Cidade Livre, de João Almino. Kathrin Rosenfield, Zero Hora

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Zero Hora, Porto Alegre, sábado, 18 de dezembro de 2010

João Almino Cidade Livre Record 2010

Kathrin Rosenfield

Brasilia – um mito, uma cidade, um divisor de águas: ou se adora, ou se detesta – eis o clichê sempre repetido. Mas raramente vemos de Brasilia surgir uma imagem tangível ou, talvez seria melhor dizer: envolvente, pois Brasilia tem algo de fantasmagórico – irreal na topografia cósmica que dá a sensação de estarmos no topo do mundo; e irreal também pela combinação de majestade faraônica e de desleixo mesquinho. A monumental falta de cuidado é prova de um déficit de sensibilidade estética (e ética) que rodeia os magníficos prédios. O patente desleixo espalha a atmosfera de decadência pequeno burguesa, acomodada nas frinchas, frestas e ferrugens do concreto armado, com os alagamentos e vidros quebrados e sujos. Todo o cuidado, mimo e protocolo estão voltados para as meteóricas aparições dos homens poderosos que deslizam entre o aeroporto, os escritórios e gabinetes, hotéis e restaurantes em carros oficiais, rodeados por motoristas e secretárias diligentes. As mulheres e filhos destes homens (quando vivem na mesma cidade, o que não é a regra) se parecem com acessórios, que ocasionalmente abrem a porta, atendem o telefone e acompanham esses homens sem serem registrados como parceiros e pessoas pelos assessores, sub-chefes e vice-presidentes que falam da política (e do seu fantasmático e efêmero poder) com a volúpia pedestre dos homens médios.

Eis a realização dos sonhos que entusiasmaram Aldous Huxley como “jornada dramática através do tempo e da história! Uma jornada do Ontem para o Amanhã, do que terminou para o que vai começar, das velhas realizações, para novas promessas.” (171) Para quem teve a oportunidade de mergulhar no fascínio de Brasília de hoje, é apaixonante a leitura do mais recente romance de João Almino, Cidade Livre. Poucos sabem que em 1959 Cidade livre (hoje o Núcleo Bandeirante) era o nome de um “aglomerado de casas esparsas com cerca de trezentas pessoas, quase todos homens, junto com o acampamento da Candangolândia, a única nova aglomeração de população da região da nova capital.” (101) É dessa cidade que se lembra um bloguista-jornalista, num relato extraído em parte do pai encarcerado e a beira da morte. Esse relato – deliberadamente descuidado e errático, como é de costume num blog – torna incrivelmente plástica a essência de Brasília vista através da vida de um menino (porém não mais n’”As margens da alegria” rosiana). O menino é o próprio bloguista anônimo que aí chega com duas tias e um pai biológico que, recentemente, substitui o pai de criação – o traçado deste menino quase se parece com uma modulação (mais urbana, mais recente) da aventura de Riobaldo. Porém despojada da aura mítico-lendária, mais voltada para uma alegoria das derivas tão freqüentes da grande família Brasil nas suas variações pessoais, sociais e políticas. Os perfis quase alegóricos de certas figuras antropológicas da sociabilidade brasileira aparecem em filigrano na história caótica do bloguista, amigo ou alter-ego de infância de João Almino. Ele debita no seu blog a torrente de recordações que recolheu junto ao pai em desgraça numa cela de prisão, acuando impiedosamente o velho moribundo em busca de esclarecimentos de alguns mistérios que rodeiam a instável existência do pai alcoólatra, seus fracassos financeiros e deslizes passionais, e, seu possível envolvimento na morte de um amigo humilde, Valdivino.

