Praga e Brasília. Barbara Feitag, Correio Braziliense

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CORREIO BRAZIIENSE, Brasília, domingo, 10 de junho de 2001

Brasília tem todos os elementos que fizeram de praga capital cultural da europa e exibe todas as credenciais para tornar-se a capital cultural do brasil

POR BARBARA FREITAG

Quando uma cidade pode ser efetivamente chamada de cidade? Vilém Flusser (1913-1990), filósofo checo, que viveu 35 anos no Brasil, tem uma resposta unívoca. 0 título de cidade deve ser reservado àqueles centros urbanos em que estão integrados, em convívio harmônico, o espaço político, econômico e cultural. Na falta de um desses espaços, não nos movimentamos em uma verdadeira cidade e sim em um assentamento, em um mercado de troca de bens ou numa mera sede de governo. Flusser foi um grande admirador da “polis” grega, mas o modelo de cidade que está por detrás de sua definição não é Atenas e sim Praga, a cidade em que nasceu e morreu.

Em Praga o centro político confunde-se com o Castelo (Hrad) no alto do morro, abraçado pelo rio Moldau, no chamado “lado pequeno” (Mála Strana) da capital checa. O Castelo, por sua vez, cerca o espaço cultural no qual se ergue uma basílica romana (São George), uma catedral gótica (São Guido) e o grande palácio, célebre pela defenestração – no século XVI – de mensageiros jesuítas do imperador de Áustria. Extramuros, atravessando-se a Ponte Carlova, alcança-se a Praça (Stare Mesto), com seu famoso relógio, a prefeitura e as casas burguesas que cercam o antigo mercado livre da cidade.

Praga é para Flusser a encarnação de uma “verdadeira cidade”, que tem sua história, sua tradição e arquitetura próprias. A integração do espaço urbano com as etnias, a religião, a cultura literária e artística atingiu seu apogeu no entreguerras, i. é, nos anos 20 e 30. Nessa época aqui se deu o encontro entre as etnias eslava, semita e germânica, entre religiões como a pré-protestante de Jan Hus, a católica dos jesuítas e a judaica, bem como a mistura lingüística do alemão com o checo e iídiche, trazido pelos judeus que na Idade Média se assentaram no bairro de Josefov. A Praga do início do século XX não foi somente a capital da então Tcheco-Eslováquia, foi a capital cultural da Europa central. Nessa época, Rilke dedicou-lhe um álbum de poesias, Werfel concebia obras lidas e encenadas em Berlim e Viena, e Kafka recitava, no Café Slavia, trechos de seus romances.

Cabe agora perguntar se o que serviu de critério para considerar Praga uma “verdadeira cidade” também se aplicaria para Brasília. Em seu livro O Brasil ou a busca do novo ser humano (1994), Flusser dá uma resposta profética. Com Brasília foi criado um espaço urbano, no qual se desenvolverá o “homem novo”, capaz de integrar os “velhos códigos”, preservados do mundo europeu, com os “novos códigos”, baseados nas inovações tecnológicas da nova era digital. Esse fato já estaria concretizado no traçado urbano e nos monumentos criados pelos urbanistas e arquitetos Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. Segundo Flusser, sua fama corre o mundo por terem conseguido combinar em Brasília velhas formas do período colonial com “riscos” mais ousados que os de Gropius, Wright ou Van der Welde.

Flusser visitou Brasília em 1967, constatando que os idealizadores da cidade haviam previsto os espaços político, com a Praça dos Três Poderes, cultural, com a catedral e o teatro Villa-Lobos, e comercial com os conjuntos Nacional e Conic, refazendo, desse modo, o tripé no qual se assentaria uma “verdadeira cidade”. 0 filósofo checo também observou em Brasília a confluência de uma população vinda de todas as regiões do Brasil, os “candangos”, amálgama de três raças: a indígena, a africana e a branca. Sua linguagem, o “brasileiro”, constitui um sincretismo de velhas tradições lingüísticas: o português colonial arcaico (burocrático e empoeirado), que no entanto preservava a lógica discursiva da língua latina; o tupi-guarani, uma língua aglutinante de um povo autóctone ágrafo, e os vários idiomas africanos com estrutura lingüística “isolante”. Brasília tinha, pois, todos os elementos que fizeram de Praga uma capital cultural da Europa, tendo todas as credenciais para tornar-se a capital cultural do Brasil.

