Fotografias do invisível – sobre O Livro das Emoções, de João Almino. Marina Fernandes, Revista Capítulo, Ficção e Poesia

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Revista Capítulo, Ficção e Poesia. Junho/Julho 2009.

O livro das emoções, quarta ficção da série de João Almino sobre Brasília, aprofunda a história do fotógrafo Cadu, um cego de 70 anos que revive o passado ao organizar seu arquivo de fotos.

Não há alguém mais indicado para levantar um arquivo biográfico em imagens do que um fotógrafo. Mas quando o tema é mergulhar na história de si mesmo, até o mais experiente profissional pode recuar. E se lhe fosse suprimida a capacidade de ver? Cadu, protagonista de O livro das emoções (Record, 256 páginas, R$ 30), é um fotógrafo cego que tateia para reconhecer seu passado enquanto usa a memória de guia.

Autor da consagrada Trilogia de Brasília, onde nada é o que parece, era de se esperar que o diplomata e escritor João Almino voltasse a surpreender. Para começar, a saga passa a ser conhecida como quadrilogia; ou quarteto, como prefere o autor. O personagem central é o mesmo que tirou a fotografia em torno da qual se desenvolve o primeiro livro, Ideias para onde passar o fim do mundo (Record, 242 páginas, R$ 32). Cadu, agora com 70 anos, acata a sugestão da afilhada Carolina de retomar um antigo diário fotográfico, relembrando os últimos 20 anos de sua vida.

Apaixonado por fotografia, Almino habilmente conduz a história em dois momentos. No primeiro, o leitor tem a possibilidade de folhear o livro das emoções escrito por Cadu, com suas memórias organizadas de forma racional e acompanhadas de fotos descritas como só um verdadeiro escritor-fotógrafo poderia fazer. Intercalado a essas páginas está o diário pessoal do personagem, escrito ao mesmo tempo em que monta o livro de fotografias. Como em um quebra-cabeça, é possível conhecer o impacto que fatos e pessoas tiveram nas escolhas do protagonista e sua melancolia ao lembrá-los. “A felicidade é uma miragem que conseguimos ver quando olhamos para trás ou para frente”, escreve Cadu pelas mãos de João Almino.

O desenvolvimento dramático do personagem, entretanto, não se dá nas linhas escritas por Cadu, por mais que um diário possa estar relacionado a dramas pessoais. Almino, provocador, sabiamente pontua o romance pela descrição de acontecimentos e sentimentos sem cair em melodrama. Os encaixes resultam em texto moderno onde quem constrói o juízo de valor é o próprio leitor. “Certas opiniões dos personagens servem principalmente ao propósito de provocar o leitor e fazê-lo refletir, muitas vezes sem a perspectiva de que seja possível encontrar respostas para as questões que se levantam”, esclareceu João Almino a Capítulo.

É com essa perspectiva que o escritor aborda temas diversos durante o romance. Fatos da vida de Cadu, como desemprego, reconhecimento da paternidade de um filho preso e a paixão por uma mulher com uma doença fatal, se misturam a acontecimentos políticos ficcionais e reais. Almino retoma de romances anteriores pensamentos sobre a ascensão de um negro à presidência do Brasil e o respeito à homossexualidade. Do universo real, saem reflexões sobre a guerra americana ao terrorismo provocada pelos ataques de 2001, a abertura comercial dos países subdesenvolvidos e o desvio de verba para compra de ambulâncias que virou CPI em 2005.

Ainda mais presente que o diálogo do romance com questões polêmicas é o mergulho poético feito por João Almino sobre a presença feminina. Cadu inicia o arquivo fotográfico com memórias dos últimos 20 anos. E não é para menos. O período coincide com sua volta a Brasília após o fim do relacionamento com Joana, com quem esteve junto desde o suicídio da primeira esposa, Vera. O que acontece logo nas 20 primeiras páginas do romance marca uma tendência que é seguida durante toda a história. Ao lado de mulheres fortes e, ainda, intuitivas e sensíveis, o protagonista se mostra fraco diante dos próprios anseios, construindo uma vida marcada por tudo aquilo que ele não consegue realizar.

