Experiência Estética e Pulsão Utópica em Português. Jorge Maximino, Revista Lusografias, Lisboa, sobre As cinco estações do amor de João Almino e Passagem das horas de Álvaro de Campos

/

Revista “Lusografias”
Lisboa, Ano II, Numeros 2/3, Janeiro / Fevereiro / Março 2006

Jorge A. Maximino
(Investigador, Inst. Piaget e Univ. de Paris iv-Sorbonne)

A propósito de As cinco estações do amor de João Almino e de Passagem das horas de Álvaro de Campos

Temos casos consideráveis nas literaturas de Língua Portuguesa de uma tendência para abordagens díspares de temas utópicos ou do que neste breve estudo preferimos designar por pulsão utópica.

Sem pretendermos desenvolver de forma panorâmica este tema situando-o num período cronológico preciso, uma via provável, vamos fixar-nos em dois exemplos concretos, situados em épocas distintas: um texto de um heterónimo de Fernando Pessoa datado datado de 1916 e o romance As cinco estações do amor da trilogia de Brasília de João Almino publicado no Rio de Janeiro em 2001.

Partimos da noção clássica de utopia ( narrativa sobre uma sociedade ideal, perfeita, cuja acção decorre em local inexistente). Note-se desde já que as utopias colocam o enunciador, em termos da pragmática, num plano da máxima relevância: a distanciação, tanto espacial como temporal, do narrador face à sociedade.

Mas a narrativa utópica, contendo uma acção que decorre em local inexistente, coloca-nos também perante a evocação de um espaço e de um tempo imaginários.

Referimos aqui o conceito de imaginário na acepção que lhe dá Gilbert Durand, autor que integra nele o domínio da imaginação e o pensamento racional, exposto em diversas obras desde As estruturas antropológicas do imaginário até a Imaginação Simbólica, livro no qual sustenta, a propósito da supressão das sequelas da doutrina clássica que distingue o consciente racional dos outros fenómenos psíquicos e, em particular, das franjas subconscientes do imaginário, o seguinte:

Esta integração de toda a psique no seio de uma única actividade pode ser expressa de duas maneiras. Primeiro, pelo facto de que o sentido próprio ( que conduz ao conceito e ao signo adequado) é apenas um caso particular do sentido figurado, isto é, apenas um símbolo restrito. As sintaxes da razão são apenas formalizações extremas de uma retórica, ela própria embebida no consenso imaginário geral. Depois, de uma maneira mais precisa, não existe corte entre o racional e o imaginário, não sendo o racionalismo, entre outras coisas, mais do que uma estrutura polarizante particular do campo das imagens [1].

Este autor conclui deste modo que podemos “assimilar a totalidade do psiquismo ao imaginário” por um lado, sendo o pensamento “na sua totalidade integrado na função simbólica”, por outro. Por isso as práticas artísticas se inscrevem na construção da representação cultural, que partilha o espaço público em dois campos:

O do real das estruturas da sociedade (que corresponde ao campo político)

e o do simbólico da sua representação (que corresponde ao seu campo estético).

A significação das práticas artísticas sustenta-se, nestas condições, pela instauração de um ideal estético. Visto que, em suma, a arte constitui uma sublimação estética, a criação artística estará deste modo inscrita no quadro de significação de uma prática simbólica de comunicação, não havendo portanto criação artística que não seja portadora de um certo número de representações culturais, entre as quais se contam os ideais de sociabilidade e a noção de identidade.

No âmbito literário, a representação torna-se indissociável do poder de abstracção da própria língua, que não é mais do que uma abstracção generalizante da experiência humana.

Cito-vos a que a este respeito o que escreveu Claude Hagège em O Homem de palavras:

As línguas só são possíveis graças a uma ruptura das sua amarras, na condição de se tornarem um meio convencional de representação. Elas só asseguram a possessão discursiva do mundo porque em virtude da sua substância elas evacuam o mundo. (…) por isso as sociedades humanas fizeram das línguas sistemas paradoxais. Embora não cessem de se transformar ao longo dos tempos da História, são sistemas sem lugar nem idade, cujas manifestações sucessivas são ao mesmo tempo particularidades de um tempo e de um espaço. Esta dupla natureza que elas neutralizam pela sua própria existência contraditória, deu-lhes a forma de eminentes instrumentos de abstracção.[2]

É neste quadro que se apresenta a nossa proposta de leitura do que designaremos por pulsão utópica nos dois textos escolhidos: A passagem das horas de Álvaro de Campos de 1916 e os romance As cinco estações do amor de João Almino ( Publicado depois de Ideias para onde passar o fim do mundo, 1987 e Samba-enredo, 1994).

O nosso intuito é o de detectarmos no discurso de cada um dos textos a presença do elemento utópico, não no sentido de tema recorrente mas como elemento de tensão, como impulso ou injunção na sensibilidade do sujeito de enunciação e que participa da modernidade das mesmas obras em questão.

Considerando que este elemento inscreve estas obras

> numa dialéctica permanente dos espaços heterogéneos da mesma língua, que perpassa em imaginários diversos que testemunham a sua reinvenção, por um lado

(desde Vieira, Antero, João Guimarães Rosa);

> e num questionamento sobre o tempo e a sua representação, por outro.

É um questionamento a partir da pulsão utópica pelo facto de encontrarmos nestes textos sinais de um distanciamento e mesmo de recusa do presente (os princípios de construção do texto utópico), remetendo-nos assim para o cruzamento entre pensamento poético e pensamento político.

O modelo utópico é frequentemente associado a uma visão nostálgica da sociedade, como forma de regresso a um tempo primitivo, mítico, veiculado pelo imaginário do paraíso no discurso religioso.

Este modelo arquétipo de utopia, sendo uma imagem do eu colectivo, não é surpreendente que reapareça mesmo em obras das sociedades contemporâneas, expostas a um sentimento crónico de alienação do sentido da vida e confrontadas com a crise das identidades.

A imagem da cidade ideal, quer em termos de uma idade de ouro, quer de uma memória perdida, sempre foi objecto de reflexão, marcando a produção artística e filosófica universal. Obras que em muitos casos se tornaram um sério contributo no imaginário democrático moderno. Refiro-me particularmente à Cidade do Sol de T. Campanela e à Utopia de Thomas More particularmente.

Por isso se compreende o fascínio pelo conceito do “Bom selvagem” de Jean-Jacques Rousseau e outras obras mais recentes que alimentaram esse imaginário do passado mítico de uma sociedade justa e perfeita que o homem civilizado tem da sua comunhão mística com a natureza .

Ora, tanto em A passagem das horas de Álvaro de Campos como em As cinco estações do amor de João Almino, se coloca a questão da identidade ou da sua projecção na representação do tempo como imaginário utópico.

No caso do heterónimo de Pessoa, para lá da projecção heteronímica relevar de uma procura que vai nesse sentido, alguns dos heterónimos prolongam de certo modo esse mesmo questionamento. Isto é, multiplicam essa heteronimização.

Tal parece ser o caso de Álvaro de Campos, à luz da maioria dos textos por ele assinados.

No texto ” Passagem das horas” [3] que nos parece ilustrar bem esta ideia, encontramos as passagens seguintes (com indicação das páginas da edição brasileira):

“Não sei se a vida é pouco ou demais para mim” (p.276)

“Assim fico, fico… Eu sou o que sempre quer partir”

“Não sei sentir, não sei ser humano, conviver

/…/

Ter um lugar na vida, ter um destino entre os homens” (277)

Desconhecer o “sentir e ser humano e conviver” impõe de imediato o questionamento identitário de um sujeito de enunciação em ruínas, numa procura da Totalidade, para utilizarmos a terminologia de Y. Centeno[4].

O seu questionamento identitário é indissociável de uma visão cósmica, ou coincidente com a sua visão do cosmos.

Assim, podemos ler na página 281:

“Eu, poeta sensacionista enviado do Acaso

às leis irrepreensíveis da vida”

/…/

Eu, investigador solene das coisas fúteis” (p.281)

“Sinto na minha cabeça a velocidade do giro da terra,

E todos os países e todas as pessoas giram dentro de mim” (p.285)

Pessoa ortónimo não é alheio a essa ideia de Paraíso recriado pela mão do homem.

A procura nesse paraíso recriado toma o lugar de uma representação das qualidades da sociedade ideal como arquétipo da infância perdida da humanidade.

A pulsão utópica encontra-se na elaboração de várias imagens no texto Passagem das horas de Álvaro de Campos. Assiste-se a uma compressão do tempo, como se a realidade só pudesse ganhar sentido deslocando-se do presente para um tempo-outro que não é passado porque movimenta os seres e objectos.

Movimentos da “Passagem das horas”:

P280:

” Dormir como um cão corrido no caminho, ao sol,

Definitivamento para todo o resto do Universo

/…/

Fui para a cama com todos os sentimentos,

Fui souteneur de todas as emoções”

( Sabemos que este heterónimo de Pessoa é apresentado como um desempregado especial, ou espacial, visto “pertencer àquele grupo de portugueses que ficaram sem trabalho depois da Índia descoberta”. )

O texto discorre num vai-vém violento, com alterações frequentes no ritmo, em rupturas de pequenas pausas como de uma encruzilhada do sentido se tratasse, por onde os signos tivessem de passar continuamente. São os pólos de uma tensão narrativa que ganha contornos por vezes de discurso dramático pela vivacidade monologante do texto.

A tendência utópica na poética pessoana releva do questionamento que condiciona o próprio discurso heteronímico, que lhe está subjacente. Digamos que é algo que faz parte integrante dos próprios alicerces da sua obra.

Quanto ao texto de João Almino, note-se que já no romance precedente Samba-Enredo (o 2º livro da trilogia de Brasília), logo na abertura do livro deparamos com esta dedicatória: « Dedico às almas errantes e aos fragmentos de cérebro deslocados pelas pesadas massas do tempo e jogados no lixo do esquecimento”. Nele é também bastante significativo o narrador ser o próprio computador, que por essa razão nos apelida de “usuários” e não de leitores, declara na página 9 o seu propósito:

“Conto a você, usuário que me crê e consulta, mesmo sabendo que o meu ofício é viver do artifício, minha tentativa de manipular o passado com a ajuda de um fantasma.”[5]

Trata-se de um narrador sem sexo definido: “Prefiro mostrar-me feminina mas não tenho sexo.” .