Para Flusser, o poder de inovação inerente à população brasileira refletia-se em sua criatividade artística e inventividade literária. Um Portinari e um Manabu Mabe haviam indicado o caminho para as artes plásticas. Um Guimarães Rosa, Drummond de Andrade, João Cabral foram exemplos no campo da literatura. Lúcio Costa e Oscar Niemeyer prepararam o terreno no espaço urbanístico e no campo da arquitetura. Flusser, cheio de otimismo, via no Brasil mais que um “país do futuro” ao estilo de Stefan Zweig. Tratava-se de uma nação inteira à busca do novo homem e de uma civilização, livre da carga negativa e sangrenta da Europa. (É preciso lembrar que Flusser era judeu e viu toda sua família vitimada em Auschwitz, depois de os nazistas anexarem os Sudetos e se instalarem em Praga).

Quais seriam, contudo, os poetas, ensaístas, romancistas brasilienses capazes de conferir a Brasília o estatuto de “cidade”? Onde estão os Kafkas, Rilkes, Werfels que animam os cafés, casas de vinho e restaurantes da nova capital?

Nós, que habitamos o espaço cultural da cidade e vivemos além de Flusser, precisamos descobrir a criatividade artística pregada por ele. Para a nova capital ocorrem-me, de imediato, pelo menos três nomes no campo da produção literária: Cassiano Nunes, Chico Alvim e João Almino. Sem querer forçar qualquer paralelo com Werfel, Rilke e Kafka, trata-se de uma safra de novos talentos, que, longe de cultivarem uma literatura regionalista, levam temas universais do homem moderno para além das fronteiras de Brasília.

Focalizo o caso de João Almino, que desde 1987 tomou a cidade de Brasília como moldura e enredo de seus romances. Cabe lembrar ao leitor que seus livros foram divulgados em inúmeras edições do Correio Braziliense. (Vide ApArt do CB de 28/6/87; no Caderno Dois do CB de 30/8/94, 1/3 /98 e 18/4/99, mas também no Caderno Idéias do JB, no Folhetim e Mais da Folha e em jornais e revistas do México, de Lisboa e até mesmo da Califórnia/ EUA).

É uma trilogia composta de Idéias para onde passar o fim do mundo (1987), Samba-enredo (1994) e As Cinco estações de amor . Nos seus romances Almino introduz formas literárias surpreendentes e temas existenciais que brotam da condição urbana do homem moderno. Surpreendente é a figura do narrador, que no primeiro romance é um cineasta defunto à busca de um novo roteiro para o novo milênio; no segundo, um computador laptop, apaixonado por sua proprietária, que o jogara no lixo; no romance mais recente, a narradora é Ana, de 55 anos, professora aposentada da UnB, aliás, a mesma que no romance anterior jogara fora o seu computador. Nos três casos, Brasília é moldura e espelho para os personagens, que vivem na cidade e são habitados por ela. Seu denominador comum é a vivência de estarem inscritos na mesma capital planejada.

Outros romancistas hão de surgir, narrando Brasília, exprimindo sua narratividade. Todos eles terão de debater-se com esta cidade, que segundo Clarice Lispector é “cidade abstrata”, “traçada no ar”, “de beleza assustadora”, “de silêncio visual”, “o fracasso do mais espetacular sucesso do mundo. Brasília é uma estrela espatifada. É linda e nua. 0 despudoramento que se tem na solidão”.

BARBARA FREITAG É PROFESSORA PESQUISADORA DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Leia também, de Barbara Freitag, o ensaio O Mito da Megalópole na Literatura Brasileira, em que, a propósito do Rio, de São Paulo e de Brasília, comenta respectivamente A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, Não Verás País, de Ignacio de Loyola Brandão, e Samba-Enredo, de João Almino.