Para aliviar os fracassos, a cidade se abre de forma dócil para o novo morador. Mesmo como pano de fundo, Brasília talvez seja a mais forte personagem feminina do livro, a começar por sua beleza de linhas curvas que inspiram na arte que Cadu escolheu como profissão. “Brasília excitava com carícias verdes o cerrado rústico. Eu a redescobria sensual e audaciosa, de uma poesia variada, que podia ser lida aqui como barroca, ali como arcádica, depois como concreta e acolá como marginal, mais adiante como puros haikais”, elogia ele.

A delicadeza é tão sagrada ao personagem construído por Almino que lhe serve de inspiração para ensaios fotográficos. Um deles, banal pelo tema e gracioso em seu desenvolvimento, é composto por imagens que exploram a harmonia da natureza com a cidade e, ainda, com o sentimento de seus habitantes. A partir de fotos de flores, Cadu idealiza uma instalação fotográfica de forma que o ritmo é ditado pelos tons captados na chapa fotográfica. Ao lado das cores, outro ensaio enquadra o que o fotógrafo batiza como seus triângulos. De longe, são formas geométricas. De perto, surgem pelos e a textura da pele da região mais íntima das mulheres com quem o fotógrafo esteve. Nada poderia ser mais feminino.

É com essa sutileza na descrição que João Almino desenvolve personagens desde a primeira ficção, atingindo uma doce e intensa força em O livro das emoções. É com um Cadu ora mundano, ora poeta, louro, altíssimo e cego, que o autor aproxima a solidão do personagem do que Clarisse Lispector disse serem os primeiros habitantes da cidade no século IV a.C. na crônica Nos primeiros começos de Brasília – comparação inevitável até mesmo para Cadu, em sua sensata velhice. “A raça se extinguiu porque nasciam poucos filhos. Quanto mais belos os brasiliários, mais cegos e mais puros e mais faiscantes, e menos filhos.”

Com quatro livros passados em Brasília, João Almino pode ser considerado um novo fundador da cidade. Na sua versão, a capital não é apenas o centro político do Brasil, mas uma possibilidade de explorar personalidades livres de estereótipos. A desordem mascarada pelo planejamento urbanístico, a alta desigualdade social e a presença massiva de moradores naturais de outros estados geram contrastes que a tornam ideal para o universo ficcional.

Revista Capítulo, Ficção e Poesia. Junho/Julho 2009.

O livro das emoções, quarta ficção da série de João Almino sobre Brasília, aprofunda a história do fotógrafo Cadu, um cego de 70 anos que revive o passado ao organizar seu arquivo de fotos.

Não há alguém mais indicado para levantar um arquivo biográfico em imagens do que um fotógrafo. Mas quando o tema é mergulhar na história de si mesmo, até o mais experiente profissional pode recuar. E se lhe fosse suprimida a capacidade de ver? Cadu, protagonista de O livro das emoções (Record, 256 páginas, R$ 30), é um fotógrafo cego que tateia para reconhecer seu passado enquanto usa a memória de guia.

Autor da consagrada Trilogia de Brasília, onde nada é o que parece, era de se esperar que o diplomata e escritor João Almino voltasse a surpreender. Para começar, a saga passa a ser conhecida como quadrilogia; ou quarteto, como prefere o autor. O personagem central é o mesmo que tirou a fotografia em torno da qual se desenvolve o primeiro livro, Ideias para onde passar o fim do mundo (Record, 242 páginas, R$ 32). Cadu, agora com 70 anos, acata a sugestão da afilhada Carolina de retomar um antigo diário fotográfico, relembrando os últimos 20 anos de sua vida.

Apaixonado por fotografia, Almino habilmente conduz a história em dois momentos. No primeiro, o leitor tem a possibilidade de folhear o livro das emoções escrito por Cadu, com suas memórias organizadas de forma racional e acompanhadas de fotos descritas como só um verdadeiro escritor-fotógrafo poderia fazer. Intercalado a essas páginas está o diário pessoal do personagem, escrito ao mesmo tempo em que monta o livro de fotografias. Como em um quebra-cabeça, é possível conhecer o impacto que fatos e pessoas tiveram nas escolhas do protagonista e sua melancolia ao lembrá-los. “A felicidade é uma miragem que conseguimos ver quando olhamos para trás ou para frente”, escreve Cadu pelas mãos de João Almino.