Temos assim o mesmo questionamento sobre a representação do tempo como projecção do eu como ideal, transposto para o imaginário de Ana, protagonista do romance As Cinco Estações do Amor:

“Quero começar por algo extraordinário. Mas o que me aconteceu de extraordinário ? Sou apenas uma aposentada que, ainda por cima, se aposentou cedo de mais por causa da generosidade de um lei, e agora está mais pobre por causa da severidade de outra. Tive uma vida média. Média mesmo. Nada de emocionante, de pitoresco, engraçado, heróico. Nada de excitante. Nenhuma história de amor bem-sucedida. Nenhum desastre fantástico. Nenhuma tragédia capaz de comover. (…) Vivo minha vida como uma tragédia cotidiana, permanente, sem um fato que defina esta tragédia.” (op.cit: 46-47)

Nesta sua narrativa, terceira da trilogia de Brasília, João Almino remete-nos para uma visão auto-crítica da sociedade. Mas é só um dos vectores. A narrativa ocupa um espaço de recriação de um real em que perpassa uma tensão entre a auto-crítica e o elemento utópico. Estamos perante uma cidade contaminada de sinais utópicos. Mas é uma Brasília decadente, desfeita a ilusão dos que a ajudaram a crescer, se contradiz num momento social sob o signo do autoritarismo do regime militar como confessa Ana, a protagonista:

“As cidades adquirem o ar dos tempos por que passam. Brasília, que tinha sido promessa de socialismo e, para mim pessoalmente, de liberdade, não usava mais disfarse. A desolação de suas cidades-satélites já a asfixiava. Respirávamos vinte e quatro horas por dia o ar envenenado da ditadura militar. Até na sala de aula, olhávamos com desconfiança para os colegas recém-ingressos; um deles podia ser do SNI. Por isso dei razão a Helena.” (idem.,p.21)

Há uma metamorfose desde os anos sessenta que acompanha a geração dessa década que nasceu com a cidade, a mesma da pulsão utópica da geração do pós-Maio de 68 e que questiona o presente a partir da sua experiência, que é neste romance de João Almino próxima do grupo de personagens centrais que se auto-denomina Grupo dos Inúteis.

Mas, quer seja imagem da cidade ideal quer seja recriação, são projecções do inconsciente no mundo consciente tanto no poema de Campos como no romance de Almino. Surgem porque correspondem a uma necessidade, a pressões heteronímicas de auto-identificação no espaço ideal da existência como expressão do eu ou como via para um tempo imaginário, imagem unificadora dos dois mundos opostos da realidade psíquica: o consciente e o inconsciente.

Há nas duas obras uma contaminação excessiva do passado, com sujeitos do discurso entre fragmento e totalidade.

Na nota de apresentação do livro, Silviano Santiago escreveu:

Brasília só acolheu moradores e só ganhou vida depois de abandonada pelo planalto imaginário dos arquitectos. /…/ Com As cinco estações do amor (da trilogia de Brasília) João Almino define-se como o mais completo autor de Brasília. A materialidade da cidade-fantasma às avessas não está nas pranchetas ou no concreto; está no burburinho das vozes migrantes. Vozes dos trabalhadores excluídos para as cidades-satélites, dos aventureiros e desenraizados que, por vontade ou decreto, ali aportaram. Imagens instantâneas da revolução que não houve, do homem novo que devia ter sido, do fim do mundo que não chega.

A protagonista constrói a sua narrativa (as suas “memórias”) contra o peso da memória, com pessimismo, tomando a escrita como apagador do passado, destruindo todos os seus indícios escritos (jornais, livros, fotografias), confessando na página 54:

“Quero viver como num hipertexto que nunca pára de se construir, em que a escrita é um diálogo contínuo e infindável com a mente ou um contraponto da vida. Apagar todos os livros, para deixar brilhar, sozinho, o livro natural: aquele em que se acreditava em Yucatán, o que não foi escrito por ninguém que vai passando ele próprio suas páginas /…/ Minha revolução interior depende da coragem de ir compondo o texto, sempre no presente enquanto me desfaço dos papéis acumulados. Os papéis a menos aumentarão meu espaço de liberdade”.

A protagonista, que antes havia mostrado um pessimismo radical tanto no plano individual como colectivo:

“Minha juventude está perdida. A Brasília do meu sonho de futuro está morta reconheço-me nas fachadas de seus prédios precocemente envelhecidos, na sua modernidade precária e decadente.” (…)

“Espero, em suma, que uma nova paixão –cega, surpreendente e radical como toda paixão- me arrebate. É a revolução que aguardo.” (Idem.,p.)

A mesma protagonista fará viragem progressiva no seu comportamento em virtude de uma nova, tardia e improvável paixão, fora do tempo (a 5ª estação ), acabando por abandonar a sua intenção de suicidar-se. É portanto no campo dos afectos e do amor que se encontra a explicação para tal mudança de atitude, que integra o elemento utópico numa particular exaltação da vida e em contrapondo com os aspectos negativos, associados ao passado.

Já no momento em que a protagonista relata sobre essa mudança (.p.201)

“Sobrevivi ao hedonismo de minha juventude e à castidade de minha idade madura, a meu egoísmo heróico, à falta de dinheiro e de alegria, à minha depressão. E estou disposta a viver muito mais”

“Quero Carlos da forma como não sinto falta dele, o Carlos contra quem nem a morte, nem a angústia nem o nada podem; que é indestrutível e eterno.”

Considerando a marcha evolutiva da arte e a sua função civilizadora no progresso da humanidade, acredita-se que à passagem do tempo corresponde uma alteração positiva nos mais variados aspectos da vida quotidiana pela progressiva emancipação dos cidadãos. É o legado dos pensadores das Luzes neste processo de emancipação pela atribuição de uma finalidade ou sentido da História, a partir de uma noção do tempo próxima da noção escatológica ocidental (de raiz judaico-cristã) que ganhou consistência nas sociedades laicas através do Iluminismo.

Todo o esforço empreendido pelas sociedades ocidentais, a partir do Iluminismo, se dirige para esse objectivo, vivendo momentos de profundo optimismo, como são, por exemplo, aqueles apresentados pela euforia positivista, que traduzem a crença numa total racionalização da vida terrestre e no papel hegemónico e insubstituível do ser humano.

Voltando ao nosso campo de trabalho, deslocado o eixo da problematização utópica do universo da transformação social para o universo da transformação individual,

o que nos parece inovador em ambos os textos, são os sinais de um esboço para uma redefinição do conceito de utopia (através de uma síntese entre utopia e contra-utopia de forte enraizamento literário).

Sublinhe-se a congruência entre perspectiva existencial e perspectiva de ficção num horizonte estético, estabelecendo-se um equilíbrio entre racionalidade e sensibilidade.

No caso da narrativa de Almino, retirando a perspectiva do protagonista na problematização do tempo histórico e do tempo da história (da narrativa):

“Passei por um processo progressivo de auto-reclusão. Cercada de papéis me fechei no meu mundo.” (p.41).

“Não faço aqui uma narrativa das palavras que salvei, das que eliminei nem das que escrevi para substituir as que jogava fora. O essencial não está no diário que destruí nem no relato perdido mais tarde, mas sim no que conto agora.” (…). “Com as palavras que junto aqui, salvo o espírito do meu relato, que era só um desejo: este desejo de dizer o que penso no instante mesmo em que penso, o relato sendo só a realidade deste instante, nada mais” (p.199).

Parece-nos um desenvolvimento da dialéctica da negatividade (para utilizar o conceito de Adorno), em reacção a uma sociedade repressora do ser individual, apenas empenhada na compreensão racional deste como ser ser a-histórico e a-emocional.

Mas, paradoxalmente, também como espaço gerador de alternativas (personificadas pelo sujeito de enunciação nos dois textos), na realidade individual e histórica , sob o impulso do elemento utópico.

A dialéctica negativa sublinhe-se ainda, aparece também como sintoma do discurso da modernidade, pelas descontinuidades que instaura, não apenas na perspectiva de T. Adorno ( em cuja Teoria estética, profundamente marcada pelo marxismo, considera a significação da obra de arte imanente à produção, sendo a sua forma portadora de antagonismos da realidade social ), mas também na de Henri Meshonnic[6]:

A modernidade é uma descontinuidade (com o social, com o passado), na medida em que ela é o que acontece ao passado num ‘sujeito histórico no momento do perigo’. O presente sendo o tempo mais pleno de subjectividade onde se faz, ou seja se desfaz e se refaz sem cessar, o sentido. Essa negatividade, a mais banal e imemorial das coisas já que é de cada instante e vital para o presente. A modernidade não a inventou. Nem foi a primeira a ter dela a mais viva consciência. Outras linguagens diferentes o fizeram. Mas acreditar que nos pertence como a ninguém é a nossa ilusão constitutiva.

A arte surge aqui não só como imagem com capacidade de transformação do real (como afirmava Mondrian) mas para dar conta de uma totalidade do infinito do sentido e não mera conflagração do presente devorado pelo passado ou pelo futuro.

São imagens sobrepostas numa compressão do tempo de imaginários radicais (inspirada no princípio de construção utópica), pela experiência de liberdade (A Campos)

Configurando um nova definição do ideia utópica sob o impulso de uma experiência individual do tempo presente. (João Almino).

Em ambos a forte relação com o imaginário social opera uma síntese através de um equilíbrio entre racionalidade e sensibilidade, remetendo o leitor para a noção de um tempo trans-histórico.

O que de certo modo a protagonista deste livro de Almino explicita:

Ao contrário de Funes o Memorioso, o personagem de Borges que não esquecia nada e se lembrava de tudo, vou atravessar o meu Rio Lethes para esquecer tudo, para ter a liberdade de pensar e escrever espontaneamente, guiada só pelo desejo. Deixarei de lado o futuro, para não construir ilusões e nem prever desastres, o que, em vez de evitá-los, talvez os acelere. Quero captar o instante, começar do zero. Sem a carga do passado. Sem história, nem rumo. Apagar-me. Imobilizar-me. Condensar minha vida no instante, viver exclusivamente nele, dele, feito meu cachorro Rudolfo, aqui a meus pés. O presente instantâneo. Um instante que se prolonga, como numa figura borrada ou como quadro depois de quadro de um filme que não pára de rodar. Zero, o momento em que escrevo, a um passo do abismo e do paraíso. (Idem., pp.50-51).


[1] Gilbert Durand, A Imaginação Simbólica, Lisboa, Ed. 70, 1982,pp.74-75.

[2] Claude Hagège, L’homme de paroles, Calman-Lévi, pp.126-127

[3] Fernando Pessoa (1916),Rio de Janeiro, Ed Nova Aguilar, 1983.

[4] Y. Centeno, Fernando Pessoa. Tempo,solidão, hermetismo, Lisboa, Moraes, 1978.

[5] João Almino, Samba-Enredo, Ed Marco Zero,Rio de Janeiro,p.9.

