova vida no lugar onde passou sua infância no Nordeste. As memórias do assassinato do pai se mesclam à sede de vingança, e colidem com as lembranças de vários acontecimentos de sua juventude. A primeira e grande paixão. As relações de amizade, amor e ódio que fez na fazenda onde cresceu. Sensações que pareciam estar trancadas numa gaveta que todo mundo tem, como disse a atriz Tuna Dwek no meu livro sobre Lygia Fagundes Telles. Uma gaveta onde guardamos dores intransponíveis, experiências inesquecíveis, enfim, um lugar onde escondemos uma carga de emoção muito grande, muito forte. De vez em quando a gente perde a chave, de vez em quando a gente a reencontra. Em um ato de coragem, o protagonista do livro de Almino resolve abrir essa gaveta e o leitor acompanha o diário criado a partir dali.

O autor, embora diga que o romance não é autobiográfico, conseguiu uma proeza ainda maior. Ele teceu uma espécie de biografia de muito mais pessoas do que pode imaginar. Para mim, que cresci em Pernambuco, foi impossível não sentir a identificação com regionalismo e o vocabulário peculiar de quem conviveu com nativos do sertão. Almino faz um retrato dos moradores daquela região, e ao mesmo tempo inclui elementos que, de forma tão delicada, causam arrepios a quem passou pela mesma situação. Um exemplo é quando ele fala da morte da avó, que “não conseguia comer, sequer beber água. Quando tinha sede, umedeciam sua boca. Era só ossos, rosto de sofrimento e bondade”. Para alguém que presenciou a mesma coisa na própria família, esse e outros trechos do livro fazem com que um filme passe pela cabeça.

Os laços de família, aliás, são marcantes no romance. Seja ao relembrar o convívio do personagem com o pai, ou ao mencionar seu relacionamento com os filhos, tão diferentes entre si, e tão comuns a todos os clãs. Como disse, no posfácio, o professor da Universidade de Stanford Hans Ulrich Gumbrecht: “(…) a família é forma nas condições instáveis do casamento e das relações amorosas; torna-se substância nas reivindicações nunca certas de relações de sangue entre irmãos e gerações distintas. E a família também continua a ser a origem latente da tragédia, na medida em que pode ter perdido sua substancia clássica e se transformado num jogo vibrante de gestos comunicativos”.

Todos esses aspectos são trabalhados na trama pelo tempo e pelas memórias, colidindo muitas vezes com a identidade do protagonista. A propósito, esses três fatores (tempo, memória e identidade) estão constantemente presentes nos grandes livros resenhados nesta coluna. Perguntei-me os motivos de tal interesse por parte dos escritores contemporâneos, sempre resultando em obras que, surpreendentemente, nos fazem questionar as mesmas coisas, através de enredos tão distintos entre si. Deparei-me com uma entrevista do próprio Almino falando sobre como esses elementos são fundamentais para a “compreensão do mundo. No entanto, são objetos de uma busca permanente. Memória parcial. Identidade múltipla e em aberto. Essa instabilidade cria narrativas, que a literatura problematiza, exercendo seu papel.”

Diplomata, acadêmico, tendo ensinado em universidades no país e no exterior, o autor foi eleito para a Academia Brasileira de Letras este ano. Em seu discurso de posse, lembrou Ivo Pitanguy e citou a introdução do livro Viver Vale a Pena: “o que realmente importa para mim é saber que fui capaz de transmitir o que aprendi.” E para que não restasse qualquer dúvida, a ideia vem repetida: “Dentre todas as minhas atividades, a que me dá maior prazer, sem dúvida, é transmitir conhecimento”.
Para Hans Ulrich Gumbrecht, Entre Facas, Algodão é a obra-prima de João Almino. Eu espero que ele esteja enganado. Que Almino continue nos surpreendendo com novos romances, que lance outras obras tão fabulosas como esta mais recente, ciente de que cumpriu o papel citado em seu discurso na ABL e que sua sabedoria está sendo muito bem transmitida.
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Entre Facas, Algodão, de João Almino. Editora Record, 192 págs. R$ 39,90.