O desenvolvimento dramático do personagem, entretanto, não se dá nas linhas escritas por Cadu, por mais que um diário possa estar relacionado a dramas pessoais. Almino, provocador, sabiamente pontua o romance pela descrição de acontecimentos e sentimentos sem cair em melodrama. Os encaixes resultam em texto moderno onde quem constrói o juízo de valor é o próprio leitor. “Certas opiniões dos personagens servem principalmente ao propósito de provocar o leitor e fazê-lo refletir, muitas vezes sem a perspectiva de que seja possível encontrar respostas para as questões que se levantam”, esclareceu João Almino a Capítulo.

É com essa perspectiva que o escritor aborda temas diversos durante o romance. Fatos da vida de Cadu, como desemprego, reconhecimento da paternidade de um filho preso e a paixão por uma mulher com uma doença fatal, se misturam a acontecimentos políticos ficcionais e reais. Almino retoma de romances anteriores pensamentos sobre a ascensão de um negro à presidência do Brasil e o respeito à homossexualidade. Do universo real, saem reflexões sobre a guerra americana ao terrorismo provocada pelos ataques de 2001, a abertura comercial dos países subdesenvolvidos e o desvio de verba para compra de ambulâncias que virou CPI em 2005.

Ainda mais presente que o diálogo do romance com questões polêmicas é o mergulho poético feito por João Almino sobre a presença feminina. Cadu inicia o arquivo fotográfico com memórias dos últimos 20 anos. E não é para menos. O período coincide com sua volta a Brasília após o fim do relacionamento com Joana, com quem esteve junto desde o suicídio da primeira esposa, Vera. O que acontece logo nas 20 primeiras páginas do romance marca uma tendência que é seguida durante toda a história. Ao lado de mulheres fortes e, ainda, intuitivas e sensíveis, o protagonista se mostra fraco diante dos próprios anseios, construindo uma vida marcada por tudo aquilo que ele não consegue realizar.

Para aliviar os fracassos, a cidade se abre de forma dócil para o novo morador. Mesmo como pano de fundo, Brasília talvez seja a mais forte personagem feminina do livro, a começar por sua beleza de linhas curvas que inspiram na arte que Cadu escolheu como profissão. “Brasília excitava com carícias verdes o cerrado rústico. Eu a redescobria sensual e audaciosa, de uma poesia variada, que podia ser lida aqui como barroca, ali como arcádica, depois como concreta e acolá como marginal, mais adiante como puros haikais”, elogia ele.

A delicadeza é tão sagrada ao personagem construído por Almino que lhe serve de inspiração para ensaios fotográficos. Um deles, banal pelo tema e gracioso em seu desenvolvimento, é composto por imagens que exploram a harmonia da natureza com a cidade e, ainda, com o sentimento de seus habitantes. A partir de fotos de flores, Cadu idealiza uma instalação fotográfica de forma que o ritmo é ditado pelos tons captados na chapa fotográfica. Ao lado das cores, outro ensaio enquadra o que o fotógrafo batiza como seus triângulos. De longe, são formas geométricas. De perto, surgem pelos e a textura da pele da região mais íntima das mulheres com quem o fotógrafo esteve. Nada poderia ser mais feminino.

É com essa sutileza na descrição que João Almino desenvolve personagens desde a primeira ficção, atingindo uma doce e intensa força em O livro das emoções. É com um Cadu ora mundano, ora poeta, louro, altíssimo e cego, que o autor aproxima a solidão do personagem do que Clarisse Lispector disse serem os primeiros habitantes da cidade no século IV a.C. na crônica Nos primeiros começos de Brasília – comparação inevitável até mesmo para Cadu, em sua sensata velhice. “A raça se extinguiu porque nasciam poucos filhos. Quanto mais belos os brasiliários, mais cegos e mais puros e mais faiscantes, e menos filhos.”

Com quatro livros passados em Brasília, João Almino pode ser considerado um novo fundador da cidade. Na sua versão, a capital não é apenas o centro político do Brasil, mas uma possibilidade de explorar personalidades livres de estereótipos. A desordem mascarada pelo planejamento urbanístico, a alta desigualdade social e a presença massiva de moradores naturais de outros estados geram contrastes que a tornam ideal para o universo ficcional.