[6] Henri Meshonnic, Modernité, Modernité, Albin Michel, Paris, pp.68-69.

Revista “Lusografias”
Lisboa, Ano II, Numeros 2/3, Janeiro / Fevereiro / Março 2006

Jorge A. Maximino
(Investigador, Inst. Piaget e Univ. de Paris iv-Sorbonne)

A propósito de As cinco estações do amor de João Almino e de Passagem das horas de Álvaro de Campos

Temos casos consideráveis nas literaturas de Língua Portuguesa de uma tendência para abordagens díspares de temas utópicos ou do que neste breve estudo preferimos designar por pulsão utópica.

Sem pretendermos desenvolver de forma panorâmica este tema situando-o num período cronológico preciso, uma via provável, vamos fixar-nos em dois exemplos concretos, situados em épocas distintas: um texto de um heterónimo de Fernando Pessoa datado datado de 1916 e o romance As cinco estações do amor da trilogia de Brasília de João Almino publicado no Rio de Janeiro em 2001.

Partimos da noção clássica de utopia ( narrativa sobre uma sociedade ideal, perfeita, cuja acção decorre em local inexistente). Note-se desde já que as utopias colocam o enunciador, em termos da pragmática, num plano da máxima relevância: a distanciação, tanto espacial como temporal, do narrador face à sociedade.

Mas a narrativa utópica, contendo uma acção que decorre em local inexistente, coloca-nos também perante a evocação de um espaço e de um tempo imaginários.

Referimos aqui o conceito de imaginário na acepção que lhe dá Gilbert Durand, autor que integra nele o domínio da imaginação e o pensamento racional, exposto em diversas obras desde As estruturas antropológicas do imaginário até a Imaginação Simbólica, livro no qual sustenta, a propósito da supressão das sequelas da doutrina clássica que distingue o consciente racional dos outros fenómenos psíquicos e, em particular, das franjas subconscientes do imaginário, o seguinte:

Esta integração de toda a psique no seio de uma única actividade pode ser expressa de duas maneiras. Primeiro, pelo facto de que o sentido próprio ( que conduz ao conceito e ao signo adequado) é apenas um caso particular do sentido figurado, isto é, apenas um símbolo restrito. As sintaxes da razão são apenas formalizações extremas de uma retórica, ela própria embebida no consenso imaginário geral. Depois, de uma maneira mais precisa, não existe corte entre o racional e o imaginário, não sendo o racionalismo, entre outras coisas, mais do que uma estrutura polarizante particular do campo das imagens [1].

Este autor conclui deste modo que podemos “assimilar a totalidade do psiquismo ao imaginário” por um lado, sendo o pensamento “na sua totalidade integrado na função simbólica”, por outro. Por isso as práticas artísticas se inscrevem na construção da representação cultural, que partilha o espaço público em dois campos:

O do real das estruturas da sociedade (que corresponde ao campo político)

e o do simbólico da sua representação (que corresponde ao seu campo estético).

A significação das práticas artísticas sustenta-se, nestas condições, pela instauração de um ideal estético. Visto que, em suma, a arte constitui uma sublimação estética, a criação artística estará deste modo inscrita no quadro de significação de uma prática simbólica de comunicação, não havendo portanto criação artística que não seja portadora de um certo número de representações culturais, entre as quais se contam os ideais de sociabilidade e a noção de identidade.

No âmbito literário, a representação torna-se indissociável do poder de abstracção da própria língua, que não é mais do que uma abstracção generalizante da experiência humana.

Cito-vos a que a este respeito o que escreveu Claude Hagège em O Homem de palavras:

As línguas só são possíveis graças a uma ruptura das sua amarras, na condição de se tornarem um meio convencional de representação. Elas só asseguram a possessão discursiva do mundo porque em virtude da sua substância elas evacuam o mundo. (…) por isso as sociedades humanas fizeram das línguas sistemas paradoxais. Embora não cessem de se transformar ao longo dos tempos da História, são sistemas sem lugar nem idade, cujas manifestações sucessivas são ao mesmo tempo particularidades de um tempo e de um espaço. Esta dupla natureza que elas neutralizam pela sua própria existência contraditória, deu-lhes a forma de eminentes instrumentos de abstracção.[2]

É neste quadro que se apresenta a nossa proposta de leitura do que designaremos por pulsão utópica nos dois textos escolhidos: A passagem das horas de Álvaro de Campos de 1916 e os romance As cinco estações do amor de João Almino ( Publicado depois de Ideias para onde passar o fim do mundo, 1987 e Samba-enredo, 1994).

O nosso intuito é o de detectarmos no discurso de cada um dos textos a presença do elemento utópico, não no sentido de tema recorrente mas como elemento de tensão, como impulso ou injunção na sensibilidade do sujeito de enunciação e que participa da modernidade das mesmas obras em questão.

Considerando que este elemento inscreve estas obras

> numa dialéctica permanente dos espaços heterogéneos da mesma língua, que perpassa em imaginários diversos que testemunham a sua reinvenção, por um lado

(desde Vieira, Antero, João Guimarães Rosa);

> e num questionamento sobre o tempo e a sua representação, por outro.

É um questionamento a partir da pulsão utópica pelo facto de encontrarmos nestes textos sinais de um distanciamento e mesmo de recusa do presente (os princípios de construção do texto utópico), remetendo-nos assim para o cruzamento entre pensamento poético e pensamento político.

O modelo utópico é frequentemente associado a uma visão nostálgica da sociedade, como forma de regresso a um tempo primitivo, mítico, veiculado pelo imaginário do paraíso no discurso religioso.

Este modelo arquétipo de utopia, sendo uma imagem do eu colectivo, não é surpreendente que reapareça mesmo em obras das sociedades contemporâneas, expostas a um sentimento crónico de alienação do sentido da vida e confrontadas com a crise das identidades.

A imagem da cidade ideal, quer em termos de uma idade de ouro, quer de uma memória perdida, sempre foi objecto de reflexão, marcando a produção artística e filosófica universal. Obras que em muitos casos se tornaram um sério contributo no imaginário democrático moderno. Refiro-me particularmente à Cidade do Sol de T. Campanela e à Utopia de Thomas More particularmente.

Por isso se compreende o fascínio pelo conceito do “Bom selvagem” de Jean-Jacques Rousseau e outras obras mais recentes que alimentaram esse imaginário do passado mítico de uma sociedade justa e perfeita que o homem civilizado tem da sua comunhão mística com a natureza .

Ora, tanto em A passagem das horas de Álvaro de Campos como em As cinco estações do amor de João Almino, se coloca a questão da identidade ou da sua projecção na representação do tempo como imaginário utópico.

No caso do heterónimo de Pessoa, para lá da projecção heteronímica relevar de uma procura que vai nesse sentido, alguns dos heterónimos prolongam de certo modo esse mesmo questionamento. Isto é, multiplicam essa heteronimização.

Tal parece ser o caso de Álvaro de Campos, à luz da maioria dos textos por ele assinados.

No texto ” Passagem das horas” [3] que nos parece ilustrar bem esta ideia, encontramos as passagens seguintes (com indicação das páginas da edição brasileira):

“Não sei se a vida é pouco ou demais para mim” (p.276)

“Assim fico, fico… Eu sou o que sempre quer partir”

“Não sei sentir, não sei ser humano, conviver

/…/

Ter um lugar na vida, ter um destino entre os homens” (277)

Desconhecer o “sentir e ser humano e conviver” impõe de imediato o questionamento identitário de um sujeito de enunciação em ruínas, numa procura da Totalidade, para utilizarmos a terminologia de Y. Centeno[4].

O seu questionamento identitário é indissociável de uma visão cósmica, ou coincidente com a sua visão do cosmos.

Assim, podemos ler na página 281:

“Eu, poeta sensacionista enviado do Acaso

às leis irrepreensíveis da vida”

/…/

Eu, investigador solene das coisas fúteis” (p.281)

“Sinto na minha cabeça a velocidade do giro da terra,

E todos os países e todas as pessoas giram dentro de mim” (p.285)

Pessoa ortónimo não é alheio a essa ideia de Paraíso recriado pela mão do homem.

A procura nesse paraíso recriado toma o lugar de uma representação das qualidades da sociedade ideal como arquétipo da infância perdida da humanidade.

A pulsão utópica encontra-se na elaboração de várias imagens no texto Passagem das horas de Álvaro de Campos. Assiste-se a uma compressão do tempo, como se a realidade só pudesse ganhar sentido deslocando-se do presente para um tempo-outro que não é passado porque movimenta os seres e objectos.

Movimentos da “Passagem das horas”:

P280:

” Dormir como um cão corrido no caminho, ao sol,

Definitivamento para todo o resto do Universo

/…/

Fui para a cama com todos os sentimentos,

Fui souteneur de todas as emoções”

( Sabemos que este heterónimo de Pessoa é apresentado como um desempregado especial, ou espacial, visto “pertencer àquele grupo de portugueses que ficaram sem trabalho depois da Índia descoberta”. )

O texto discorre num vai-vém violento, com alterações frequentes no ritmo, em rupturas de pequenas pausas como de uma encruzilhada do sentido se tratasse, por onde os signos tivessem de passar continuamente. São os pólos de uma tensão narrativa que ganha contornos por vezes de discurso dramático pela vivacidade monologante do texto.

A tendência utópica na poética pessoana releva do questionamento que condiciona o próprio discurso heteronímico, que lhe está subjacente. Digamos que é algo que faz parte integrante dos próprios alicerces da sua obra.

Quanto ao texto de João Almino, note-se que já no romance precedente Samba-Enredo (o 2º livro da trilogia de Brasília), logo na abertura do livro deparamos com esta dedicatória: « Dedico às almas errantes e aos fragmentos de cérebro deslocados pelas pesadas massas do tempo e jogados no lixo do esquecimento”. Nele é também bastante significativo o narrador ser o próprio computador, que por essa razão nos apelida de “usuários” e não de leitores, declara na página 9 o seu propósito:

“Conto a você, usuário que me crê e consulta, mesmo sabendo que o meu ofício é viver do artifício, minha tentativa de manipular o passado com a ajuda de um fantasma.”[5]

Trata-se de um narrador sem sexo definido: “Prefiro mostrar-me feminina mas não tenho sexo.” .