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Entre Facas, Algodão conta a história de um aposentado de 70 anos, que resolve reviver o passado — ou, ao menos, tentar. Separa-se da esposa, deixa para trás a zona de conforto em Taguatinga e segue em busca de uma nova vida no lugar onde passou sua infância no Nordeste. As memórias do assassinato do pai se mesclam à sede de vingança, e colidem com as lembranças de vários acontecimentos de sua juventude. A primeira e grande paixão. As relações de amizade, amor e ódio que fez na fazenda onde cresceu. Sensações que pareciam estar trancadas numa gaveta que todo mundo tem, como disse a atriz Tuna Dwek no meu livro sobre Lygia Fagundes Telles. Uma gaveta onde guardamos dores intransponíveis, experiências inesquecíveis, enfim, um lugar onde escondemos uma carga de emoção muito grande, muito forte. De vez em quando a gente perde a chave, de vez em quando a gente a reencontra. Em um ato de coragem, o protagonista do livro de Almino resolve abrir essa gaveta e o leitor acompanha o diário criado a partir dali.

O autor, embora diga que o romance não é autobiográfico, conseguiu uma proeza ainda maior. Ele teceu uma espécie de biografia de muito mais pessoas do que pode imaginar. Para mim, que cresci em Pernambuco, foi impossível não sentir a identificação com regionalismo e o vocabulário peculiar de quem conviveu com nativos do sertão. Almino faz um retrato dos moradores daquela região, e ao mesmo tempo inclui elementos que, de forma tão delicada, causam arrepios a quem passou pela mesma situação. Um exemplo é quando ele fala da morte da avó, que “não conseguia comer, sequer beber água. Quando tinha sede, umedeciam sua boca. Era só ossos, rosto de sofrimento e bondade”. Para alguém que presenciou a mesma coisa na própria família, esse e outros trechos do livro fazem com que um filme passe pela cabeça.

Os laços de família, aliás, são marcantes no romance. Seja ao relembrar o convívio do personagem com o pai, ou ao mencionar seu relacionamento com os filhos, tão diferentes entre si, e tão comuns a todos os clãs. Como disse, no posfácio, o professor da Universidade de Stanford Hans Ulrich Gumbrecht: “(…) a família é forma nas condições instáveis do casamento e das relações amorosas; torna-se substância nas reivindicações nunca certas de relações de sangue entre irmãos e gerações distintas. E a família também continua a ser a origem latente da tragédia, na medida em que pode ter perdido sua substancia clássica e se transformado num jogo vibrante de gestos comunicativos”.

Todos esses aspectos são trabalhados na trama pelo tempo e pelas memórias, colidindo muitas vezes com a identidade do protagonista. A propósito, esses três fatores (tempo, memória e identidade) estão constantemente presentes nos grandes livros resenhados nesta coluna. Perguntei-me os motivos de tal interesse por parte dos escritores contemporâneos, sempre resultando em obras que, surpreendentemente, nos fazem questionar as mesmas coisas, através de enredos tão distintos entre si. Deparei-me com uma entrevista do próprio Almino falando sobre como esses elementos são fundamentais para a “compreensão do mundo. No entanto, são objetos de uma busca permanente. Memória parcial. Identidade múltipla e em aberto. Essa instabilidade cria narrativas, que a literatura problematiza, exercendo seu papel.”

Diplomata, acadêmico, tendo ensinado em universidades no país e no exterior, o autor foi eleito para a Academia Brasileira de Letras este ano. Em seu discurso de posse, lembrou Ivo Pitanguy e citou a introdução do livro Viver Vale a Pena: “o que realmente importa para mim é saber que fui capaz de transmitir o que aprendi.” E para que não restasse qualquer dúvida, a ideia vem repetida: “Dentre todas as minhas atividades, a que me dá maior prazer, sem dúvida, é transmitir conhecimento”.
Para Hans Ulrich Gumbrecht, Entre Facas, Algodão é a obra-prima de João Almino. Eu espero que ele esteja enganado. Que Almino continue nos surpreendendo com novos romances, que lance outras obras tão fabulosas como esta mais recente, ciente de que cumpriu o papel citado em seu discurso na ABL e que sua sabedoria está sendo muito bem transmitida.
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Entre Facas, Algodão, de João Almino. Editora Record, 192 págs. R$ 39,90.