Como o próprio livro-blog, construído por mentes fantasmas de outras mentes, Brasília, os homens e mulheres que a construíram, se desdobram em fantasmas simultaneamente tangíveis e irreais, cuja verdade adivinhamos sem jamais trazê-la totalmente à luz. O que vemos desfilar é a versão urbana e ‘moderna’ do “sertão que está dentro da gente” – histórias que repetem as estruturas do mando clientelista, a dependência da gente miúda (inclusive do pai do menino) à espera de apadrinhamento e proteção, os clãs (políticos, policiais, empresariais…) que reproduzem, no seio do milagre utópico, como um deboche da sociabilidade masculina que remonta à ‘genesia violenta’ dos colonizadores solitários de antanho.

A meninice pré-adolescente e adolescente do narrador dá um colorido particularmente erotizado aos fragmentos que retornam do passado, o que permite aos múltiplos ‘eus’ do bloguista intuir os desejos ávidos e predadores dos homens que circulavam pela cidade em construção, e que o menino, na época, observava apenas de fora. Dessa técnica multi-focal resultam interessantes sobreposições de imagens ‘inocentes’ – descrições muito palpáveis de corpos e roupas femininos, ou da vestimenta masculina com suas conotações hierárquicas e sociais: botas caprichosamente enceradas, por exemplo -, e de vislumbres que adivinham e antecipam os gestos predadores, cálculos assombrosos e armações infames que resultarão pouco a pouco das rivalidades veladas desses conquistadores do novo-nosso Brasil.

A aventura dos engenheiros e políticos, especuladores imobiliários e policiais que mandam na cidade livre entretece-se com a trajetória semi-oculta (e ocultista-espiritista) de Lucrécia – puta baiana, ‘princesa’ brasiliense e sacerdotisa de uma seita de fracassados e criminosos –, que enfeitiça todos os homens da Cidade Livre, destruindo sua paz como uma labareda, mas ao mesmo tempo vítima ‘protegida’, explorada e destruída pelos mais valentes destes mandões. A morte misteriosa e suspeita de Valdivino, seu companheiro baiano marginalizado pelos mais poderosos, é o mistério que intriga o bloguista e o fio vermelho da narrativa.

Não é um romance apenas, é um documento precioso que capta o mundo submerso da história recente de uma cidade, de um pais e de uma forma de vida profundamente ancorada nas tradições (talvez esquecidas) do Brasil.

Zero Hora, Porto Alegre, sábado, 18 de dezembro de 2010

João Almino Cidade Livre Record 2010

Kathrin Rosenfield

Brasilia – um mito, uma cidade, um divisor de águas: ou se adora, ou se detesta – eis o clichê sempre repetido. Mas raramente vemos de Brasilia surgir uma imagem tangível ou, talvez seria melhor dizer: envolvente, pois Brasilia tem algo de fantasmagórico – irreal na topografia cósmica que dá a sensação de estarmos no topo do mundo; e irreal também pela combinação de majestade faraônica e de desleixo mesquinho. A monumental falta de cuidado é prova de um déficit de sensibilidade estética (e ética) que rodeia os magníficos prédios. O patente desleixo espalha a atmosfera de decadência pequeno burguesa, acomodada nas frinchas, frestas e ferrugens do concreto armado, com os alagamentos e vidros quebrados e sujos. Todo o cuidado, mimo e protocolo estão voltados para as meteóricas aparições dos homens poderosos que deslizam entre o aeroporto, os escritórios e gabinetes, hotéis e restaurantes em carros oficiais, rodeados por motoristas e secretárias diligentes. As mulheres e filhos destes homens (quando vivem na mesma cidade, o que não é a regra) se parecem com acessórios, que ocasionalmente abrem a porta, atendem o telefone e acompanham esses homens sem serem registrados como parceiros e pessoas pelos assessores, sub-chefes e vice-presidentes que falam da política (e do seu fantasmático e efêmero poder) com a volúpia pedestre dos homens médios.