Temos assim o mesmo questionamento sobre a representação do tempo como projecção do eu como ideal, transposto para o imaginário de Ana, protagonista do romance As Cinco Estações do Amor:

“Quero começar por algo extraordinário. Mas o que me aconteceu de extraordinário ? Sou apenas uma aposentada que, ainda por cima, se aposentou cedo de mais por causa da generosidade de um lei, e agora está mais pobre por causa da severidade de outra. Tive uma vida média. Média mesmo. Nada de emocionante, de pitoresco, engraçado, heróico. Nada de excitante. Nenhuma história de amor bem-sucedida. Nenhum desastre fantástico. Nenhuma tragédia capaz de comover. (…) Vivo minha vida como uma tragédia cotidiana, permanente, sem um fato que defina esta tragédia.” (op.cit: 46-47)

Nesta sua narrativa, terceira da trilogia de Brasília, João Almino remete-nos para uma visão auto-crítica da sociedade. Mas é só um dos vectores. A narrativa ocupa um espaço de recriação de um real em que perpassa uma tensão entre a auto-crítica e o elemento utópico. Estamos perante uma cidade contaminada de sinais utópicos. Mas é uma Brasília decadente, desfeita a ilusão dos que a ajudaram a crescer, se contradiz num momento social sob o signo do autoritarismo do regime militar como confessa Ana, a protagonista:

“As cidades adquirem o ar dos tempos por que passam. Brasília, que tinha sido promessa de socialismo e, para mim pessoalmente, de liberdade, não usava mais disfarse. A desolação de suas cidades-satélites já a asfixiava. Respirávamos vinte e quatro horas por dia o ar envenenado da ditadura militar. Até na sala de aula, olhávamos com desconfiança para os colegas recém-ingressos; um deles podia ser do SNI. Por isso dei razão a Helena.” (idem.,p.21)

Há uma metamorfose desde os anos sessenta que acompanha a geração dessa década que nasceu com a cidade, a mesma da pulsão utópica da geração do pós-Maio de 68 e que questiona o presente a partir da sua experiência, que é neste romance de João Almino próxima do grupo de personagens centrais que se auto-denomina Grupo dos Inúteis.

Mas, quer seja imagem da cidade ideal quer seja recriação, são projecções do inconsciente no mundo consciente tanto no poema de Campos como no romance de Almino. Surgem porque correspondem a uma necessidade, a pressões heteronímicas de auto-identificação no espaço ideal da existência como expressão do eu ou como via para um tempo imaginário, imagem unificadora dos dois mundos opostos da realidade psíquica: o consciente e o inconsciente.

Há nas duas obras uma contaminação excessiva do passado, com sujeitos do discurso entre fragmento e totalidade.

Na nota de apresentação do livro, Silviano Santiago escreveu:

Brasília só acolheu moradores e só ganhou vida depois de abandonada pelo planalto imaginário dos arquitectos. /…/ Com As cinco estações do amor (da trilogia de Brasília) João Almino define-se como o mais completo autor de Brasília. A materialidade da cidade-fantasma às avessas não está nas pranchetas ou no concreto; está no burburinho das vozes migrantes. Vozes dos trabalhadores excluídos para as cidades-satélites, dos aventureiros e desenraizados que, por vontade ou decreto, ali aportaram. Imagens instantâneas da revolução que não houve, do homem novo que devia ter sido, do fim do mundo que não chega.

A protagonista constrói a sua narrativa (as suas “memórias”) contra o peso da memória, com pessimismo, tomando a escrita como apagador do passado, destruindo todos os seus indícios escritos (jornais, livros, fotografias), confessando na página 54:

“Quero viver como num hipertexto que nunca pára de se construir, em que a escrita é um diálogo contínuo e infindável com a mente ou um contraponto da vida. Apagar todos os livros, para deixar brilhar, sozinho, o livro natural: aquele em que se acreditava em Yucatán, o que não foi escrito por ninguém que vai passando ele próprio suas páginas /…/ Minha revolução interior depende da coragem de ir compondo o texto, sempre no presente enquanto me desfaço dos papéis acumulados. Os papéis a menos aumentarão meu espaço de liberdade”.

A protagonista, que antes havia mostrado um pessimismo radical tanto no plano individual como colectivo:

“Minha juventude está perdida. A Brasília do meu sonho de futuro está morta reconheço-me nas fachadas de seus prédios precocemente envelhecidos, na sua modernidade precária e decadente.” (…)

“Espero, em suma, que uma nova paixão –cega, surpreendente e radical como toda paixão- me arrebate. É a revolução que aguardo.” (Idem.,p.)

A mesma protagonista fará viragem progressiva no seu comportamento em virtude de uma nova, tardia e improvável paixão, fora do tempo (a 5ª estação ), acabando por abandonar a sua intenção de suicidar-se. É portanto no campo dos afectos e do amor que se encontra a explicação para tal mudança de atitude, que integra o elemento utópico numa particular exaltação da vida e em contrapondo com os aspectos negativos, associados ao passado.

Já no momento em que a protagonista relata sobre essa mudança (.p.201)

“Sobrevivi ao hedonismo de minha juventude e à castidade de minha idade madura, a meu egoísmo heróico, à falta de dinheiro e de alegria, à minha depressão. E estou disposta a viver muito mais”

“Quero Carlos da forma como não sinto falta dele, o Carlos contra quem nem a morte, nem a angústia nem o nada podem; que é indestrutível e eterno.”

Considerando a marcha evolutiva da arte e a sua função civilizadora no progresso da humanidade, acredita-se que à passagem do tempo corresponde uma alteração positiva nos mais variados aspectos da vida quotidiana pela progressiva emancipação dos cidadãos. É o legado dos pensadores das Luzes neste processo de emancipação pela atribuição de uma finalidade ou sentido da História, a partir de uma noção do tempo próxima da noção escatológica ocidental (de raiz judaico-cristã) que ganhou consistência nas sociedades laicas através do Iluminismo.

Todo o esforço empreendido pelas sociedades ocidentais, a partir do Iluminismo, se dirige para esse objectivo, vivendo momentos de profundo optimismo, como são, por exemplo, aqueles apresentados pela euforia positivista, que traduzem a crença numa total racionalização da vida terrestre e no papel hegemónico e insubstituível do ser humano.

Voltando ao nosso campo de trabalho, deslocado o eixo da problematização utópica do universo da transformação social para o universo da transformação individual,

o que nos parece inovador em ambos os textos, são os sinais de um esboço para uma redefinição do conceito de utopia (através de uma síntese entre utopia e contra-utopia de forte enraizamento literário).

Sublinhe-se a congruência entre perspectiva existencial e perspectiva de ficção num horizonte estético, estabelecendo-se um equilíbrio entre racionalidade e sensibilidade.

No caso da narrativa de Almino, retirando a perspectiva do protagonista na problematização do tempo histórico e do tempo da história (da narrativa):

“Passei por um processo progressivo de auto-reclusão. Cercada de papéis me fechei no meu mundo.” (p.41).

“Não faço aqui uma narrativa das palavras que salvei, das que eliminei nem das que escrevi para substituir as que jogava fora. O essencial não está no diário que destruí nem no relato perdido mais tarde, mas sim no que conto agora.” (…). “Com as palavras que junto aqui, salvo o espírito do meu relato, que era só um desejo: este desejo de dizer o que penso no instante mesmo em que penso, o relato sendo só a realidade deste instante, nada mais” (p.199).

Parece-nos um desenvolvimento da dialéctica da negatividade (para utilizar o conceito de Adorno), em reacção a uma sociedade repressora do ser individual, apenas empenhada na compreensão racional deste como ser ser a-histórico e a-emocional.

Mas, paradoxalmente, também como espaço gerador de alternativas (personificadas pelo sujeito de enunciação nos dois textos), na realidade individual e histórica , sob o impulso do elemento utópico.

A dialéctica negativa sublinhe-se ainda, aparece também como sintoma do discurso da modernidade, pelas descontinuidades que instaura, não apenas na perspectiva de T. Adorno ( em cuja Teoria estética, profundamente marcada pelo marxismo, considera a significação da obra de arte imanente à produção, sendo a sua forma portadora de antagonismos da realidade social ), mas também na de Henri Meshonnic[6]:

A modernidade é uma descontinuidade (com o social, com o passado), na medida em que ela é o que acontece ao passado num ‘sujeito histórico no momento do perigo’. O presente sendo o tempo mais pleno de subjectividade onde se faz, ou seja se desfaz e se refaz sem cessar, o sentido. Essa negatividade, a mais banal e imemorial das coisas já que é de cada instante e vital para o presente. A modernidade não a inventou. Nem foi a primeira a ter dela a mais viva consciência. Outras linguagens diferentes o fizeram. Mas acreditar que nos pertence como a ninguém é a nossa ilusão constitutiva.

A arte surge aqui não só como imagem com capacidade de transformação do real (como afirmava Mondrian) mas para dar conta de uma totalidade do infinito do sentido e não mera conflagração do presente devorado pelo passado ou pelo futuro.

São imagens sobrepostas numa compressão do tempo de imaginários radicais (inspirada no princípio de construção utópica), pela experiência de liberdade (A Campos)

Configurando um nova definição do ideia utópica sob o impulso de uma experiência individual do tempo presente. (João Almino).

Em ambos a forte relação com o imaginário social opera uma síntese através de um equilíbrio entre racionalidade e sensibilidade, remetendo o leitor para a noção de um tempo trans-histórico.

O que de certo modo a protagonista deste livro de Almino explicita:

Ao contrário de Funes o Memorioso, o personagem de Borges que não esquecia nada e se lembrava de tudo, vou atravessar o meu Rio Lethes para esquecer tudo, para ter a liberdade de pensar e escrever espontaneamente, guiada só pelo desejo. Deixarei de lado o futuro, para não construir ilusões e nem prever desastres, o que, em vez de evitá-los, talvez os acelere. Quero captar o instante, começar do zero. Sem a carga do passado. Sem história, nem rumo. Apagar-me. Imobilizar-me. Condensar minha vida no instante, viver exclusivamente nele, dele, feito meu cachorro Rudolfo, aqui a meus pés. O presente instantâneo. Um instante que se prolonga, como numa figura borrada ou como quadro depois de quadro de um filme que não pára de rodar. Zero, o momento em que escrevo, a um passo do abismo e do paraíso. (Idem., pp.50-51).


[1] Gilbert Durand, A Imaginação Simbólica, Lisboa, Ed. 70, 1982,pp.74-75.

[2] Claude Hagège, L’homme de paroles, Calman-Lévi, pp.126-127

[3] Fernando Pessoa (1916),Rio de Janeiro, Ed Nova Aguilar, 1983.

[4] Y. Centeno, Fernando Pessoa. Tempo,solidão, hermetismo, Lisboa, Moraes, 1978.

[5] João Almino, Samba-Enredo, Ed Marco Zero,Rio de Janeiro,p.9.

