O HOMEM SOTERRADO. José Castello, O Globo, Prosa & Verso, sobre Cidade Livre, de João Almino

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O GLOBO, PROSA & VERSO, 26 de junho de 2010

José Castello

Um escritor é isso: alguém que tenta domar e disciplinar o que se escreve

Eu ainda vivia no Rio de Janeiro. Ainda morava em Botafogo, e tinha uma vizinha chamada Francisca. É claro: o nome é falso. Eu o tomei emprestado de uma personagem de “Cidade Livre”, o novo romance de João Almino (Record). Logo entenderão por quê.

Francisca era uma mulher de nervos fracos. Vivia à base de tranquilizantes e não se dava com ninguém no prédio. Mas gostava de mim. Um dia, me procurou para desabafar: “Há um operário enterrado na parede de minha cozinha”.

Eu a fiz entrar. Por que haveria um operário enterrado em sua parede? Aos poucos, Francisca defendeu sua tese. Surgiu um vazamento no teto. Andava sem dinheiro, adiou o conserto. Até que, naquela manhã, um líquido mais denso, e avermelhado, passou a escorrer do teto da cozinha. Entrou em pânico: estava certa de que se tratava de sangue.

“Dizem que, durante as obras, enterram os operários rebeldes no cimento armado”, ela argumentou. Não consegui convencê-la do contrário. Não andava mesmo muito bem. Dei-lhe de presente uma caixa de chá e me despedi. “Vocês, homens, sempre apressados”, me repreendeu. Nunca mais me dirigiu a palavra.
Pensei em Francisca – essa mulher que traz o nome roubado de Tia Francisca, de “Cidade Livre”—porque também no romance de João Almino parece haver, agora, um operário soterrado. Chama-se Valdivino e – como a carta roubada no conto de Edgar Allan Poe –, se está escondido, é porque está bem à mostra. Exposto de uma maneira tão escandalosa que nós, leitores, esquecemos de vê-lo.

Explico o que me aconteceu. Depois de ler “Cidade Livre”, andei fuçando as resenhas já publicadas sobre o livro. Li, antes, a orelha do romance, assinada por Walnice Nogueira Galvão – uma crítica que tenha na conta de mestre. Walnice se refere às presenças de Fidel Castro, de Elizabeth Bishop, de John dos Passos, celebridades literárias que circularam por Brasília antes ou durante su inauguração, e que agora ressurgem no livro de João Almino.

Avanço para o prefácio de Benjamin Abdala Junior, outro pensador a quem devo muito. Ele fala de Guimarães Rosa, de José Bonifácio, de Aldous Huxley. Nenhuma palavra, porém, sobre Valdivino,o operário que ocupa o centro da narrativa. Por quê?

Nas resenhas, a ausência se repete. Fala-se de André Malraux, de Fostes Dulles, entre outros nomes ilustres. E de Dalton Trevisan e William Faulkner, fundadores de cidades imaginárias. De pessoas de quem não se pode mesmo fugir, como Juscelino Kubitschek, Oscar Niemeyer, Lúcio Costa e Benardo Sayão – o realizador de Brasília.

Não encontro, contudo, uma só referência a Valdivino, o grande personagem do romance, cuja presença obscurece um pouco até a do narrador João. Por que não se fala dele? Volto ao livro. A partir da página 87, Almino traça um retrato de seu herói. Ia escrever: “anti-herói”. Mas não, é herói mesmo.

O narrador é um jornalista que resgata suas memórias de infância, vividas em torno da inauguração de Brasília, e as mistura com as memórias de seu pai adotivo, um médico psiquiatra. Nelas ocupa lugar de destaque o operário Valdivino, que os dois conheceram no ano de 1956, durante uma caçada no cerrado virgem, onde a nova capital se ergueria.

Valdivino é um rapaz franzino, de dezessete ou dezoito anos. Usa calças e camisa largas, que parecem não lhe pertencer. Veio da Bahia na carroceria de um pau-de-arara. É seguidor de Mestre Yokaanam, um místico que pretende fundar, em pleno planalto, a Cidade Eclética – algo como uma Nova Jerusalém, que abrigaria uma mistura de religiões. Ele é um candango – para usar a expressão que a construção de Brasília consagrou.