Revista Capítulo, Ficção e Poesia. Junho/Julho 2009.

O livro das emoções, quarta ficção da série de João Almino sobre Brasília, aprofunda a história do fotógrafo Cadu, um cego de 70 anos que revive o passado ao organizar seu arquivo de fotos.

Não há alguém mais indicado para levantar um arquivo biográfico em imagens do que um fotógrafo. Mas quando o tema é mergulhar na história de si mesmo, até o mais experiente profissional pode recuar. E se lhe fosse suprimida a capacidade de ver? Cadu, protagonista de O livro das emoções (Record, 256 páginas, R$ 30), é um fotógrafo cego que tateia para reconhecer seu passado enquanto usa a memória de guia.

Autor da consagrada Trilogia de Brasília, onde nada é o que parece, era de se esperar que o diplomata e escritor João Almino voltasse a surpreender. Para começar, a saga passa a ser conhecida como quadrilogia; ou quarteto, como prefere o autor. O personagem central é o mesmo que tirou a fotografia em torno da qual se desenvolve o primeiro livro, Ideias para onde passar o fim do mundo (Record, 242 páginas, R$ 32). Cadu, agora com 70 anos, acata a sugestão da afilhada Carolina de retomar um antigo diário fotográfico, relembrando os últimos 20 anos de sua vida.

Apaixonado por fotografia, Almino habilmente conduz a história em dois momentos. No primeiro, o leitor tem a possibilidade de folhear o livro das emoções escrito por Cadu, com suas memórias organizadas de forma racional e acompanhadas de fotos descritas como só um verdadeiro escritor-fotógrafo poderia fazer. Intercalado a essas páginas está o diário pessoal do personagem, escrito ao mesmo tempo em que monta o livro de fotografias. Como em um quebra-cabeça, é possível conhecer o impacto que fatos e pessoas tiveram nas escolhas do protagonista e sua melancolia ao lembrá-los. “A felicidade é uma miragem que conseguimos ver quando olhamos para trás ou para frente”, escreve Cadu pelas mãos de João Almino.

O desenvolvimento dramático do personagem, entretanto, não se dá nas linhas escritas por Cadu, por mais que um diário possa estar relacionado a dramas pessoais. Almino, provocador, sabiamente pontua o romance pela descrição de acontecimentos e sentimentos sem cair em melodrama. Os encaixes resultam em texto moderno onde quem constrói o juízo de valor é o próprio leitor. “Certas opiniões dos personagens servem principalmente ao propósito de provocar o leitor e fazê-lo refletir, muitas vezes sem a perspectiva de que seja possível encontrar respostas para as questões que se levantam”, esclareceu João Almino a Capítulo.

É com essa perspectiva que o escritor aborda temas diversos durante o romance. Fatos da vida de Cadu, como desemprego, reconhecimento da paternidade de um filho preso e a paixão por uma mulher com uma doença fatal, se misturam a acontecimentos políticos ficcionais e reais. Almino retoma de romances anteriores pensamentos sobre a ascensão de um negro à presidência do Brasil e o respeito à homossexualidade. Do universo real, saem reflexões sobre a guerra americana ao terrorismo provocada pelos ataques de 2001, a abertura comercial dos países subdesenvolvidos e o desvio de verba para compra de ambulâncias que virou CPI em 2005.

Ainda mais presente que o diálogo do romance com questões polêmicas é o mergulho poético feito por João Almino sobre a presença feminina. Cadu inicia o arquivo fotográfico com memórias dos últimos 20 anos. E não é para menos. O período coincide com sua volta a Brasília após o fim do relacionamento com Joana, com quem esteve junto desde o suicídio da primeira esposa, Vera. O que acontece logo nas 20 primeiras páginas do romance marca uma tendência que é seguida durante toda a história. Ao lado de mulheres fortes e, ainda, intuitivas e sensíveis, o protagonista se mostra fraco diante dos próprios anseios, construindo uma vida marcada por tudo aquilo que ele não consegue realizar.