[6] Henri Meshonnic, Modernité, Modernité, Albin Michel, Paris, pp.68-69.

Revista “Lusografias”
Lisboa, Ano II, Numeros 2/3, Janeiro / Fevereiro / Março 2006

Jorge A. Maximino
(Investigador, Inst. Piaget e Univ. de Paris iv-Sorbonne)

A propósito de As cinco estações do amor de João Almino e de Passagem das horas de Álvaro de Campos

Temos casos consideráveis nas literaturas de Língua Portuguesa de uma tendência para abordagens díspares de temas utópicos ou do que neste breve estudo preferimos designar por pulsão utópica.

Sem pretendermos desenvolver de forma panorâmica este tema situando-o num período cronológico preciso, uma via provável, vamos fixar-nos em dois exemplos concretos, situados em épocas distintas: um texto de um heterónimo de Fernando Pessoa datado datado de 1916 e o romance As cinco estações do amor da trilogia de Brasília de João Almino publicado no Rio de Janeiro em 2001.

Partimos da noção clássica de utopia ( narrativa sobre uma sociedade ideal, perfeita, cuja acção decorre em local inexistente). Note-se desde já que as utopias colocam o enunciador, em termos da pragmática, num plano da máxima relevância: a distanciação, tanto espacial como temporal, do narrador face à sociedade.

Mas a narrativa utópica, contendo uma acção que decorre em local inexistente, coloca-nos também perante a evocação de um espaço e de um tempo imaginários.

Referimos aqui o conceito de imaginário na acepção que lhe dá Gilbert Durand, autor que integra nele o domínio da imaginação e o pensamento racional, exposto em diversas obras desde As estruturas antropológicas do imaginário até a Imaginação Simbólica, livro no qual sustenta, a propósito da supressão das sequelas da doutrina clássica que distingue o consciente racional dos outros fenómenos psíquicos e, em particular, das franjas subconscientes do imaginário, o seguinte:

Esta integração de toda a psique no seio de uma única actividade pode ser expressa de duas maneiras. Primeiro, pelo facto de que o sentido próprio ( que conduz ao conceito e ao signo adequado) é apenas um caso particular do sentido figurado, isto é, apenas um símbolo restrito. As sintaxes da razão são apenas formalizações extremas de uma retórica, ela própria embebida no consenso imaginário geral. Depois, de uma maneira mais precisa, não existe corte entre o racional e o imaginário, não sendo o racionalismo, entre outras coisas, mais do que uma estrutura polarizante particular do campo das imagens [1].

Este autor conclui deste modo que podemos “assimilar a totalidade do psiquismo ao imaginário” por um lado, sendo o pensamento “na sua totalidade integrado na função simbólica”, por outro. Por isso as práticas artísticas se inscrevem na construção da representação cultural, que partilha o espaço público em dois campos:

O do real das estruturas da sociedade (que corresponde ao campo político)

e o do simbólico da sua representação (que corresponde ao seu campo estético).

A significação das práticas artísticas sustenta-se, nestas condições, pela instauração de um ideal estético. Visto que, em suma, a arte constitui uma sublimação estética, a criação artística estará deste modo inscrita no quadro de significação de uma prática simbólica de comunicação, não havendo portanto criação artística que não seja portadora de um certo número de representações culturais, entre as quais se contam os ideais de sociabilidade e a noção de identidade.

No âmbito literário, a representação torna-se indissociável do poder de abstracção da própria língua, que não é mais do que uma abstracção generalizante da experiência humana.

Cito-vos a que a este respeito o que escreveu Claude Hagège em O Homem de palavras:

As línguas só são possíveis graças a uma ruptura das sua amarras, na condição de se tornarem um meio convencional de representação. Elas só asseguram a possessão discursiva do mundo porque em virtude da sua substância elas evacuam o mundo. (…) por isso as sociedades humanas fizeram das línguas sistemas paradoxais. Embora não cessem de se transformar ao longo dos tempos da História, são sistemas sem lugar nem idade, cujas manifestações sucessivas são ao mesmo tempo particularidades de um tempo e de um espaço. Esta dupla natureza que elas neutralizam pela sua própria existência contraditória, deu-lhes a forma de eminentes instrumentos de abstracção.[2]

É neste quadro que se apresenta a nossa proposta de leitura do que designaremos por pulsão utópica nos dois textos escolhidos: A passagem das horas de Álvaro de Campos de 1916 e os romance As cinco estações do amor de João Almino ( Publicado depois de Ideias para onde passar o fim do mundo, 1987 e Samba-enredo, 1994).

O nosso intuito é o de detectarmos no discurso de cada um dos textos a presença do elemento utópico, não no sentido de tema recorrente mas como elemento de tensão, como impulso ou injunção na sensibilidade do sujeito de enunciação e que participa da modernidade das mesmas obras em questão.

Considerando que este elemento inscreve estas obras

> numa dialéctica permanente dos espaços heterogéneos da mesma língua, que perpassa em imaginários diversos que testemunham a sua reinvenção, por um lado

(desde Vieira, Antero, João Guimarães Rosa);

> e num questionamento sobre o tempo e a sua representação, por outro.

É um questionamento a partir da pulsão utópica pelo facto de encontrarmos nestes textos sinais de um distanciamento e mesmo de recusa do presente (os princípios de construção do texto utópico), remetendo-nos assim para o cruzamento entre pensamento poético e pensamento político.

O modelo utópico é frequentemente associado a uma visão nostálgica da sociedade, como forma de regresso a um tempo primitivo, mítico, veiculado pelo imaginário do paraíso no discurso religioso.

Este modelo arquétipo de utopia, sendo uma imagem do eu colectivo, não é surpreendente que reapareça mesmo em obras das sociedades contemporâneas, expostas a um sentimento crónico de alienação do sentido da vida e confrontadas com a crise das identidades.

A imagem da cidade ideal, quer em termos de uma idade de ouro, quer de uma memória perdida, sempre foi objecto de reflexão, marcando a produção artística e filosófica universal. Obras que em muitos casos se tornaram um sério contributo no imaginário democrático moderno. Refiro-me particularmente à Cidade do Sol de T. Campanela e à Utopia de Thomas More particularmente.

Por isso se compreende o fascínio pelo conceito do “Bom selvagem” de Jean-Jacques Rousseau e outras obras mais recentes que alimentaram esse imaginário do passado mítico de uma sociedade justa e perfeita que o homem civilizado tem da sua comunhão mística com a natureza .

Ora, tanto em A passagem das horas de Álvaro de Campos como em As cinco estações do amor de João Almino, se coloca a questão da identidade ou da sua projecção na representação do tempo como imaginário utópico.

No caso do heterónimo de Pessoa, para lá da projecção heteronímica relevar de uma procura que vai nesse sentido, alguns dos heterónimos prolongam de certo modo esse mesmo questionamento. Isto é, multiplicam essa heteronimização.

Tal parece ser o caso de Álvaro de Campos, à luz da maioria dos textos por ele assinados.

No texto ” Passagem das horas” [3] que nos parece ilustrar bem esta ideia, encontramos as passagens seguintes (com indicação das páginas da edição brasileira):

“Não sei se a vida é pouco ou demais para mim” (p.276)

“Assim fico, fico… Eu sou o que sempre quer partir”

“Não sei sentir, não sei ser humano, conviver

/…/

Ter um lugar na vida, ter um destino entre os homens” (277)

Desconhecer o “sentir e ser humano e conviver” impõe de imediato o questionamento identitário de um sujeito de enunciação em ruínas, numa procura da Totalidade, para utilizarmos a terminologia de Y. Centeno[4].

O seu questionamento identitário é indissociável de uma visão cósmica, ou coincidente com a sua visão do cosmos.

Assim, podemos ler na página 281:

“Eu, poeta sensacionista enviado do Acaso

às leis irrepreensíveis da vida”

/…/

Eu, investigador solene das coisas fúteis” (p.281)

“Sinto na minha cabeça a velocidade do giro da terra,

E todos os países e todas as pessoas giram dentro de mim” (p.285)

Pessoa ortónimo não é alheio a essa ideia de Paraíso recriado pela mão do homem.

A procura nesse paraíso recriado toma o lugar de uma representação das qualidades da sociedade ideal como arquétipo da infância perdida da humanidade.

A pulsão utópica encontra-se na elaboração de várias imagens no texto Passagem das horas de Álvaro de Campos. Assiste-se a uma compressão do tempo, como se a realidade só pudesse ganhar sentido deslocando-se do presente para um tempo-outro que não é passado porque movimenta os seres e objectos.

Movimentos da “Passagem das horas”:

P280:

” Dormir como um cão corrido no caminho, ao sol,

Definitivamento para todo o resto do Universo

/…/

Fui para a cama com todos os sentimentos,

Fui souteneur de todas as emoções”

( Sabemos que este heterónimo de Pessoa é apresentado como um desempregado especial, ou espacial, visto “pertencer àquele grupo de portugueses que ficaram sem trabalho depois da Índia descoberta”. )

O texto discorre num vai-vém violento, com alterações frequentes no ritmo, em rupturas de pequenas pausas como de uma encruzilhada do sentido se tratasse, por onde os signos tivessem de passar continuamente. São os pólos de uma tensão narrativa que ganha contornos por vezes de discurso dramático pela vivacidade monologante do texto.

A tendência utópica na poética pessoana releva do questionamento que condiciona o próprio discurso heteronímico, que lhe está subjacente. Digamos que é algo que faz parte integrante dos próprios alicerces da sua obra.

Quanto ao texto de João Almino, note-se que já no romance precedente Samba-Enredo (o 2º livro da trilogia de Brasília), logo na abertura do livro deparamos com esta dedicatória: « Dedico às almas errantes e aos fragmentos de cérebro deslocados pelas pesadas massas do tempo e jogados no lixo do esquecimento”. Nele é também bastante significativo o narrador ser o próprio computador, que por essa razão nos apelida de “usuários” e não de leitores, declara na página 9 o seu propósito:

“Conto a você, usuário que me crê e consulta, mesmo sabendo que o meu ofício é viver do artifício, minha tentativa de manipular o passado com a ajuda de um fantasma.”[5]

Trata-se de um narrador sem sexo definido: “Prefiro mostrar-me feminina mas não tenho sexo.” .