Pois é: Valdivino sustenta “Cidade Livre”, o romance de João Almino, um pouco como os candangos carregam nas costas os sacos de cimento e as pedras de mármore com que se construiu Brasília. Com sua alma ambulante, sua religião sem dogmas e seu peito aberto, ele simboliza, ainda, a Cidade Livre, vila provisória construída no Planalto Central nos anos 1950, para abrigar os construtores da nova capital. Uma cidade temporária, erguida para desaparecer – mas que, ainda hoje, resiste na imensa periferia que deforma o Plano Piloto de Oscar Niemeyer.

No centro de “Cidade Livre” está a figura esquiva, mas forte, de Valdivino, cuja morte presumida, no dia da inauguração da cidade, se transforma em um enigma. Com o avançar do relato, o narrador suspeita que le tenha sido, na verdade, assassinado. Mais ainda: que o assassino possa ser seu próprio pai. O hibridismo de Brasília se encarna em Valdivino – que chegou ao planalto movido pelo mito da “Cidade de Z”, uma cidade perdida na região do Araguaia que, no passado, teria abrigado uma grande civilização. Suas origens primitivas, escondidas no silêncio do cerrado, também.

Quando concebeu Brasília, o presidente Juscelino se inspirou, por certo, nesses mitos que falam de cidades fabulosas, capazes de recriar o mundo. Cidades híbridas e plurais, onde nada se exclui. A ideia da mistura se espalha pela narrativa de Almino, que junta personagens reais a seres imaginários, acontecimentos históricos a sonhos antigos, fatos a ficções.

A figura encoberta de Valdivino está no coração do romance, como um sinal dessas fundações que, em geral, preferimos esconder, ou esquecer – alicerces que a arquitetura modernista tratou de desenterrar e de expor. Seu sangue escorre pelas frestas do relato, assim como o suposto sangue que minha vizinha via pingar de seu teto e a levou a acreditar que ali havia um operário enterrado. Seu desaparecimento – como o de D. Sebastião, o Encoberto, que desapareceu na batalha de Alcácer-Quibir – fica como uma pergunta que, por não corresponder a uma resposta, sustenta o relato e funda um mito.

O narrador de “Cidade Livre” tem a seu lado um revisor, chamado João Almino, que acrescenta e modifica seu relato. Com que ele vive às turras e de quem não consegue se livrar. Um escritor é isso: alguém que tenta domar e disciplinar o que se escreve. Também sob a escrita, porém, existe um sujeito oculto – um Valdivino – que, embora esquecido, é quem dá as cartas.

O GLOBO, PROSA & VERSO, 26 de junho de 2010

Um escritor é isso: alguém que tenta domar e disciplinar o que se escreve

Eu ainda vivia no Rio de Janeiro. Ainda morava em Botafogo, e tinha uma vizinha chamada Francisca. É claro: o nome é falso. Eu o tomei emprestado de uma personagem de “Cidade Livre”, o novo romance de João Almino (Record). Logo entenderão por quê.

Francisca era uma mulher de nervos fracos. Vivia à base de tranquilizantes e não se dava com ninguém no prédio. Mas gostava de mim. Um dia, me procurou para desabafar: “Há um operário enterrado na parede de minha cozinha”.

Eu a fiz entrar. Por que haveria um operário enterrado em sua parede? Aos poucos, Francisca defendeu sua tese. Surgiu um vazamento no teto. Andava sem dinheiro, adiou o conserto. Até que, naquela manhã, um líquido mais denso, e avermelhado, passou a escorrer do teto da cozinha. Entrou em pânico: estava certa de que se tratava de sangue.

“Dizem que, durante as obras, enterram os operários rebeldes no cimento armado”, ela argumentou. Não consegui convencê-la do contrário. Não andava mesmo muito bem. Dei-lhe de presente uma caixa de chá e me despedi. “Vocês, homens, sempre apressados”, me repreendeu. Nunca mais me dirigiu a palavra.
Pensei em Francisca – essa mulher que traz o nome roubado de Tia Francisca, de “Cidade Livre”—porque também no romance de João Almino parece haver, agora, um operário soterrado. Chama-se Valdivino e – como a carta roubada no conto de Edgar Allan Poe –, se está escondido, é porque está bem à mostra. Exposto de uma maneira tão escandalosa que nós, leitores, esquecemos de vê-lo.

Explico o que me aconteceu. Depois de ler “Cidade Livre”, andei fuçando as resenhas já publicadas sobre o livro. Li, antes, a orelha do romance, assinada por Walnice Nogueira Galvão – uma crítica que tenha na conta de mestre. Walnice se refere às presenças de Fidel Castro, de Elizabeth Bishop, de John dos Passos, celebridades literárias que circularam por Brasília antes ou durante su inauguração, e que agora ressurgem no livro de João Almino.