Para aliviar os fracassos, a cidade se abre de forma dócil para o novo morador. Mesmo como pano de fundo, Brasília talvez seja a mais forte personagem feminina do livro, a começar por sua beleza de linhas curvas que inspiram na arte que Cadu escolheu como profissão. “Brasília excitava com carícias verdes o cerrado rústico. Eu a redescobria sensual e audaciosa, de uma poesia variada, que podia ser lida aqui como barroca, ali como arcádica, depois como concreta e acolá como marginal, mais adiante como puros haikais”, elogia ele.

A delicadeza é tão sagrada ao personagem construído por Almino que lhe serve de inspiração para ensaios fotográficos. Um deles, banal pelo tema e gracioso em seu desenvolvimento, é composto por imagens que exploram a harmonia da natureza com a cidade e, ainda, com o sentimento de seus habitantes. A partir de fotos de flores, Cadu idealiza uma instalação fotográfica de forma que o ritmo é ditado pelos tons captados na chapa fotográfica. Ao lado das cores, outro ensaio enquadra o que o fotógrafo batiza como seus triângulos. De longe, são formas geométricas. De perto, surgem pelos e a textura da pele da região mais íntima das mulheres com quem o fotógrafo esteve. Nada poderia ser mais feminino.

É com essa sutileza na descrição que João Almino desenvolve personagens desde a primeira ficção, atingindo uma doce e intensa força em O livro das emoções. É com um Cadu ora mundano, ora poeta, louro, altíssimo e cego, que o autor aproxima a solidão do personagem do que Clarisse Lispector disse serem os primeiros habitantes da cidade no século IV a.C. na crônica Nos primeiros começos de Brasília – comparação inevitável até mesmo para Cadu, em sua sensata velhice. “A raça se extinguiu porque nasciam poucos filhos. Quanto mais belos os brasiliários, mais cegos e mais puros e mais faiscantes, e menos filhos.”

Com quatro livros passados em Brasília, João Almino pode ser considerado um novo fundador da cidade. Na sua versão, a capital não é apenas o centro político do Brasil, mas uma possibilidade de explorar personalidades livres de estereótipos. A desordem mascarada pelo planejamento urbanístico, a alta desigualdade social e a presença massiva de moradores naturais de outros estados geram contrastes que a tornam ideal para o universo ficcional.

Revista Capítulo, Ficção e Poesia. Junho/Julho 2009.

O livro das emoções, quarta ficção da série de João Almino sobre Brasília, aprofunda a história do fotógrafo Cadu, um cego de 70 anos que revive o passado ao organizar seu arquivo de fotos.

Não há alguém mais indicado para levantar um arquivo biográfico em imagens do que um fotógrafo. Mas quando o tema é mergulhar na história de si mesmo, até o mais experiente profissional pode recuar. E se lhe fosse suprimida a capacidade de ver? Cadu, protagonista de O livro das emoções (Record, 256 páginas, R$ 30), é um fotógrafo cego que tateia para reconhecer seu passado enquanto usa a memória de guia.

Autor da consagrada Trilogia de Brasília, onde nada é o que parece, era de se esperar que o diplomata e escritor João Almino voltasse a surpreender. Para começar, a saga passa a ser conhecida como quadrilogia; ou quarteto, como prefere o autor. O personagem central é o mesmo que tirou a fotografia em torno da qual se desenvolve o primeiro livro, Ideias para onde passar o fim do mundo (Record, 242 páginas, R$ 32). Cadu, agora com 70 anos, acata a sugestão da afilhada Carolina de retomar um antigo diário fotográfico, relembrando os últimos 20 anos de sua vida.

Apaixonado por fotografia, Almino habilmente conduz a história em dois momentos. No primeiro, o leitor tem a possibilidade de folhear o livro das emoções escrito por Cadu, com suas memórias organizadas de forma racional e acompanhadas de fotos descritas como só um verdadeiro escritor-fotógrafo poderia fazer. Intercalado a essas páginas está o diário pessoal do personagem, escrito ao mesmo tempo em que monta o livro de fotografias. Como em um quebra-cabeça, é possível conhecer o impacto que fatos e pessoas tiveram nas escolhas do protagonista e sua melancolia ao lembrá-los. “A felicidade é uma miragem que conseguimos ver quando olhamos para trás ou para frente”, escreve Cadu pelas mãos de João Almino.