Eis a realização dos sonhos que entusiasmaram Aldous Huxley como “jornada dramática através do tempo e da história! Uma jornada do Ontem para o Amanhã, do que terminou para o que vai começar, das velhas realizações, para novas promessas.” (171) Para quem teve a oportunidade de mergulhar no fascínio de Brasília de hoje, é apaixonante a leitura do mais recente romance de João Almino, Cidade Livre. Poucos sabem que em 1959 Cidade livre (hoje o Núcleo Bandeirante) era o nome de um “aglomerado de casas esparsas com cerca de trezentas pessoas, quase todos homens, junto com o acampamento da Candangolândia, a única nova aglomeração de população da região da nova capital.” (101) É dessa cidade que se lembra um bloguista-jornalista, num relato extraído em parte do pai encarcerado e a beira da morte. Esse relato – deliberadamente descuidado e errático, como é de costume num blog – torna incrivelmente plástica a essência de Brasília vista através da vida de um menino (porém não mais n’”As margens da alegria” rosiana). O menino é o próprio bloguista anônimo que aí chega com duas tias e um pai biológico que, recentemente, substitui o pai de criação – o traçado deste menino quase se parece com uma modulação (mais urbana, mais recente) da aventura de Riobaldo. Porém despojada da aura mítico-lendária, mais voltada para uma alegoria das derivas tão freqüentes da grande família Brasil nas suas variações pessoais, sociais e políticas. Os perfis quase alegóricos de certas figuras antropológicas da sociabilidade brasileira aparecem em filigrano na história caótica do bloguista, amigo ou alter-ego de infância de João Almino. Ele debita no seu blog a torrente de recordações que recolheu junto ao pai em desgraça numa cela de prisão, acuando impiedosamente o velho moribundo em busca de esclarecimentos de alguns mistérios que rodeiam a instável existência do pai alcoólatra, seus fracassos financeiros e deslizes passionais, e, seu possível envolvimento na morte de um amigo humilde, Valdivino.

Como o próprio livro-blog, construído por mentes fantasmas de outras mentes, Brasília, os homens e mulheres que a construíram, se desdobram em fantasmas simultaneamente tangíveis e irreais, cuja verdade adivinhamos sem jamais trazê-la totalmente à luz. O que vemos desfilar é a versão urbana e ‘moderna’ do “sertão que está dentro da gente” – histórias que repetem as estruturas do mando clientelista, a dependência da gente miúda (inclusive do pai do menino) à espera de apadrinhamento e proteção, os clãs (políticos, policiais, empresariais…) que reproduzem, no seio do milagre utópico, como um deboche da sociabilidade masculina que remonta à ‘genesia violenta’ dos colonizadores solitários de antanho.

A meninice pré-adolescente e adolescente do narrador dá um colorido particularmente erotizado aos fragmentos que retornam do passado, o que permite aos múltiplos ‘eus’ do bloguista intuir os desejos ávidos e predadores dos homens que circulavam pela cidade em construção, e que o menino, na época, observava apenas de fora. Dessa técnica multi-focal resultam interessantes sobreposições de imagens ‘inocentes’ – descrições muito palpáveis de corpos e roupas femininos, ou da vestimenta masculina com suas conotações hierárquicas e sociais: botas caprichosamente enceradas, por exemplo -, e de vislumbres que adivinham e antecipam os gestos predadores, cálculos assombrosos e armações infames que resultarão pouco a pouco das rivalidades veladas desses conquistadores do novo-nosso Brasil.

A aventura dos engenheiros e políticos, especuladores imobiliários e policiais que mandam na cidade livre entretece-se com a trajetória semi-oculta (e ocultista-espiritista) de Lucrécia – puta baiana, ‘princesa’ brasiliense e sacerdotisa de uma seita de fracassados e criminosos –, que enfeitiça todos os homens da Cidade Livre, destruindo sua paz como uma labareda, mas ao mesmo tempo vítima ‘protegida’, explorada e destruída pelos mais valentes destes mandões. A morte misteriosa e suspeita de Valdivino, seu companheiro baiano marginalizado pelos mais poderosos, é o mistério que intriga o bloguista e o fio vermelho da narrativa.