Temos assim o mesmo questionamento sobre a representação do tempo como projecção do eu como ideal, transposto para o imaginário de Ana, protagonista do romance As Cinco Estações do Amor:

“Quero começar por algo extraordinário. Mas o que me aconteceu de extraordinário ? Sou apenas uma aposentada que, ainda por cima, se aposentou cedo de mais por causa da generosidade de um lei, e agora está mais pobre por causa da severidade de outra. Tive uma vida média. Média mesmo. Nada de emocionante, de pitoresco, engraçado, heróico. Nada de excitante. Nenhuma história de amor bem-sucedida. Nenhum desastre fantástico. Nenhuma tragédia capaz de comover. (…) Vivo minha vida como uma tragédia cotidiana, permanente, sem um fato que defina esta tragédia.” (op.cit: 46-47)

Nesta sua narrativa, terceira da trilogia de Brasília, João Almino remete-nos para uma visão auto-crítica da sociedade. Mas é só um dos vectores. A narrativa ocupa um espaço de recriação de um real em que perpassa uma tensão entre a auto-crítica e o elemento utópico. Estamos perante uma cidade contaminada de sinais utópicos. Mas é uma Brasília decadente, desfeita a ilusão dos que a ajudaram a crescer, se contradiz num momento social sob o signo do autoritarismo do regime militar como confessa Ana, a protagonista:

“As cidades adquirem o ar dos tempos por que passam. Brasília, que tinha sido promessa de socialismo e, para mim pessoalmente, de liberdade, não usava mais disfarse. A desolação de suas cidades-satélites já a asfixiava. Respirávamos vinte e quatro horas por dia o ar envenenado da ditadura militar. Até na sala de aula, olhávamos com desconfiança para os colegas recém-ingressos; um deles podia ser do SNI. Por isso dei razão a Helena.” (idem.,p.21)

Há uma metamorfose desde os anos sessenta que acompanha a geração dessa década que nasceu com a cidade, a mesma da pulsão utópica da geração do pós-Maio de 68 e que questiona o presente a partir da sua experiência, que é neste romance de João Almino próxima do grupo de personagens centrais que se auto-denomina Grupo dos Inúteis.

Mas, quer seja imagem da cidade ideal quer seja recriação, são projecções do inconsciente no mundo consciente tanto no poema de Campos como no romance de Almino. Surgem porque correspondem a uma necessidade, a pressões heteronímicas de auto-identificação no espaço ideal da existência como expressão do eu ou como via para um tempo imaginário, imagem unificadora dos dois mundos opostos da realidade psíquica: o consciente e o inconsciente.

Há nas duas obras uma contaminação excessiva do passado, com sujeitos do discurso entre fragmento e totalidade.

Na nota de apresentação do livro, Silviano Santiago escreveu:

Brasília só acolheu moradores e só ganhou vida depois de abandonada pelo planalto imaginário dos arquitectos. /…/ Com As cinco estações do amor (da trilogia de Brasília) João Almino define-se como o mais completo autor de Brasília. A materialidade da cidade-fantasma às avessas não está nas pranchetas ou no concreto; está no burburinho das vozes migrantes. Vozes dos trabalhadores excluídos para as cidades-satélites, dos aventureiros e desenraizados que, por vontade ou decreto, ali aportaram. Imagens instantâneas da revolução que não houve, do homem novo que devia ter sido, do fim do mundo que não chega.

A protagonista constrói a sua narrativa (as suas “memórias”) contra o peso da memória, com pessimismo, tomando a escrita como apagador do passado, destruindo todos os seus indícios escritos (jornais, livros, fotografias), confessando na página 54:

“Quero viver como num hipertexto que nunca pára de se construir, em que a escrita é um diálogo contínuo e infindável com a mente ou um contraponto da vida. Apagar todos os livros, para deixar brilhar, sozinho, o livro natural: aquele em que se acreditava em Yucatán, o que não foi escrito por ninguém que vai passando ele próprio suas páginas /…/ Minha revolução interior depende da coragem de ir compondo o texto, sempre no presente enquanto me desfaço dos papéis acumulados. Os papéis a menos aumentarão meu espaço de liberdade”.

A protagonista, que antes havia mostrado um pessimismo radical tanto no plano individual como colectivo:

“Minha juventude está perdida. A Brasília do meu sonho de futuro está morta reconheço-me nas fachadas de seus prédios precocemente envelhecidos, na sua modernidade precária e decadente.” (…)

“Espero, em suma, que uma nova paixão –cega, surpreendente e radical como toda paixão- me arrebate. É a revolução que aguardo.” (Idem.,p.)

A mesma protagonista fará viragem progressiva no seu comportamento em virtude de uma nova, tardia e improvável paixão, fora do tempo (a 5ª estação ), acabando por abandonar a sua intenção de suicidar-se. É portanto no campo dos afectos e do amor que se encontra a explicação para tal mudança de atitude, que integra o elemento utópico numa particular exaltação da vida e em contrapondo com os aspectos negativos, associados ao passado.

Já no momento em que a protagonista relata sobre essa mudança (.p.201)

“Sobrevivi ao hedonismo de minha juventude e à castidade de minha idade madura, a meu egoísmo heróico, à falta de dinheiro e de alegria, à minha depressão. E estou disposta a viver muito mais”

“Quero Carlos da forma como não sinto falta dele, o Carlos contra quem nem a morte, nem a angústia nem o nada podem; que é indestrutível e eterno.”

Considerando a marcha evolutiva da arte e a sua função civilizadora no progresso da humanidade, acredita-se que à passagem do tempo corresponde uma alteração positiva nos mais variados aspectos da vida quotidiana pela progressiva emancipação dos cidadãos. É o legado dos pensadores das Luzes neste processo de emancipação pela atribuição de uma finalidade ou sentido da História, a partir de uma noção do tempo próxima da noção escatológica ocidental (de raiz judaico-cristã) que ganhou consistência nas sociedades laicas através do Iluminismo.

Todo o esforço empreendido pelas sociedades ocidentais, a partir do Iluminismo, se dirige para esse objectivo, vivendo momentos de profundo optimismo, como são, por exemplo, aqueles apresentados pela euforia positivista, que traduzem a crença numa total racionalização da vida terrestre e no papel hegemónico e insubstituível do ser humano.

Voltando ao nosso campo de trabalho, deslocado o eixo da problematização utópica do universo da transformação social para o universo da transformação individual,

o que nos parece inovador em ambos os textos, são os sinais de um esboço para uma redefinição do conceito de utopia (através de uma síntese entre utopia e contra-utopia de forte enraizamento literário).

Sublinhe-se a congruência entre perspectiva existencial e perspectiva de ficção num horizonte estético, estabelecendo-se um equilíbrio entre racionalidade e sensibilidade.

No caso da narrativa de Almino, retirando a perspectiva do protagonista na problematização do tempo histórico e do tempo da história (da narrativa):

“Passei por um processo progressivo de auto-reclusão. Cercada de papéis me fechei no meu mundo.” (p.41).

“Não faço aqui uma narrativa das palavras que salvei, das que eliminei nem das que escrevi para substituir as que jogava fora. O essencial não está no diário que destruí nem no relato perdido mais tarde, mas sim no que conto agora.” (…). “Com as palavras que junto aqui, salvo o espírito do meu relato, que era só um desejo: este desejo de dizer o que penso no instante mesmo em que penso, o relato sendo só a realidade deste instante, nada mais” (p.199).

Parece-nos um desenvolvimento da dialéctica da negatividade (para utilizar o conceito de Adorno), em reacção a uma sociedade repressora do ser individual, apenas empenhada na compreensão racional deste como ser ser a-histórico e a-emocional.

Mas, paradoxalmente, também como espaço gerador de alternativas (personificadas pelo sujeito de enunciação nos dois textos), na realidade individual e histórica , sob o impulso do elemento utópico.

A dialéctica negativa sublinhe-se ainda, aparece também como sintoma do discurso da modernidade, pelas descontinuidades que instaura, não apenas na perspectiva de T. Adorno ( em cuja Teoria estética, profundamente marcada pelo marxismo, considera a significação da obra de arte imanente à produção, sendo a sua forma portadora de antagonismos da realidade social ), mas também na de Henri Meshonnic[6]:

A modernidade é uma descontinuidade (com o social, com o passado), na medida em que ela é o que acontece ao passado num ‘sujeito histórico no momento do perigo’. O presente sendo o tempo mais pleno de subjectividade onde se faz, ou seja se desfaz e se refaz sem cessar, o sentido. Essa negatividade, a mais banal e imemorial das coisas já que é de cada instante e vital para o presente. A modernidade não a inventou. Nem foi a primeira a ter dela a mais viva consciência. Outras linguagens diferentes o fizeram. Mas acreditar que nos pertence como a ninguém é a nossa ilusão constitutiva.

A arte surge aqui não só como imagem com capacidade de transformação do real (como afirmava Mondrian) mas para dar conta de uma totalidade do infinito do sentido e não mera conflagração do presente devorado pelo passado ou pelo futuro.

São imagens sobrepostas numa compressão do tempo de imaginários radicais (inspirada no princípio de construção utópica), pela experiência de liberdade (A Campos)

Configurando um nova definição do ideia utópica sob o impulso de uma experiência individual do tempo presente. (João Almino).

Em ambos a forte relação com o imaginário social opera uma síntese através de um equilíbrio entre racionalidade e sensibilidade, remetendo o leitor para a noção de um tempo trans-histórico.

O que de certo modo a protagonista deste livro de Almino explicita:

Ao contrário de Funes o Memorioso, o personagem de Borges que não esquecia nada e se lembrava de tudo, vou atravessar o meu Rio Lethes para esquecer tudo, para ter a liberdade de pensar e escrever espontaneamente, guiada só pelo desejo. Deixarei de lado o futuro, para não construir ilusões e nem prever desastres, o que, em vez de evitá-los, talvez os acelere. Quero captar o instante, começar do zero. Sem a carga do passado. Sem história, nem rumo. Apagar-me. Imobilizar-me. Condensar minha vida no instante, viver exclusivamente nele, dele, feito meu cachorro Rudolfo, aqui a meus pés. O presente instantâneo. Um instante que se prolonga, como numa figura borrada ou como quadro depois de quadro de um filme que não pára de rodar. Zero, o momento em que escrevo, a um passo do abismo e do paraíso. (Idem., pp.50-51).


[1] Gilbert Durand, A Imaginação Simbólica, Lisboa, Ed. 70, 1982,pp.74-75.

[2] Claude Hagège, L’homme de paroles, Calman-Lévi, pp.126-127

[3] Fernando Pessoa (1916),Rio de Janeiro, Ed Nova Aguilar, 1983.

[4] Y. Centeno, Fernando Pessoa. Tempo,solidão, hermetismo, Lisboa, Moraes, 1978.

[5] João Almino, Samba-Enredo, Ed Marco Zero,Rio de Janeiro,p.9.