CORREIO BRAZIIENSE, Brasília, domingo, 10 de junho de 2001

Brasília tem todos os elementos que fizeram de praga capital cultural da europa e exibe todas as credenciais para tornar-se a capital cultural do brasil

POR BARBARA FREITAG

Quando uma cidade pode ser efetivamente chamada de cidade? Vilém Flusser (1913-1990), filósofo checo, que viveu 35 anos no Brasil, tem uma resposta unívoca. 0 título de cidade deve ser reservado àqueles centros urbanos em que estão integrados, em convívio harmônico, o espaço político, econômico e cultural. Na falta de um desses espaços, não nos movimentamos em uma verdadeira cidade e sim em um assentamento, em um mercado de troca de bens ou numa mera sede de governo. Flusser foi um grande admirador da “polis” grega, mas o modelo de cidade que está por detrás de sua definição não é Atenas e sim Praga, a cidade em que nasceu e morreu.

Em Praga o centro político confunde-se com o Castelo (Hrad) no alto do morro, abraçado pelo rio Moldau, no chamado “lado pequeno” (Mála Strana) da capital checa. O Castelo, por sua vez, cerca o espaço cultural no qual se ergue uma basílica romana (São George), uma catedral gótica (São Guido) e o grande palácio, célebre pela defenestração – no século XVI – de mensageiros jesuítas do imperador de Áustria. Extramuros, atravessando-se a Ponte Carlova, alcança-se a Praça (Stare Mesto), com seu famoso relógio, a prefeitura e as casas burguesas que cercam o antigo mercado livre da cidade.

Praga é para Flusser a encarnação de uma “verdadeira cidade”, que tem sua história, sua tradição e arquitetura próprias. A integração do espaço urbano com as etnias, a religião, a cultura literária e artística atingiu seu apogeu no entreguerras, i. é, nos anos 20 e 30. Nessa época aqui se deu o encontro entre as etnias eslava, semita e germânica, entre religiões como a pré-protestante de Jan Hus, a católica dos jesuítas e a judaica, bem como a mistura lingüística do alemão com o checo e iídiche, trazido pelos judeus que na Idade Média se assentaram no bairro de Josefov. A Praga do início do século XX não foi somente a capital da então Tcheco-Eslováquia, foi a capital cultural da Europa central. Nessa época, Rilke dedicou-lhe um álbum de poesias, Werfel concebia obras lidas e encenadas em Berlim e Viena, e Kafka recitava, no Café Slavia, trechos de seus romances.

Cabe agora perguntar se o que serviu de critério para considerar Praga uma “verdadeira cidade” também se aplicaria para Brasília. Em seu livro O Brasil ou a busca do novo ser humano (1994), Flusser dá uma resposta profética. Com Brasília foi criado um espaço urbano, no qual se desenvolverá o “homem novo”, capaz de integrar os “velhos códigos”, preservados do mundo europeu, com os “novos códigos”, baseados nas inovações tecnológicas da nova era digital. Esse fato já estaria concretizado no traçado urbano e nos monumentos criados pelos urbanistas e arquitetos Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. Segundo Flusser, sua fama corre o mundo por terem conseguido combinar em Brasília velhas formas do período colonial com “riscos” mais ousados que os de Gropius, Wright ou Van der Welde.

Flusser visitou Brasília em 1967, constatando que os idealizadores da cidade haviam previsto os espaços político, com a Praça dos Três Poderes, cultural, com a catedral e o teatro Villa-Lobos, e comercial com os conjuntos Nacional e Conic, refazendo, desse modo, o tripé no qual se assentaria uma “verdadeira cidade”. 0 filósofo checo também observou em Brasília a confluência de uma população vinda de todas as regiões do Brasil, os “candangos”, amálgama de três raças: a indígena, a africana e a branca. Sua linguagem, o “brasileiro”, constitui um sincretismo de velhas tradições lingüísticas: o português colonial arcaico (burocrático e empoeirado), que no entanto preservava a lógica discursiva da língua latina; o tupi-guarani, uma língua aglutinante de um povo autóctone ágrafo, e os vários idiomas africanos com estrutura lingüística “isolante”. Brasília tinha, pois, todos os elementos que fizeram de Praga uma capital cultural da Europa, tendo todas as credenciais para tornar-se a capital cultural do Brasil.