Não é um romance apenas, é um documento precioso que capta o mundo submerso da história recente de uma cidade, de um pais e de uma forma de vida profundamente ancorada nas tradições (talvez esquecidas) do Brasil.

Zero Hora, Porto Alegre, sábado, 18 de dezembro de 2010

João Almino Cidade Livre Record 2010

Kathrin Rosenfield

Brasilia – um mito, uma cidade, um divisor de águas: ou se adora, ou se detesta – eis o clichê sempre repetido. Mas raramente vemos de Brasilia surgir uma imagem tangível ou, talvez seria melhor dizer: envolvente, pois Brasilia tem algo de fantasmagórico – irreal na topografia cósmica que dá a sensação de estarmos no topo do mundo; e irreal também pela combinação de majestade faraônica e de desleixo mesquinho. A monumental falta de cuidado é prova de um déficit de sensibilidade estética (e ética) que rodeia os magníficos prédios. O patente desleixo espalha a atmosfera de decadência pequeno burguesa, acomodada nas frinchas, frestas e ferrugens do concreto armado, com os alagamentos e vidros quebrados e sujos. Todo o cuidado, mimo e protocolo estão voltados para as meteóricas aparições dos homens poderosos que deslizam entre o aeroporto, os escritórios e gabinetes, hotéis e restaurantes em carros oficiais, rodeados por motoristas e secretárias diligentes. As mulheres e filhos destes homens (quando vivem na mesma cidade, o que não é a regra) se parecem com acessórios, que ocasionalmente abrem a porta, atendem o telefone e acompanham esses homens sem serem registrados como parceiros e pessoas pelos assessores, sub-chefes e vice-presidentes que falam da política (e do seu fantasmático e efêmero poder) com a volúpia pedestre dos homens médios.

Eis a realização dos sonhos que entusiasmaram Aldous Huxley como “jornada dramática através do tempo e da história! Uma jornada do Ontem para o Amanhã, do que terminou para o que vai começar, das velhas realizações, para novas promessas.” (171) Para quem teve a oportunidade de mergulhar no fascínio de Brasília de hoje, é apaixonante a leitura do mais recente romance de João Almino, Cidade Livre. Poucos sabem que em 1959 Cidade livre (hoje o Núcleo Bandeirante) era o nome de um “aglomerado de casas esparsas com cerca de trezentas pessoas, quase todos homens, junto com o acampamento da Candangolândia, a única nova aglomeração de população da região da nova capital.” (101) É dessa cidade que se lembra um bloguista-jornalista, num relato extraído em parte do pai encarcerado e a beira da morte. Esse relato – deliberadamente descuidado e errático, como é de costume num blog – torna incrivelmente plástica a essência de Brasília vista através da vida de um menino (porém não mais n’”As margens da alegria” rosiana). O menino é o próprio bloguista anônimo que aí chega com duas tias e um pai biológico que, recentemente, substitui o pai de criação – o traçado deste menino quase se parece com uma modulação (mais urbana, mais recente) da aventura de Riobaldo. Porém despojada da aura mítico-lendária, mais voltada para uma alegoria das derivas tão freqüentes da grande família Brasil nas suas variações pessoais, sociais e políticas. Os perfis quase alegóricos de certas figuras antropológicas da sociabilidade brasileira aparecem em filigrano na história caótica do bloguista, amigo ou alter-ego de infância de João Almino. Ele debita no seu blog a torrente de recordações que recolheu junto ao pai em desgraça numa cela de prisão, acuando impiedosamente o velho moribundo em busca de esclarecimentos de alguns mistérios que rodeiam a instável existência do pai alcoólatra, seus fracassos financeiros e deslizes passionais, e, seu possível envolvimento na morte de um amigo humilde, Valdivino.