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Entre Facas, Algodão conta a história de um aposentado de 70 anos, que resolve reviver o passado — ou, ao menos, tentar. Separa-se da esposa, deixa para trás a zona de conforto em Taguatinga e segue em busca de uma nova vida no lugar onde passou sua infância no Nordeste. As memórias do assassinato do pai se mesclam à sede de vingança, e colidem com as lembranças de vários acontecimentos de sua juventude. A primeira e grande paixão. As relações de amizade, amor e ódio que fez na fazenda onde cresceu. Sensações que pareciam estar trancadas numa gaveta que todo mundo tem, como disse a atriz Tuna Dwek no meu livro sobre Lygia Fagundes Telles. Uma gaveta onde guardamos dores intransponíveis, experiências inesquecíveis, enfim, um lugar onde escondemos uma carga de emoção muito grande, muito forte. De vez em quando a gente perde a chave, de vez em quando a gente a reencontra. Em um ato de coragem, o protagonista do livro de Almino resolve abrir essa gaveta e o leitor acompanha o diário criado a partir dali.

O autor, embora diga que o romance não é autobiográfico, conseguiu uma proeza ainda maior. Ele teceu uma espécie de biografia de muito mais pessoas do que pode imaginar. Para mim, que cresci em Pernambuco, foi impossível não sentir a identificação com regionalismo e o vocabulário peculiar de quem conviveu com nativos do sertão. Almino faz um retrato dos moradores daquela região, e ao mesmo tempo inclui elementos que, de forma tão delicada, causam arrepios a quem passou pela mesma situação. Um exemplo é quando ele fala da morte da avó, que “não conseguia comer, sequer beber água. Quando tinha sede, umedeciam sua boca. Era só ossos, rosto de sofrimento e bondade”. Para alguém que presenciou a mesma coisa na própria família, esse e outros trechos do livro fazem com que um filme passe pela cabeça.

Os laços de família, aliás, são marcantes no romance. Seja ao relembrar o convívio do personagem com o pai, ou ao mencionar seu relacionamento com os filhos, tão diferentes entre si, e tão comuns a todos os clãs. Como disse, no posfácio, o professor da Universidade de Stanford Hans Ulrich Gumbrecht: “(…) a família é forma nas condições instáveis do casamento e das relações amorosas; torna-se substância nas reivindicações nunca certas de relações de sangue entre irmãos e gerações distintas. E a família também continua a ser a origem latente da tragédia, na medida em que pode ter perdido sua substancia clássica e se transformado num jogo vibrante de gestos comunicativos”.

Todos esses aspectos são trabalhados na trama pelo tempo e pelas memórias, colidindo muitas vezes com a identidade do protagonista. A propósito, esses três fatores (tempo, memória e identidade) estão constantemente presentes nos grandes livros resenhados nesta coluna. Perguntei-me os motivos de tal interesse por parte dos escritores contemporâneos, sempre resultando em obras que, surpreendentemente, nos fazem questionar as mesmas coisas, através de enredos tão distintos entre si. Deparei-me com uma entrevista do próprio Almino falando sobre como esses elementos são fundamentais para a “compreensão do mundo. No entanto, são objetos de uma busca permanente. Memória parcial. Identidade múltipla e em aberto. Essa instabilidade cria narrativas, que a literatura problematiza, exercendo seu papel.”

Diplomata, acadêmico, tendo ensinado em universidades no país e no exterior, o autor foi eleito para a Academia Brasileira de Letras este ano. Em seu discurso de posse, lembrou Ivo Pitanguy e citou a introdução do livro Viver Vale a Pena: “o que realmente importa para mim é saber que fui capaz de transmitir o que aprendi.” E para que não restasse qualquer dúvida, a ideia vem repetida: “Dentre todas as minhas atividades, a que me dá maior prazer, sem dúvida, é transmitir conhecimento”.
Para Hans Ulrich Gumbrecht, Entre Facas, Algodão é a obra-prima de João Almino. Eu espero que ele esteja enganado. Que Almino continue nos surpreendendo com novos romances, que lance outras obras tão fabulosas como esta mais recente, ciente de que cumpriu o papel citado em seu discurso na ABL e que sua sabedoria está sendo muito bem transmitida.
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Entre Facas, Algodão, de João Almino. Editora Record, 192 págs. R$ 39,90.

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