[6] Henri Meshonnic, Modernité, Modernité, Albin Michel, Paris, pp.68-69.

Revista “Lusografias”
Lisboa, Ano II, Numeros 2/3, Janeiro / Fevereiro / Março 2006

Jorge A. Maximino
(Investigador, Inst. Piaget e Univ. de Paris iv-Sorbonne)

A propósito de As cinco estações do amor de João Almino e de Passagem das horas de Álvaro de Campos

Temos casos consideráveis nas literaturas de Língua Portuguesa de uma tendência para abordagens díspares de temas utópicos ou do que neste breve estudo preferimos designar por pulsão utópica.

Sem pretendermos desenvolver de forma panorâmica este tema situando-o num período cronológico preciso, uma via provável, vamos fixar-nos em dois exemplos concretos, situados em épocas distintas: um texto de um heterónimo de Fernando Pessoa datado datado de 1916 e o romance As cinco estações do amor da trilogia de Brasília de João Almino publicado no Rio de Janeiro em 2001.

Partimos da noção clássica de utopia ( narrativa sobre uma sociedade ideal, perfeita, cuja acção decorre em local inexistente). Note-se desde já que as utopias colocam o enunciador, em termos da pragmática, num plano da máxima relevância: a distanciação, tanto espacial como temporal, do narrador face à sociedade.

Mas a narrativa utópica, contendo uma acção que decorre em local inexistente, coloca-nos também perante a evocação de um espaço e de um tempo imaginários.

Referimos aqui o conceito de imaginário na acepção que lhe dá Gilbert Durand, autor que integra nele o domínio da imaginação e o pensamento racional, exposto em diversas obras desde As estruturas antropológicas do imaginário até a Imaginação Simbólica, livro no qual sustenta, a propósito da supressão das sequelas da doutrina clássica que distingue o consciente racional dos outros fenómenos psíquicos e, em particular, das franjas subconscientes do imaginário, o seguinte:

Esta integração de toda a psique no seio de uma única actividade pode ser expressa de duas maneiras. Primeiro, pelo facto de que o sentido próprio ( que conduz ao conceito e ao signo adequado) é apenas um caso particular do sentido figurado, isto é, apenas um símbolo restrito. As sintaxes da razão são apenas formalizações extremas de uma retórica, ela própria embebida no consenso imaginário geral. Depois, de uma maneira mais precisa, não existe corte entre o racional e o imaginário, não sendo o racionalismo, entre outras coisas, mais do que uma estrutura polarizante particular do campo das imagens [1].

Este autor conclui deste modo que podemos “assimilar a totalidade do psiquismo ao imaginário” por um lado, sendo o pensamento “na sua totalidade integrado na função simbólica”, por outro. Por isso as práticas artísticas se inscrevem na construção da representação cultural, que partilha o espaço público em dois campos:

O do real das estruturas da sociedade (que corresponde ao campo político)

e o do simbólico da sua representação (que corresponde ao seu campo estético).

A significação das práticas artísticas sustenta-se, nestas condições, pela instauração de um ideal estético. Visto que, em suma, a arte constitui uma sublimação estética, a criação artística estará deste modo inscrita no quadro de significação de uma prática simbólica de comunicação, não havendo portanto criação artística que não seja portadora de um certo número de representações culturais, entre as quais se contam os ideais de sociabilidade e a noção de identidade.

No âmbito literário, a representação torna-se indissociável do poder de abstracção da própria língua, que não é mais do que uma abstracção generalizante da experiência humana.

Cito-vos a que a este respeito o que escreveu Claude Hagège em O Homem de palavras:

As línguas só são possíveis graças a uma ruptura das sua amarras, na condição de se tornarem um meio convencional de representação. Elas só asseguram a possessão discursiva do mundo porque em virtude da sua substância elas evacuam o mundo. (…) por isso as sociedades humanas fizeram das línguas sistemas paradoxais. Embora não cessem de se transformar ao longo dos tempos da História, são sistemas sem lugar nem idade, cujas manifestações sucessivas são ao mesmo tempo particularidades de um tempo e de um espaço. Esta dupla natureza que elas neutralizam pela sua própria existência contraditória, deu-lhes a forma de eminentes instrumentos de abstracção.[2]

É neste quadro que se apresenta a nossa proposta de leitura do que designaremos por pulsão utópica nos dois textos escolhidos: A passagem das horas de Álvaro de Campos de 1916 e os romance As cinco estações do amor de João Almino ( Publicado depois de Ideias para onde passar o fim do mundo, 1987 e Samba-enredo, 1994).

O nosso intuito é o de detectarmos no discurso de cada um dos textos a presença do elemento utópico, não no sentido de tema recorrente mas como elemento de tensão, como impulso ou injunção na sensibilidade do sujeito de enunciação e que participa da modernidade das mesmas obras em questão.

Considerando que este elemento inscreve estas obras

> numa dialéctica permanente dos espaços heterogéneos da mesma língua, que perpassa em imaginários diversos que testemunham a sua reinvenção, por um lado

(desde Vieira, Antero, João Guimarães Rosa);

> e num questionamento sobre o tempo e a sua representação, por outro.

É um questionamento a partir da pulsão utópica pelo facto de encontrarmos nestes textos sinais de um distanciamento e mesmo de recusa do presente (os princípios de construção do texto utópico), remetendo-nos assim para o cruzamento entre pensamento poético e pensamento político.

O modelo utópico é frequentemente associado a uma visão nostálgica da sociedade, como forma de regresso a um tempo primitivo, mítico, veiculado pelo imaginário do paraíso no discurso religioso.

Este modelo arquétipo de utopia, sendo uma imagem do eu colectivo, não é surpreendente que reapareça mesmo em obras das sociedades contemporâneas, expostas a um sentimento crónico de alienação do sentido da vida e confrontadas com a crise das identidades.

A imagem da cidade ideal, quer em termos de uma idade de ouro, quer de uma memória perdida, sempre foi objecto de reflexão, marcando a produção artística e filosófica universal. Obras que em muitos casos se tornaram um sério contributo no imaginário democrático moderno. Refiro-me particularmente à Cidade do Sol de T. Campanela e à Utopia de Thomas More particularmente.

Por isso se compreende o fascínio pelo conceito do “Bom selvagem” de Jean-Jacques Rousseau e outras obras mais recentes que alimentaram esse imaginário do passado mítico de uma sociedade justa e perfeita que o homem civilizado tem da sua comunhão mística com a natureza .

Ora, tanto em A passagem das horas de Álvaro de Campos como em As cinco estações do amor de João Almino, se coloca a questão da identidade ou da sua projecção na representação do tempo como imaginário utópico.

No caso do heterónimo de Pessoa, para lá da projecção heteronímica relevar de uma procura que vai nesse sentido, alguns dos heterónimos prolongam de certo modo esse mesmo questionamento. Isto é, multiplicam essa heteronimização.

Tal parece ser o caso de Álvaro de Campos, à luz da maioria dos textos por ele assinados.

No texto ” Passagem das horas” [3] que nos parece ilustrar bem esta ideia, encontramos as passagens seguintes (com indicação das páginas da edição brasileira):

“Não sei se a vida é pouco ou demais para mim” (p.276)

“Assim fico, fico… Eu sou o que sempre quer partir”

“Não sei sentir, não sei ser humano, conviver

/…/

Ter um lugar na vida, ter um destino entre os homens” (277)

Desconhecer o “sentir e ser humano e conviver” impõe de imediato o questionamento identitário de um sujeito de enunciação em ruínas, numa procura da Totalidade, para utilizarmos a terminologia de Y. Centeno[4].

O seu questionamento identitário é indissociável de uma visão cósmica, ou coincidente com a sua visão do cosmos.

Assim, podemos ler na página 281:

“Eu, poeta sensacionista enviado do Acaso

às leis irrepreensíveis da vida”

/…/

Eu, investigador solene das coisas fúteis” (p.281)

“Sinto na minha cabeça a velocidade do giro da terra,

E todos os países e todas as pessoas giram dentro de mim” (p.285)

Pessoa ortónimo não é alheio a essa ideia de Paraíso recriado pela mão do homem.

A procura nesse paraíso recriado toma o lugar de uma representação das qualidades da sociedade ideal como arquétipo da infância perdida da humanidade.

A pulsão utópica encontra-se na elaboração de várias imagens no texto Passagem das horas de Álvaro de Campos. Assiste-se a uma compressão do tempo, como se a realidade só pudesse ganhar sentido deslocando-se do presente para um tempo-outro que não é passado porque movimenta os seres e objectos.

Movimentos da “Passagem das horas”:

P280:

” Dormir como um cão corrido no caminho, ao sol,

Definitivamento para todo o resto do Universo

/…/

Fui para a cama com todos os sentimentos,

Fui souteneur de todas as emoções”

( Sabemos que este heterónimo de Pessoa é apresentado como um desempregado especial, ou espacial, visto “pertencer àquele grupo de portugueses que ficaram sem trabalho depois da Índia descoberta”. )

O texto discorre num vai-vém violento, com alterações frequentes no ritmo, em rupturas de pequenas pausas como de uma encruzilhada do sentido se tratasse, por onde os signos tivessem de passar continuamente. São os pólos de uma tensão narrativa que ganha contornos por vezes de discurso dramático pela vivacidade monologante do texto.

A tendência utópica na poética pessoana releva do questionamento que condiciona o próprio discurso heteronímico, que lhe está subjacente. Digamos que é algo que faz parte integrante dos próprios alicerces da sua obra.

Quanto ao texto de João Almino, note-se que já no romance precedente Samba-Enredo (o 2º livro da trilogia de Brasília), logo na abertura do livro deparamos com esta dedicatória: « Dedico às almas errantes e aos fragmentos de cérebro deslocados pelas pesadas massas do tempo e jogados no lixo do esquecimento”. Nele é também bastante significativo o narrador ser o próprio computador, que por essa razão nos apelida de “usuários” e não de leitores, declara na página 9 o seu propósito:

“Conto a você, usuário que me crê e consulta, mesmo sabendo que o meu ofício é viver do artifício, minha tentativa de manipular o passado com a ajuda de um fantasma.”[5]

Trata-se de um narrador sem sexo definido: “Prefiro mostrar-me feminina mas não tenho sexo.” .