Avanço para o prefácio de Benjamin Abdala Junior, outro pensador a quem devo muito. Ele fala de Guimarães Rosa, de José Bonifácio, de Aldous Huxley. Nenhuma palavra, porém, sobre Valdivino,o operário que ocupa o centro da narrativa. Por quê?

Nas resenhas, a ausência se repete. Fala-se de André Malraux, de Fostes Dulles, entre outros nomes ilustres. E de Dalton Trevisan e William Faulkner, fundadores de cidades imaginárias. De pessoas de quem não se pode mesmo fugir, como Juscelino Kubitschek, Oscar Niemeyer, Lúcio Costa e Benardo Sayão – o realizador de Brasília.

Não encontro, contudo, uma só referência a Valdivino, o grande personagem do romance, cuja presença obscurece um pouco até a do narrador João. Por que não se fala dele? Volto ao livro. A partir da página 87, Almino traça um retrato de seu herói. Ia escrever: “anti-herói”. Mas não, é herói mesmo.

O narrador é um jornalista que resgata suas memórias de infância, vividas em torno da inauguração de Brasília, e as mistura com as memórias de seu pai adotivo, um médico psiquiatra. Nelas ocupa lugar de destaque o operário Valdivino, que os dois conheceram no ano de 1956, durante uma caçada no cerrado virgem, onde a nova capital se ergueria.

Valdivino é um rapaz franzino, de dezessete ou dezoito anos. Usa calças e camisa largas, que parecem não lhe pertencer. Veio da Bahia na carroceria de um pau-de-arara. É seguidor de Mestre Yokaanam, um místico que pretende fundar, em pleno planalto, a Cidade Eclética – algo como uma Nova Jerusalém, que abrigaria uma mistura de religiões. Ele é um candango – para usar a expressão que a construção de Brasília consagrou.

Pois é: Valdivino sustenta “Cidade Livre”, o romance de João Almino, um pouco como os candangos carregam nas costas os sacos de cimento e as pedras de mármore com que se construiu Brasília. Com sua alma ambulante, sua religião sem dogmas e seu peito aberto, ele simboliza, ainda, a Cidade Livre, vila provisória construída no Planalto Central nos anos 1950, para abrigar os construtores da nova capital. Uma cidade temporária, erguida para desaparecer – mas que, ainda hoje, resiste na imensa periferia que deforma o Plano Piloto de Oscar Niemeyer.

No centro de “Cidade Livre” está a figura esquiva, mas forte, de Valdivino, cuja morte presumida, no dia da inauguração da cidade, se transforma em um enigma. Com o avançar do relato, o narrador suspeita que le tenha sido, na verdade, assassinado. Mais ainda: que o assassino possa ser seu próprio pai. O hibridismo de Brasília se encarna em Valdivino – que chegou ao planalto movido pelo mito da “Cidade de Z”, uma cidade perdida na região do Araguaia que, no passado, teria abrigado uma grande civilização. Suas origens primitivas, escondidas no silêncio do cerrado, também.

Quando concebeu Brasília, o presidente Juscelino se inspirou, por certo, nesses mitos que falam de cidades fabulosas, capazes de recriar o mundo. Cidades híbridas e plurais, onde nada se exclui. A ideia da mistura se espalha pela narrativa de Almino, que junta personagens reais a seres imaginários, acontecimentos históricos a sonhos antigos, fatos a ficções.

A figura encoberta de Valdivino está no coração do romance, como um sinal dessas fundações que, em geral, preferimos esconder, ou esquecer – alicerces que a arquitetura modernista tratou de desenterrar e de expor. Seu sangue escorre pelas frestas do relato, assim como o suposto sangue que minha vizinha via pingar de seu teto e a levou a acreditar que ali havia um operário enterrado. Seu desaparecimento – como o de D. Sebastião, o Encoberto, que desapareceu na batalha de Alcácer-Quibir – fica como uma pergunta que, por não corresponder a uma resposta, sustenta o relato e funda um mito.

O narrador de “Cidade Livre” tem a seu lado um revisor, chamado João Almino, que acrescenta e modifica seu relato. Com que ele vive às turras e de quem não consegue se livrar. Um escritor é isso: alguém que tenta domar e disciplinar o que se escreve. Também sob a escrita, porém, existe um sujeito oculto – um Valdivino – que, embora esquecido, é quem dá as cartas.