Para Flusser, o poder de inovação inerente à população brasileira refletia-se em sua criatividade artística e inventividade literária. Um Portinari e um Manabu Mabe haviam indicado o caminho para as artes plásticas. Um Guimarães Rosa, Drummond de Andrade, João Cabral foram exemplos no campo da literatura. Lúcio Costa e Oscar Niemeyer prepararam o terreno no espaço urbanístico e no campo da arquitetura. Flusser, cheio de otimismo, via no Brasil mais que um “país do futuro” ao estilo de Stefan Zweig. Tratava-se de uma nação inteira à busca do novo homem e de uma civilização, livre da carga negativa e sangrenta da Europa. (É preciso lembrar que Flusser era judeu e viu toda sua família vitimada em Auschwitz, depois de os nazistas anexarem os Sudetos e se instalarem em Praga).

Quais seriam, contudo, os poetas, ensaístas, romancistas brasilienses capazes de conferir a Brasília o estatuto de “cidade”? Onde estão os Kafkas, Rilkes, Werfels que animam os cafés, casas de vinho e restaurantes da nova capital?

Nós, que habitamos o espaço cultural da cidade e vivemos além de Flusser, precisamos descobrir a criatividade artística pregada por ele. Para a nova capital ocorrem-me, de imediato, pelo menos três nomes no campo da produção literária: Cassiano Nunes, Chico Alvim e João Almino. Sem querer forçar qualquer paralelo com Werfel, Rilke e Kafka, trata-se de uma safra de novos talentos, que, longe de cultivarem uma literatura regionalista, levam temas universais do homem moderno para além das fronteiras de Brasília.

Focalizo o caso de João Almino, que desde 1987 tomou a cidade de Brasília como moldura e enredo de seus romances. Cabe lembrar ao leitor que seus livros foram divulgados em inúmeras edições do Correio Braziliense. (Vide ApArt do CB de 28/6/87; no Caderno Dois do CB de 30/8/94, 1/3 /98 e 18/4/99, mas também no Caderno Idéias do JB, no Folhetim e Mais da Folha e em jornais e revistas do México, de Lisboa e até mesmo da Califórnia/ EUA).

É uma trilogia composta de Idéias para onde passar o fim do mundo (1987), Samba-enredo (1994) e As Cinco estações de amor . Nos seus romances Almino introduz formas literárias surpreendentes e temas existenciais que brotam da condição urbana do homem moderno. Surpreendente é a figura do narrador, que no primeiro romance é um cineasta defunto à busca de um novo roteiro para o novo milênio; no segundo, um computador laptop, apaixonado por sua proprietária, que o jogara no lixo; no romance mais recente, a narradora é Ana, de 55 anos, professora aposentada da UnB, aliás, a mesma que no romance anterior jogara fora o seu computador. Nos três casos, Brasília é moldura e espelho para os personagens, que vivem na cidade e são habitados por ela. Seu denominador comum é a vivência de estarem inscritos na mesma capital planejada.

Outros romancistas hão de surgir, narrando Brasília, exprimindo sua narratividade. Todos eles terão de debater-se com esta cidade, que segundo Clarice Lispector é “cidade abstrata”, “traçada no ar”, “de beleza assustadora”, “de silêncio visual”, “o fracasso do mais espetacular sucesso do mundo. Brasília é uma estrela espatifada. É linda e nua. 0 despudoramento que se tem na solidão”.

BARBARA FREITAG É PROFESSORA PESQUISADORA DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Leia também, de Barbara Freitag, o ensaio O Mito da Megalópole na Literatura Brasileira, em que, a propósito do Rio, de São Paulo e de Brasília, comenta respectivamente A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, Não Verás País, de Ignacio de Loyola Brandão, e Samba-Enredo, de João Almino.