O desenvolvimento dramático do personagem, entretanto, não se dá nas linhas escritas por Cadu, por mais que um diário possa estar relacionado a dramas pessoais. Almino, provocador, sabiamente pontua o romance pela descrição de acontecimentos e sentimentos sem cair em melodrama. Os encaixes resultam em texto moderno onde quem constrói o juízo de valor é o próprio leitor. “Certas opiniões dos personagens servem principalmente ao propósito de provocar o leitor e fazê-lo refletir, muitas vezes sem a perspectiva de que seja possível encontrar respostas para as questões que se levantam”, esclareceu João Almino a Capítulo.

É com essa perspectiva que o escritor aborda temas diversos durante o romance. Fatos da vida de Cadu, como desemprego, reconhecimento da paternidade de um filho preso e a paixão por uma mulher com uma doença fatal, se misturam a acontecimentos políticos ficcionais e reais. Almino retoma de romances anteriores pensamentos sobre a ascensão de um negro à presidência do Brasil e o respeito à homossexualidade. Do universo real, saem reflexões sobre a guerra americana ao terrorismo provocada pelos ataques de 2001, a abertura comercial dos países subdesenvolvidos e o desvio de verba para compra de ambulâncias que virou CPI em 2005.

Ainda mais presente que o diálogo do romance com questões polêmicas é o mergulho poético feito por João Almino sobre a presença feminina. Cadu inicia o arquivo fotográfico com memórias dos últimos 20 anos. E não é para menos. O período coincide com sua volta a Brasília após o fim do relacionamento com Joana, com quem esteve junto desde o suicídio da primeira esposa, Vera. O que acontece logo nas 20 primeiras páginas do romance marca uma tendência que é seguida durante toda a história. Ao lado de mulheres fortes e, ainda, intuitivas e sensíveis, o protagonista se mostra fraco diante dos próprios anseios, construindo uma vida marcada por tudo aquilo que ele não consegue realizar.

Para aliviar os fracassos, a cidade se abre de forma dócil para o novo morador. Mesmo como pano de fundo, Brasília talvez seja a mais forte personagem feminina do livro, a começar por sua beleza de linhas curvas que inspiram na arte que Cadu escolheu como profissão. “Brasília excitava com carícias verdes o cerrado rústico. Eu a redescobria sensual e audaciosa, de uma poesia variada, que podia ser lida aqui como barroca, ali como arcádica, depois como concreta e acolá como marginal, mais adiante como puros haikais”, elogia ele.

A delicadeza é tão sagrada ao personagem construído por Almino que lhe serve de inspiração para ensaios fotográficos. Um deles, banal pelo tema e gracioso em seu desenvolvimento, é composto por imagens que exploram a harmonia da natureza com a cidade e, ainda, com o sentimento de seus habitantes. A partir de fotos de flores, Cadu idealiza uma instalação fotográfica de forma que o ritmo é ditado pelos tons captados na chapa fotográfica. Ao lado das cores, outro ensaio enquadra o que o fotógrafo batiza como seus triângulos. De longe, são formas geométricas. De perto, surgem pelos e a textura da pele da região mais íntima das mulheres com quem o fotógrafo esteve. Nada poderia ser mais feminino.

É com essa sutileza na descrição que João Almino desenvolve personagens desde a primeira ficção, atingindo uma doce e intensa força em O livro das emoções. É com um Cadu ora mundano, ora poeta, louro, altíssimo e cego, que o autor aproxima a solidão do personagem do que Clarisse Lispector disse serem os primeiros habitantes da cidade no século IV a.C. na crônica Nos primeiros começos de Brasília – comparação inevitável até mesmo para Cadu, em sua sensata velhice. “A raça se extinguiu porque nasciam poucos filhos. Quanto mais belos os brasiliários, mais cegos e mais puros e mais faiscantes, e menos filhos.”

Com quatro livros passados em Brasília, João Almino pode ser considerado um novo fundador da cidade. Na sua versão, a capital não é apenas o centro político do Brasil, mas uma possibilidade de explorar personalidades livres de estereótipos. A desordem mascarada pelo planejamento urbanístico, a alta desigualdade social e a presença massiva de moradores naturais de outros estados geram contrastes que a tornam ideal para o universo ficcional.