O GLOBO, PROSA & VERSO, 26 de junho de 2010

Um escritor é isso: alguém que tenta domar e disciplinar o que se escreve

Eu ainda vivia no Rio de Janeiro. Ainda morava em Botafogo, e tinha uma vizinha chamada Francisca. É claro: o nome é falso. Eu o tomei emprestado de uma personagem de “Cidade Livre”, o novo romance de João Almino (Record). Logo entenderão por quê.

Francisca era uma mulher de nervos fracos. Vivia à base de tranquilizantes e não se dava com ninguém no prédio. Mas gostava de mim. Um dia, me procurou para desabafar: “Há um operário enterrado na parede de minha cozinha”.

Eu a fiz entrar. Por que haveria um operário enterrado em sua parede? Aos poucos, Francisca defendeu sua tese. Surgiu um vazamento no teto. Andava sem dinheiro, adiou o conserto. Até que, naquela manhã, um líquido mais denso, e avermelhado, passou a escorrer do teto da cozinha. Entrou em pânico: estava certa de que se tratava de sangue.

“Dizem que, durante as obras, enterram os operários rebeldes no cimento armado”, ela argumentou. Não consegui convencê-la do contrário. Não andava mesmo muito bem. Dei-lhe de presente uma caixa de chá e me despedi. “Vocês, homens, sempre apressados”, me repreendeu. Nunca mais me dirigiu a palavra.
Pensei em Francisca – essa mulher que traz o nome roubado de Tia Francisca, de “Cidade Livre”—porque também no romance de João Almino parece haver, agora, um operário soterrado. Chama-se Valdivino e – como a carta roubada no conto de Edgar Allan Poe –, se está escondido, é porque está bem à mostra. Exposto de uma maneira tão escandalosa que nós, leitores, esquecemos de vê-lo.

Explico o que me aconteceu. Depois de ler “Cidade Livre”, andei fuçando as resenhas já publicadas sobre o livro. Li, antes, a orelha do romance, assinada por Walnice Nogueira Galvão – uma crítica que tenha na conta de mestre. Walnice se refere às presenças de Fidel Castro, de Elizabeth Bishop, de John dos Passos, celebridades literárias que circularam por Brasília antes ou durante su inauguração, e que agora ressurgem no livro de João Almino.

Avanço para o prefácio de Benjamin Abdala Junior, outro pensador a quem devo muito. Ele fala de Guimarães Rosa, de José Bonifácio, de Aldous Huxley. Nenhuma palavra, porém, sobre Valdivino,o operário que ocupa o centro da narrativa. Por quê?

Nas resenhas, a ausência se repete. Fala-se de André Malraux, de Fostes Dulles, entre outros nomes ilustres. E de Dalton Trevisan e William Faulkner, fundadores de cidades imaginárias. De pessoas de quem não se pode mesmo fugir, como Juscelino Kubitschek, Oscar Niemeyer, Lúcio Costa e Benardo Sayão – o realizador de Brasília.

Não encontro, contudo, uma só referência a Valdivino, o grande personagem do romance, cuja presença obscurece um pouco até a do narrador João. Por que não se fala dele? Volto ao livro. A partir da página 87, Almino traça um retrato de seu herói. Ia escrever: “anti-herói”. Mas não, é herói mesmo.

O narrador é um jornalista que resgata suas memórias de infância, vividas em torno da inauguração de Brasília, e as mistura com as memórias de seu pai adotivo, um médico psiquiatra. Nelas ocupa lugar de destaque o operário Valdivino, que os dois conheceram no ano de 1956, durante uma caçada no cerrado virgem, onde a nova capital se ergueria.

Valdivino é um rapaz franzino, de dezessete ou dezoito anos. Usa calças e camisa largas, que parecem não lhe pertencer. Veio da Bahia na carroceria de um pau-de-arara. É seguidor de Mestre Yokaanam, um místico que pretende fundar, em pleno planalto, a Cidade Eclética – algo como uma Nova Jerusalém, que abrigaria uma mistura de religiões. Ele é um candango – para usar a expressão que a construção de Brasília consagrou.