CORREIO BRAZIIENSE, Brasília, domingo, 10 de junho de 2001

Brasília tem todos os elementos que fizeram de praga capital cultural da europa e exibe todas as credenciais para tornar-se a capital cultural do brasil

POR BARBARA FREITAG

Quando uma cidade pode ser efetivamente chamada de cidade? Vilém Flusser (1913-1990), filósofo checo, que viveu 35 anos no Brasil, tem uma resposta unívoca. 0 título de cidade deve ser reservado àqueles centros urbanos em que estão integrados, em convívio harmônico, o espaço político, econômico e cultural. Na falta de um desses espaços, não nos movimentamos em uma verdadeira cidade e sim em um assentamento, em um mercado de troca de bens ou numa mera sede de governo. Flusser foi um grande admirador da “polis” grega, mas o modelo de cidade que está por detrás de sua definição não é Atenas e sim Praga, a cidade em que nasceu e morreu.

Em Praga o centro político confunde-se com o Castelo (Hrad) no alto do morro, abraçado pelo rio Moldau, no chamado “lado pequeno” (Mála Strana) da capital checa. O Castelo, por sua vez, cerca o espaço cultural no qual se ergue uma basílica romana (São George), uma catedral gótica (São Guido) e o grande palácio, célebre pela defenestração – no século XVI – de mensageiros jesuítas do imperador de Áustria. Extramuros, atravessando-se a Ponte Carlova, alcança-se a Praça (Stare Mesto), com seu famoso relógio, a prefeitura e as casas burguesas que cercam o antigo mercado livre da cidade.

Praga é para Flusser a encarnação de uma “verdadeira cidade”, que tem sua história, sua tradição e arquitetura próprias. A integração do espaço urbano com as etnias, a religião, a cultura literária e artística atingiu seu apogeu no entreguerras, i. é, nos anos 20 e 30. Nessa época aqui se deu o encontro entre as etnias eslava, semita e germânica, entre religiões como a pré-protestante de Jan Hus, a católica dos jesuítas e a judaica, bem como a mistura lingüística do alemão com o checo e iídiche, trazido pelos judeus que na Idade Média se assentaram no bairro de Josefov. A Praga do início do século XX não foi somente a capital da então Tcheco-Eslováquia, foi a capital cultural da Europa central. Nessa época, Rilke dedicou-lhe um álbum de poesias, Werfel concebia obras lidas e encenadas em Berlim e Viena, e Kafka recitava, no Café Slavia, trechos de seus romances.

Cabe agora perguntar se o que serviu de critério para considerar Praga uma “verdadeira cidade” também se aplicaria para Brasília. Em seu livro O Brasil ou a busca do novo ser humano (1994), Flusser dá uma resposta profética. Com Brasília foi criado um espaço urbano, no qual se desenvolverá o “homem novo”, capaz de integrar os “velhos códigos”, preservados do mundo europeu, com os “novos códigos”, baseados nas inovações tecnológicas da nova era digital. Esse fato já estaria concretizado no traçado urbano e nos monumentos criados pelos urbanistas e arquitetos Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. Segundo Flusser, sua fama corre o mundo por terem conseguido combinar em Brasília velhas formas do período colonial com “riscos” mais ousados que os de Gropius, Wright ou Van der Welde.

Flusser visitou Brasília em 1967, constatando que os idealizadores da cidade haviam previsto os espaços político, com a Praça dos Três Poderes, cultural, com a catedral e o teatro Villa-Lobos, e comercial com os conjuntos Nacional e Conic, refazendo, desse modo, o tripé no qual se assentaria uma “verdadeira cidade”. 0 filósofo checo também observou em Brasília a confluência de uma população vinda de todas as regiões do Brasil, os “candangos”, amálgama de três raças: a indígena, a africana e a branca. Sua linguagem, o “brasileiro”, constitui um sincretismo de velhas tradições lingüísticas: o português colonial arcaico (burocrático e empoeirado), que no entanto preservava a lógica discursiva da língua latina; o tupi-guarani, uma língua aglutinante de um povo autóctone ágrafo, e os vários idiomas africanos com estrutura lingüística “isolante”. Brasília tinha, pois, todos os elementos que fizeram de Praga uma capital cultural da Europa, tendo todas as credenciais para tornar-se a capital cultural do Brasil.

