
Samba-Enredo
Paulo Antônio tem de guiar-se pelo tato até a cadeira. Sobe nela e, sem hesitar, põe corajosamente o laço no pescoço. No momento de se jogar, fecha os olhos e algo de mágico ocorre.
Êxtase
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Paulo Antônio tem de guiar-se pelo tato até a cadeira. Sobe nela e, sem hesitar, põe corajosamente o laço no pescoço. No momento de se jogar, fecha os olhos e algo de mágico ocorre. É como se fosse mergulhar do topo de uma montanha sobre um fosso do imenso oceano, azul escuro, lá embaixo. Aquela situação estranha, o fato talvez de estar se despedindo da vida, o escuro absoluto, a chuva torrencial, os grilos, sapos e os chocalhos das vacas o transportavam completamente a um território longínquo, onde ele se tornava a essência de si mesmo. Era como se entendesse de repente – não em categorias do pensamento traduzíveis em palavras, mas de forma mais profunda – o sentido de sua vida, que o tornava finalmente pleno e realizado.
Com a corda no pescoço, sente-se desprotegido, criança, o barulho da chuva, na palha, ninando-o. É como se estivesse em Taimbé, o céu todo iluminando seus medos de trovão.
De repente, no escuro do quarto, uma lembrança lhe invade a alma. Como toda lembrança, chega-lhe sem aviso nem convite, como se tivesse vida própria. Ana é outra, reaparece, criança, chamando-o para brincar, dizendo-lhe que fique.
Ela vem à sua memória junto com o frio que o acordava, as batidas do relógio, a água respingando da telha em cima da cama na noite de temporal, o leite de curral tomado no copo gravado com peixinhos, a louca Pescada vociferando palavrões, a puta Elizete passando exuberante pela calçada, os pulos de alegria pela chegada do Rei dos Ratos, imundo, que vem pedir comida no alpendre da casa, sua irmã Eva namorando na rua de trás e implorando para que ele não contasse nada a ninguém, a multidão no comício da Praça do Progresso o sufocando, a metralhadora de brinquedo seduzindo, com suas faíscas, as meninas numa noite de Natal, os aviõezinhos de papel dando enormes curvas sobre as vigas, o medo do ladrão que, na casa do tio Humberto, descia por entre as telhas empunhando uma faca de doze polegadas, o inimigo que, do outro lado da linha, o xingava de «negro fresco» e ameaçava furá-lo com o canivete, os colegas chamando-o de «urubu», a vesperal de sábado no Ópera, seriado de Tarzan e filme de faroeste, o sino chamando para a missa, o domingo de sol no Passeio Público, Madrinha ninando-o na rede…
Desde que deixara Taimbé, no sertão de Minas, sempre quis vingar-se do menino do telefonema; trepar com Elizete, a puta do cabaré. E reencontrar Ana.
Ana vem à memória junto com a Taimbé de sua infância, passada entre pecados, festas de São João e os cordões carnavalescos.
Era tempo de amor, som dos primeiros roques. Ele gostava de ouvir o inglês que não entendia, já sabia o perigo de viver, quem sabe o anjo da guarda o carregava para lugar mais seguro. No corredor de mosaico azul escuro, sua mãe pintava porcelanas e ele percorria o desenho do assoalho, escadas que se entrelaçavam e mudavam de lugar segundo o sentido de sua distração. Ana tinha um macacão xadrez e brinquinhos brilhosos, uma pedra de rubi em cada orelha. Tramavam que queriam brincar de portas fechadas e ficavam nus, um tocando o sexo do outro.
Ninguém tinha ensinado o prazer que já sentiam. Ela, morena, meio gorduchinha, como as mulheres de que passou a gostar. Sorriam, riam, ele pegava entre as pernas dela, ela entre as dele. Depois ele não conseguia abotoar o macacão dela, ia com vergonha e medo pedir ajuda a sua mãe. Já sabiam do proibido e quase conheciam o pecado. Mas não havia culpa nem mágoa. Eram namorados – os adultos diziam, eles acreditavam.
Um dia, na brincadeira da Berlinda, uma das meninas o advertiu que ele ia para o inferno se não confessasse ao Padre Rafael o que Ana dizia que tinham feito. O céu não o atraía. Imaginava-o um pátio silencioso de convento, onde o sol filtrado pela bruma iluminava as barbas de homens amarelos e de vestes longas, como os da pintura da última ceia na parede da sala. Sem dúvida seria penoso passar a vida eterna convivendo com mulheres contemplativas, de olhares perdidos no infinito e mãos postas, como Nossa Senhora de Fátima. Ou com senhoras maternais, de mão pousada no coração, como a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro também pendurada na sala. Um lugar onde ele se sentiria mal ao cruzar com alguma Santa Luzia do oratório do quarto, que passearia expondo seus olhos numa bandeja.
Mas o inferno, com suas labaredas perpétuas, o ardor no corpo, seria bem pior. Por isso temera, naquela noite longíqua, que a morte o surpreendesse no sono, sem lhe dar tempo de se confessar. Assim, antes de dormir, fizera o possível para se salvar: oferecera sua alma a Deus e rezara ajoelhado um terço e o ato de contrição.
No domingo confessara seu pecado baixinho, para que Padre Rafael não ouvisse. Por vingança do Espírito Santo, na hora da comunhão uma migalha do corpo de Cristo caíra fora da bandeja. O resto ficara pregado no céu da boca e alguns resíduos divinos ainda vieram instalar-se entre os dentes.
Paulo Antônio queria reconstruir a brincadeira dos velhos tempos, quando, nas festas de São João, as meninas inventavam casamentos. Quando, como capitão do navio, ele bombardeava o navio inimigo. Ou então, como médico, curava o mal de Ana. Quando ela se fazia de morta para que ele a ressuscitasse. Quando ele se molhava com Ana nas bicas de chuva e os relâmpagos e trovões eram fogos de artifício. Aquele tempo de amor, quando ela se despia diante dele, sem as cortinas da poesia, só depois inventadas como lembranças dos primeiros sentimentos.
Ainda a um passo daquele oceano vazio e infinito, onde ondas azuis o engoliriam para sempre, Paulo Antônio já sente uma saudade imensa de sua própria vida. A imagem agora, que começa pequena, lá dentro da sua mente, e vai se ampliando a ponto de ocupar sua atenção, é a do final do cortejo fúnebre, ele saindo do caixão, vivo, o povo, surpreso, aplaudindo, ele sendo levado nos braços, fazendo o discurso definitivo, gente de toda parte assistindo, a bateria animando o Brasil unido…
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