Pois é: Valdivino sustenta “Cidade Livre”, o romance de João Almino, um pouco como os candangos carregam nas costas os sacos de cimento e as pedras de mármore com que se construiu Brasília. Com sua alma ambulante, sua religião sem dogmas e seu peito aberto, ele simboliza, ainda, a Cidade Livre, vila provisória construída no Planalto Central nos anos 1950, para abrigar os construtores da nova capital. Uma cidade temporária, erguida para desaparecer – mas que, ainda hoje, resiste na imensa periferia que deforma o Plano Piloto de Oscar Niemeyer.

No centro de “Cidade Livre” está a figura esquiva, mas forte, de Valdivino, cuja morte presumida, no dia da inauguração da cidade, se transforma em um enigma. Com o avançar do relato, o narrador suspeita que le tenha sido, na verdade, assassinado. Mais ainda: que o assassino possa ser seu próprio pai. O hibridismo de Brasília se encarna em Valdivino – que chegou ao planalto movido pelo mito da “Cidade de Z”, uma cidade perdida na região do Araguaia que, no passado, teria abrigado uma grande civilização. Suas origens primitivas, escondidas no silêncio do cerrado, também.

Quando concebeu Brasília, o presidente Juscelino se inspirou, por certo, nesses mitos que falam de cidades fabulosas, capazes de recriar o mundo. Cidades híbridas e plurais, onde nada se exclui. A ideia da mistura se espalha pela narrativa de Almino, que junta personagens reais a seres imaginários, acontecimentos históricos a sonhos antigos, fatos a ficções.

A figura encoberta de Valdivino está no coração do romance, como um sinal dessas fundações que, em geral, preferimos esconder, ou esquecer – alicerces que a arquitetura modernista tratou de desenterrar e de expor. Seu sangue escorre pelas frestas do relato, assim como o suposto sangue que minha vizinha via pingar de seu teto e a levou a acreditar que ali havia um operário enterrado. Seu desaparecimento – como o de D. Sebastião, o Encoberto, que desapareceu na batalha de Alcácer-Quibir – fica como uma pergunta que, por não corresponder a uma resposta, sustenta o relato e funda um mito.

O narrador de “Cidade Livre” tem a seu lado um revisor, chamado João Almino, que acrescenta e modifica seu relato. Com que ele vive às turras e de quem não consegue se livrar. Um escritor é isso: alguém que tenta domar e disciplinar o que se escreve. Também sob a escrita, porém, existe um sujeito oculto – um Valdivino – que, embora esquecido, é quem dá as cartas.

O GLOBO, PROSA & VERSO, 26 de junho de 2010

Um escritor é isso: alguém que tenta domar e disciplinar o que se escreve

Eu ainda vivia no Rio de Janeiro. Ainda morava em Botafogo, e tinha uma vizinha chamada Francisca. É claro: o nome é falso. Eu o tomei emprestado de uma personagem de “Cidade Livre”, o novo romance de João Almino (Record). Logo entenderão por quê.

Francisca era uma mulher de nervos fracos. Vivia à base de tranquilizantes e não se dava com ninguém no prédio. Mas gostava de mim. Um dia, me procurou para desabafar: “Há um operário enterrado na parede de minha cozinha”.

Eu a fiz entrar. Por que haveria um operário enterrado em sua parede? Aos poucos, Francisca defendeu sua tese. Surgiu um vazamento no teto. Andava sem dinheiro, adiou o conserto. Até que, naquela manhã, um líquido mais denso, e avermelhado, passou a escorrer do teto da cozinha. Entrou em pânico: estava certa de que se tratava de sangue.

“Dizem que, durante as obras, enterram os operários rebeldes no cimento armado”, ela argumentou. Não consegui convencê-la do contrário. Não andava mesmo muito bem. Dei-lhe de presente uma caixa de chá e me despedi. “Vocês, homens, sempre apressados”, me repreendeu. Nunca mais me dirigiu a palavra.
Pensei em Francisca – essa mulher que traz o nome roubado de Tia Francisca, de “Cidade Livre”—porque também no romance de João Almino parece haver, agora, um operário soterrado. Chama-se Valdivino e – como a carta roubada no conto de Edgar Allan Poe –, se está escondido, é porque está bem à mostra. Exposto de uma maneira tão escandalosa que nós, leitores, esquecemos de vê-lo.

Explico o que me aconteceu. Depois de ler “Cidade Livre”, andei fuçando as resenhas já publicadas sobre o livro. Li, antes, a orelha do romance, assinada por Walnice Nogueira Galvão – uma crítica que tenha na conta de mestre. Walnice se refere às presenças de Fidel Castro, de Elizabeth Bishop, de John dos Passos, celebridades literárias que circularam por Brasília antes ou durante su inauguração, e que agora ressurgem no livro de João Almino.