Para Flusser, o poder de inovação inerente à população brasileira refletia-se em sua criatividade artística e inventividade literária. Um Portinari e um Manabu Mabe haviam indicado o caminho para as artes plásticas. Um Guimarães Rosa, Drummond de Andrade, João Cabral foram exemplos no campo da literatura. Lúcio Costa e Oscar Niemeyer prepararam o terreno no espaço urbanístico e no campo da arquitetura. Flusser, cheio de otimismo, via no Brasil mais que um “país do futuro” ao estilo de Stefan Zweig. Tratava-se de uma nação inteira à busca do novo homem e de uma civilização, livre da carga negativa e sangrenta da Europa. (É preciso lembrar que Flusser era judeu e viu toda sua família vitimada em Auschwitz, depois de os nazistas anexarem os Sudetos e se instalarem em Praga).

Quais seriam, contudo, os poetas, ensaístas, romancistas brasilienses capazes de conferir a Brasília o estatuto de “cidade”? Onde estão os Kafkas, Rilkes, Werfels que animam os cafés, casas de vinho e restaurantes da nova capital?

Nós, que habitamos o espaço cultural da cidade e vivemos além de Flusser, precisamos descobrir a criatividade artística pregada por ele. Para a nova capital ocorrem-me, de imediato, pelo menos três nomes no campo da produção literária: Cassiano Nunes, Chico Alvim e João Almino. Sem querer forçar qualquer paralelo com Werfel, Rilke e Kafka, trata-se de uma safra de novos talentos, que, longe de cultivarem uma literatura regionalista, levam temas universais do homem moderno para além das fronteiras de Brasília.

Focalizo o caso de João Almino, que desde 1987 tomou a cidade de Brasília como moldura e enredo de seus romances. Cabe lembrar ao leitor que seus livros foram divulgados em inúmeras edições do Correio Braziliense. (Vide ApArt do CB de 28/6/87; no Caderno Dois do CB de 30/8/94, 1/3 /98 e 18/4/99, mas também no Caderno Idéias do JB, no Folhetim e Mais da Folha e em jornais e revistas do México, de Lisboa e até mesmo da Califórnia/ EUA).

É uma trilogia composta de Idéias para onde passar o fim do mundo (1987), Samba-enredo (1994) e As Cinco estações de amor . Nos seus romances Almino introduz formas literárias surpreendentes e temas existenciais que brotam da condição urbana do homem moderno. Surpreendente é a figura do narrador, que no primeiro romance é um cineasta defunto à busca de um novo roteiro para o novo milênio; no segundo, um computador laptop, apaixonado por sua proprietária, que o jogara no lixo; no romance mais recente, a narradora é Ana, de 55 anos, professora aposentada da UnB, aliás, a mesma que no romance anterior jogara fora o seu computador. Nos três casos, Brasília é moldura e espelho para os personagens, que vivem na cidade e são habitados por ela. Seu denominador comum é a vivência de estarem inscritos na mesma capital planejada.

Outros romancistas hão de surgir, narrando Brasília, exprimindo sua narratividade. Todos eles terão de debater-se com esta cidade, que segundo Clarice Lispector é “cidade abstrata”, “traçada no ar”, “de beleza assustadora”, “de silêncio visual”, “o fracasso do mais espetacular sucesso do mundo. Brasília é uma estrela espatifada. É linda e nua. 0 despudoramento que se tem na solidão”.

BARBARA FREITAG É PROFESSORA PESQUISADORA DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Leia também, de Barbara Freitag, o ensaio O Mito da Megalópole na Literatura Brasileira, em que, a propósito do Rio, de São Paulo e de Brasília, comenta respectivamente A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, Não Verás País, de Ignacio de Loyola Brandão, e Samba-Enredo, de João Almino.