Temos assim o mesmo questionamento sobre a representação do tempo como projecção do eu como ideal, transposto para o imaginário de Ana, protagonista do romance As Cinco Estações do Amor:

“Quero começar por algo extraordinário. Mas o que me aconteceu de extraordinário ? Sou apenas uma aposentada que, ainda por cima, se aposentou cedo de mais por causa da generosidade de um lei, e agora está mais pobre por causa da severidade de outra. Tive uma vida média. Média mesmo. Nada de emocionante, de pitoresco, engraçado, heróico. Nada de excitante. Nenhuma história de amor bem-sucedida. Nenhum desastre fantástico. Nenhuma tragédia capaz de comover. (…) Vivo minha vida como uma tragédia cotidiana, permanente, sem um fato que defina esta tragédia.” (op.cit: 46-47)

Nesta sua narrativa, terceira da trilogia de Brasília, João Almino remete-nos para uma visão auto-crítica da sociedade. Mas é só um dos vectores. A narrativa ocupa um espaço de recriação de um real em que perpassa uma tensão entre a auto-crítica e o elemento utópico. Estamos perante uma cidade contaminada de sinais utópicos. Mas é uma Brasília decadente, desfeita a ilusão dos que a ajudaram a crescer, se contradiz num momento social sob o signo do autoritarismo do regime militar como confessa Ana, a protagonista:

“As cidades adquirem o ar dos tempos por que passam. Brasília, que tinha sido promessa de socialismo e, para mim pessoalmente, de liberdade, não usava mais disfarse. A desolação de suas cidades-satélites já a asfixiava. Respirávamos vinte e quatro horas por dia o ar envenenado da ditadura militar. Até na sala de aula, olhávamos com desconfiança para os colegas recém-ingressos; um deles podia ser do SNI. Por isso dei razão a Helena.” (idem.,p.21)

Há uma metamorfose desde os anos sessenta que acompanha a geração dessa década que nasceu com a cidade, a mesma da pulsão utópica da geração do pós-Maio de 68 e que questiona o presente a partir da sua experiência, que é neste romance de João Almino próxima do grupo de personagens centrais que se auto-denomina Grupo dos Inúteis.

Mas, quer seja imagem da cidade ideal quer seja recriação, são projecções do inconsciente no mundo consciente tanto no poema de Campos como no romance de Almino. Surgem porque correspondem a uma necessidade, a pressões heteronímicas de auto-identificação no espaço ideal da existência como expressão do eu ou como via para um tempo imaginário, imagem unificadora dos dois mundos opostos da realidade psíquica: o consciente e o inconsciente.

Há nas duas obras uma contaminação excessiva do passado, com sujeitos do discurso entre fragmento e totalidade.

Na nota de apresentação do livro, Silviano Santiago escreveu:

Brasília só acolheu moradores e só ganhou vida depois de abandonada pelo planalto imaginário dos arquitectos. /…/ Com As cinco estações do amor (da trilogia de Brasília) João Almino define-se como o mais completo autor de Brasília. A materialidade da cidade-fantasma às avessas não está nas pranchetas ou no concreto; está no burburinho das vozes migrantes. Vozes dos trabalhadores excluídos para as cidades-satélites, dos aventureiros e desenraizados que, por vontade ou decreto, ali aportaram. Imagens instantâneas da revolução que não houve, do homem novo que devia ter sido, do fim do mundo que não chega.

A protagonista constrói a sua narrativa (as suas “memórias”) contra o peso da memória, com pessimismo, tomando a escrita como apagador do passado, destruindo todos os seus indícios escritos (jornais, livros, fotografias), confessando na página 54:

“Quero viver como num hipertexto que nunca pára de se construir, em que a escrita é um diálogo contínuo e infindável com a mente ou um contraponto da vida. Apagar todos os livros, para deixar brilhar, sozinho, o livro natural: aquele em que se acreditava em Yucatán, o que não foi escrito por ninguém que vai passando ele próprio suas páginas /…/ Minha revolução interior depende da coragem de ir compondo o texto, sempre no presente enquanto me desfaço dos papéis acumulados. Os papéis a menos aumentarão meu espaço de liberdade”.

A protagonista, que antes havia mostrado um pessimismo radical tanto no plano individual como colectivo:

“Minha juventude está perdida. A Brasília do meu sonho de futuro está morta reconheço-me nas fachadas de seus prédios precocemente envelhecidos, na sua modernidade precária e decadente.” (…)

“Espero, em suma, que uma nova paixão –cega, surpreendente e radical como toda paixão- me arrebate. É a revolução que aguardo.” (Idem.,p.)

A mesma protagonista fará viragem progressiva no seu comportamento em virtude de uma nova, tardia e improvável paixão, fora do tempo (a 5ª estação ), acabando por abandonar a sua intenção de suicidar-se. É portanto no campo dos afectos e do amor que se encontra a explicação para tal mudança de atitude, que integra o elemento utópico numa particular exaltação da vida e em contrapondo com os aspectos negativos, associados ao passado.

Já no momento em que a protagonista relata sobre essa mudança (.p.201)

“Sobrevivi ao hedonismo de minha juventude e à castidade de minha idade madura, a meu egoísmo heróico, à falta de dinheiro e de alegria, à minha depressão. E estou disposta a viver muito mais”

“Quero Carlos da forma como não sinto falta dele, o Carlos contra quem nem a morte, nem a angústia nem o nada podem; que é indestrutível e eterno.”

Considerando a marcha evolutiva da arte e a sua função civilizadora no progresso da humanidade, acredita-se que à passagem do tempo corresponde uma alteração positiva nos mais variados aspectos da vida quotidiana pela progressiva emancipação dos cidadãos. É o legado dos pensadores das Luzes neste processo de emancipação pela atribuição de uma finalidade ou sentido da História, a partir de uma noção do tempo próxima da noção escatológica ocidental (de raiz judaico-cristã) que ganhou consistência nas sociedades laicas através do Iluminismo.

Todo o esforço empreendido pelas sociedades ocidentais, a partir do Iluminismo, se dirige para esse objectivo, vivendo momentos de profundo optimismo, como são, por exemplo, aqueles apresentados pela euforia positivista, que traduzem a crença numa total racionalização da vida terrestre e no papel hegemónico e insubstituível do ser humano.

Voltando ao nosso campo de trabalho, deslocado o eixo da problematização utópica do universo da transformação social para o universo da transformação individual,

o que nos parece inovador em ambos os textos, são os sinais de um esboço para uma redefinição do conceito de utopia (através de uma síntese entre utopia e contra-utopia de forte enraizamento literário).

Sublinhe-se a congruência entre perspectiva existencial e perspectiva de ficção num horizonte estético, estabelecendo-se um equilíbrio entre racionalidade e sensibilidade.

No caso da narrativa de Almino, retirando a perspectiva do protagonista na problematização do tempo histórico e do tempo da história (da narrativa):

“Passei por um processo progressivo de auto-reclusão. Cercada de papéis me fechei no meu mundo.” (p.41).

“Não faço aqui uma narrativa das palavras que salvei, das que eliminei nem das que escrevi para substituir as que jogava fora. O essencial não está no diário que destruí nem no relato perdido mais tarde, mas sim no que conto agora.” (…). “Com as palavras que junto aqui, salvo o espírito do meu relato, que era só um desejo: este desejo de dizer o que penso no instante mesmo em que penso, o relato sendo só a realidade deste instante, nada mais” (p.199).

Parece-nos um desenvolvimento da dialéctica da negatividade (para utilizar o conceito de Adorno), em reacção a uma sociedade repressora do ser individual, apenas empenhada na compreensão racional deste como ser ser a-histórico e a-emocional.

Mas, paradoxalmente, também como espaço gerador de alternativas (personificadas pelo sujeito de enunciação nos dois textos), na realidade individual e histórica , sob o impulso do elemento utópico.

A dialéctica negativa sublinhe-se ainda, aparece também como sintoma do discurso da modernidade, pelas descontinuidades que instaura, não apenas na perspectiva de T. Adorno ( em cuja Teoria estética, profundamente marcada pelo marxismo, considera a significação da obra de arte imanente à produção, sendo a sua forma portadora de antagonismos da realidade social ), mas também na de Henri Meshonnic[6]:

A modernidade é uma descontinuidade (com o social, com o passado), na medida em que ela é o que acontece ao passado num ‘sujeito histórico no momento do perigo’. O presente sendo o tempo mais pleno de subjectividade onde se faz, ou seja se desfaz e se refaz sem cessar, o sentido. Essa negatividade, a mais banal e imemorial das coisas já que é de cada instante e vital para o presente. A modernidade não a inventou. Nem foi a primeira a ter dela a mais viva consciência. Outras linguagens diferentes o fizeram. Mas acreditar que nos pertence como a ninguém é a nossa ilusão constitutiva.

A arte surge aqui não só como imagem com capacidade de transformação do real (como afirmava Mondrian) mas para dar conta de uma totalidade do infinito do sentido e não mera conflagração do presente devorado pelo passado ou pelo futuro.

São imagens sobrepostas numa compressão do tempo de imaginários radicais (inspirada no princípio de construção utópica), pela experiência de liberdade (A Campos)

Configurando um nova definição do ideia utópica sob o impulso de uma experiência individual do tempo presente. (João Almino).

Em ambos a forte relação com o imaginário social opera uma síntese através de um equilíbrio entre racionalidade e sensibilidade, remetendo o leitor para a noção de um tempo trans-histórico.

O que de certo modo a protagonista deste livro de Almino explicita:

Ao contrário de Funes o Memorioso, o personagem de Borges que não esquecia nada e se lembrava de tudo, vou atravessar o meu Rio Lethes para esquecer tudo, para ter a liberdade de pensar e escrever espontaneamente, guiada só pelo desejo. Deixarei de lado o futuro, para não construir ilusões e nem prever desastres, o que, em vez de evitá-los, talvez os acelere. Quero captar o instante, começar do zero. Sem a carga do passado. Sem história, nem rumo. Apagar-me. Imobilizar-me. Condensar minha vida no instante, viver exclusivamente nele, dele, feito meu cachorro Rudolfo, aqui a meus pés. O presente instantâneo. Um instante que se prolonga, como numa figura borrada ou como quadro depois de quadro de um filme que não pára de rodar. Zero, o momento em que escrevo, a um passo do abismo e do paraíso. (Idem., pp.50-51).


[1] Gilbert Durand, A Imaginação Simbólica, Lisboa, Ed. 70, 1982,pp.74-75.

[2] Claude Hagège, L’homme de paroles, Calman-Lévi, pp.126-127

[3] Fernando Pessoa (1916),Rio de Janeiro, Ed Nova Aguilar, 1983.

[4] Y. Centeno, Fernando Pessoa. Tempo,solidão, hermetismo, Lisboa, Moraes, 1978.

[5] João Almino, Samba-Enredo, Ed Marco Zero,Rio de Janeiro,p.9.

[6] Henri Meshonnic, Modernité, Modernité, Albin Michel, Paris, pp.68-69.