Avanço para o prefácio de Benjamin Abdala Junior, outro pensador a quem devo muito. Ele fala de Guimarães Rosa, de José Bonifácio, de Aldous Huxley. Nenhuma palavra, porém, sobre Valdivino,o operário que ocupa o centro da narrativa. Por quê?

Nas resenhas, a ausência se repete. Fala-se de André Malraux, de Fostes Dulles, entre outros nomes ilustres. E de Dalton Trevisan e William Faulkner, fundadores de cidades imaginárias. De pessoas de quem não se pode mesmo fugir, como Juscelino Kubitschek, Oscar Niemeyer, Lúcio Costa e Benardo Sayão – o realizador de Brasília.

Não encontro, contudo, uma só referência a Valdivino, o grande personagem do romance, cuja presença obscurece um pouco até a do narrador João. Por que não se fala dele? Volto ao livro. A partir da página 87, Almino traça um retrato de seu herói. Ia escrever: “anti-herói”. Mas não, é herói mesmo.

O narrador é um jornalista que resgata suas memórias de infância, vividas em torno da inauguração de Brasília, e as mistura com as memórias de seu pai adotivo, um médico psiquiatra. Nelas ocupa lugar de destaque o operário Valdivino, que os dois conheceram no ano de 1956, durante uma caçada no cerrado virgem, onde a nova capital se ergueria.

Valdivino é um rapaz franzino, de dezessete ou dezoito anos. Usa calças e camisa largas, que parecem não lhe pertencer. Veio da Bahia na carroceria de um pau-de-arara. É seguidor de Mestre Yokaanam, um místico que pretende fundar, em pleno planalto, a Cidade Eclética – algo como uma Nova Jerusalém, que abrigaria uma mistura de religiões. Ele é um candango – para usar a expressão que a construção de Brasília consagrou.

Pois é: Valdivino sustenta “Cidade Livre”, o romance de João Almino, um pouco como os candangos carregam nas costas os sacos de cimento e as pedras de mármore com que se construiu Brasília. Com sua alma ambulante, sua religião sem dogmas e seu peito aberto, ele simboliza, ainda, a Cidade Livre, vila provisória construída no Planalto Central nos anos 1950, para abrigar os construtores da nova capital. Uma cidade temporária, erguida para desaparecer – mas que, ainda hoje, resiste na imensa periferia que deforma o Plano Piloto de Oscar Niemeyer.

No centro de “Cidade Livre” está a figura esquiva, mas forte, de Valdivino, cuja morte presumida, no dia da inauguração da cidade, se transforma em um enigma. Com o avançar do relato, o narrador suspeita que le tenha sido, na verdade, assassinado. Mais ainda: que o assassino possa ser seu próprio pai. O hibridismo de Brasília se encarna em Valdivino – que chegou ao planalto movido pelo mito da “Cidade de Z”, uma cidade perdida na região do Araguaia que, no passado, teria abrigado uma grande civilização. Suas origens primitivas, escondidas no silêncio do cerrado, também.

Quando concebeu Brasília, o presidente Juscelino se inspirou, por certo, nesses mitos que falam de cidades fabulosas, capazes de recriar o mundo. Cidades híbridas e plurais, onde nada se exclui. A ideia da mistura se espalha pela narrativa de Almino, que junta personagens reais a seres imaginários, acontecimentos históricos a sonhos antigos, fatos a ficções.

A figura encoberta de Valdivino está no coração do romance, como um sinal dessas fundações que, em geral, preferimos esconder, ou esquecer – alicerces que a arquitetura modernista tratou de desenterrar e de expor. Seu sangue escorre pelas frestas do relato, assim como o suposto sangue que minha vizinha via pingar de seu teto e a levou a acreditar que ali havia um operário enterrado. Seu desaparecimento – como o de D. Sebastião, o Encoberto, que desapareceu na batalha de Alcácer-Quibir – fica como uma pergunta que, por não corresponder a uma resposta, sustenta o relato e funda um mito.

O narrador de “Cidade Livre” tem a seu lado um revisor, chamado João Almino, que acrescenta e modifica seu relato. Com que ele vive às turras e de quem não consegue se livrar. Um escritor é isso: alguém que tenta domar e disciplinar o que se escreve. Também sob a escrita, porém, existe um sujeito oculto – um Valdivino – que, embora esquecido, é quem dá as cartas.