CORREIO BRAZIIENSE, Brasília, domingo, 10 de junho de 2001

Brasília tem todos os elementos que fizeram de praga capital cultural da europa e exibe todas as credenciais para tornar-se a capital cultural do brasil

POR BARBARA FREITAG

Quando uma cidade pode ser efetivamente chamada de cidade? Vilém Flusser (1913-1990), filósofo checo, que viveu 35 anos no Brasil, tem uma resposta unívoca. 0 título de cidade deve ser reservado àqueles centros urbanos em que estão integrados, em convívio harmônico, o espaço político, econômico e cultural. Na falta de um desses espaços, não nos movimentamos em uma verdadeira cidade e sim em um assentamento, em um mercado de troca de bens ou numa mera sede de governo. Flusser foi um grande admirador da “polis” grega, mas o modelo de cidade que está por detrás de sua definição não é Atenas e sim Praga, a cidade em que nasceu e morreu.

Em Praga o centro político confunde-se com o Castelo (Hrad) no alto do morro, abraçado pelo rio Moldau, no chamado “lado pequeno” (Mála Strana) da capital checa. O Castelo, por sua vez, cerca o espaço cultural no qual se ergue uma basílica romana (São George), uma catedral gótica (São Guido) e o grande palácio, célebre pela defenestração – no século XVI – de mensageiros jesuítas do imperador de Áustria. Extramuros, atravessando-se a Ponte Carlova, alcança-se a Praça (Stare Mesto), com seu famoso relógio, a prefeitura e as casas burguesas que cercam o antigo mercado livre da cidade.

Praga é para Flusser a encarnação de uma “verdadeira cidade”, que tem sua história, sua tradição e arquitetura próprias. A integração do espaço urbano com as etnias, a religião, a cultura literária e artística atingiu seu apogeu no entreguerras, i. é, nos anos 20 e 30. Nessa época aqui se deu o encontro entre as etnias eslava, semita e germânica, entre religiões como a pré-protestante de Jan Hus, a católica dos jesuítas e a judaica, bem como a mistura lingüística do alemão com o checo e iídiche, trazido pelos judeus que na Idade Média se assentaram no bairro de Josefov. A Praga do início do século XX não foi somente a capital da então Tcheco-Eslováquia, foi a capital cultural da Europa central. Nessa época, Rilke dedicou-lhe um álbum de poesias, Werfel concebia obras lidas e encenadas em Berlim e Viena, e Kafka recitava, no Café Slavia, trechos de seus romances.

Cabe agora perguntar se o que serviu de critério para considerar Praga uma “verdadeira cidade” também se aplicaria para Brasília. Em seu livro O Brasil ou a busca do novo ser humano (1994), Flusser dá uma resposta profética. Com Brasília foi criado um espaço urbano, no qual se desenvolverá o “homem novo”, capaz de integrar os “velhos códigos”, preservados do mundo europeu, com os “novos códigos”, baseados nas inovações tecnológicas da nova era digital. Esse fato já estaria concretizado no traçado urbano e nos monumentos criados pelos urbanistas e arquitetos Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. Segundo Flusser, sua fama corre o mundo por terem conseguido combinar em Brasília velhas formas do período colonial com “riscos” mais ousados que os de Gropius, Wright ou Van der Welde.

Flusser visitou Brasília em 1967, constatando que os idealizadores da cidade haviam previsto os espaços político, com a Praça dos Três Poderes, cultural, com a catedral e o teatro Villa-Lobos, e comercial com os conjuntos Nacional e Conic, refazendo, desse modo, o tripé no qual se assentaria uma “verdadeira cidade”. 0 filósofo checo também observou em Brasília a confluência de uma população vinda de todas as regiões do Brasil, os “candangos”, amálgama de três raças: a indígena, a africana e a branca. Sua linguagem, o “brasileiro”, constitui um sincretismo de velhas tradições lingüísticas: o português colonial arcaico (burocrático e empoeirado), que no entanto preservava a lógica discursiva da língua latina; o tupi-guarani, uma língua aglutinante de um povo autóctone ágrafo, e os vários idiomas africanos com estrutura lingüística “isolante”. Brasília tinha, pois, todos os elementos que fizeram de Praga uma capital cultural da Europa, tendo todas as credenciais para tornar-se a capital cultural do Brasil.

Para Flusser, o poder de inovação inerente à população brasileira refletia-se em sua criatividade artística e inventividade literária. Um Portinari e um Manabu Mabe haviam indicado o caminho para as artes plásticas. Um Guimarães Rosa, Drummond de Andrade, João Cabral foram exemplos no campo da literatura. Lúcio Costa e Oscar Niemeyer prepararam o terreno no espaço urbanístico e no campo da arquitetura. Flusser, cheio de otimismo, via no Brasil mais que um “país do futuro” ao estilo de Stefan Zweig. Tratava-se de uma nação inteira à busca do novo homem e de uma civilização, livre da carga negativa e sangrenta da Europa. (É preciso lembrar que Flusser era judeu e viu toda sua família vitimada em Auschwitz, depois de os nazistas anexarem os Sudetos e se instalarem em Praga).

Quais seriam, contudo, os poetas, ensaístas, romancistas brasilienses capazes de conferir a Brasília o estatuto de “cidade”? Onde estão os Kafkas, Rilkes, Werfels que animam os cafés, casas de vinho e restaurantes da nova capital?

Nós, que habitamos o espaço cultural da cidade e vivemos além de Flusser, precisamos descobrir a criatividade artística pregada por ele. Para a nova capital ocorrem-me, de imediato, pelo menos três nomes no campo da produção literária: Cassiano Nunes, Chico Alvim e João Almino. Sem querer forçar qualquer paralelo com Werfel, Rilke e Kafka, trata-se de uma safra de novos talentos, que, longe de cultivarem uma literatura regionalista, levam temas universais do homem moderno para além das fronteiras de Brasília.

Focalizo o caso de João Almino, que desde 1987 tomou a cidade de Brasília como moldura e enredo de seus romances. Cabe lembrar ao leitor que seus livros foram divulgados em inúmeras edições do Correio Braziliense. (Vide ApArt do CB de 28/6/87; no Caderno Dois do CB de 30/8/94, 1/3 /98 e 18/4/99, mas também no Caderno Idéias do JB, no Folhetim e Mais da Folha e em jornais e revistas do México, de Lisboa e até mesmo da Califórnia/ EUA).

É uma trilogia composta de Idéias para onde passar o fim do mundo (1987), Samba-enredo (1994) e As Cinco estações de amor . Nos seus romances Almino introduz formas literárias surpreendentes e temas existenciais que brotam da condição urbana do homem moderno. Surpreendente é a figura do narrador, que no primeiro romance é um cineasta defunto à busca de um novo roteiro para o novo milênio; no segundo, um computador laptop, apaixonado por sua proprietária, que o jogara no lixo; no romance mais recente, a narradora é Ana, de 55 anos, professora aposentada da UnB, aliás, a mesma que no romance anterior jogara fora o seu computador. Nos três casos, Brasília é moldura e espelho para os personagens, que vivem na cidade e são habitados por ela. Seu denominador comum é a vivência de estarem inscritos na mesma capital planejada.

Outros romancistas hão de surgir, narrando Brasília, exprimindo sua narratividade. Todos eles terão de debater-se com esta cidade, que segundo Clarice Lispector é “cidade abstrata”, “traçada no ar”, “de beleza assustadora”, “de silêncio visual”, “o fracasso do mais espetacular sucesso do mundo. Brasília é uma estrela espatifada. É linda e nua. 0 despudoramento que se tem na solidão”.

BARBARA FREITAG É PROFESSORA PESQUISADORA DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Leia também, de Barbara Freitag, o ensaio O Mito da Megalópole na Literatura Brasileira, em que, a propósito do Rio, de São Paulo e de Brasília, comenta respectivamente A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, Não Verás País, de Ignacio de Loyola Brandão, e Samba-Enredo, de João Almino.