Como o próprio livro-blog, construído por mentes fantasmas de outras mentes, Brasília, os homens e mulheres que a construíram, se desdobram em fantasmas simultaneamente tangíveis e irreais, cuja verdade adivinhamos sem jamais trazê-la totalmente à luz. O que vemos desfilar é a versão urbana e ‘moderna’ do “sertão que está dentro da gente” – histórias que repetem as estruturas do mando clientelista, a dependência da gente miúda (inclusive do pai do menino) à espera de apadrinhamento e proteção, os clãs (políticos, policiais, empresariais…) que reproduzem, no seio do milagre utópico, como um deboche da sociabilidade masculina que remonta à ‘genesia violenta’ dos colonizadores solitários de antanho.

A meninice pré-adolescente e adolescente do narrador dá um colorido particularmente erotizado aos fragmentos que retornam do passado, o que permite aos múltiplos ‘eus’ do bloguista intuir os desejos ávidos e predadores dos homens que circulavam pela cidade em construção, e que o menino, na época, observava apenas de fora. Dessa técnica multi-focal resultam interessantes sobreposições de imagens ‘inocentes’ – descrições muito palpáveis de corpos e roupas femininos, ou da vestimenta masculina com suas conotações hierárquicas e sociais: botas caprichosamente enceradas, por exemplo -, e de vislumbres que adivinham e antecipam os gestos predadores, cálculos assombrosos e armações infames que resultarão pouco a pouco das rivalidades veladas desses conquistadores do novo-nosso Brasil.

A aventura dos engenheiros e políticos, especuladores imobiliários e policiais que mandam na cidade livre entretece-se com a trajetória semi-oculta (e ocultista-espiritista) de Lucrécia – puta baiana, ‘princesa’ brasiliense e sacerdotisa de uma seita de fracassados e criminosos –, que enfeitiça todos os homens da Cidade Livre, destruindo sua paz como uma labareda, mas ao mesmo tempo vítima ‘protegida’, explorada e destruída pelos mais valentes destes mandões. A morte misteriosa e suspeita de Valdivino, seu companheiro baiano marginalizado pelos mais poderosos, é o mistério que intriga o bloguista e o fio vermelho da narrativa.

Não é um romance apenas, é um documento precioso que capta o mundo submerso da história recente de uma cidade, de um pais e de uma forma de vida profundamente ancorada nas tradições (talvez esquecidas) do Brasil.

Zero Hora, Porto Alegre, sábado, 18 de dezembro de 2010

João Almino Cidade Livre Record 2010

Kathrin Rosenfield

Brasilia – um mito, uma cidade, um divisor de águas: ou se adora, ou se detesta – eis o clichê sempre repetido. Mas raramente vemos de Brasilia surgir uma imagem tangível ou, talvez seria melhor dizer: envolvente, pois Brasilia tem algo de fantasmagórico – irreal na topografia cósmica que dá a sensação de estarmos no topo do mundo; e irreal também pela combinação de majestade faraônica e de desleixo mesquinho. A monumental falta de cuidado é prova de um déficit de sensibilidade estética (e ética) que rodeia os magníficos prédios. O patente desleixo espalha a atmosfera de decadência pequeno burguesa, acomodada nas frinchas, frestas e ferrugens do concreto armado, com os alagamentos e vidros quebrados e sujos. Todo o cuidado, mimo e protocolo estão voltados para as meteóricas aparições dos homens poderosos que deslizam entre o aeroporto, os escritórios e gabinetes, hotéis e restaurantes em carros oficiais, rodeados por motoristas e secretárias diligentes. As mulheres e filhos destes homens (quando vivem na mesma cidade, o que não é a regra) se parecem com acessórios, que ocasionalmente abrem a porta, atendem o telefone e acompanham esses homens sem serem registrados como parceiros e pessoas pelos assessores, sub-chefes e vice-presidentes que falam da política (e do seu fantasmático e efêmero poder) com a volúpia pedestre dos homens médios.

Eis a realização dos sonhos que entusiasmaram Aldous Huxley como “jornada dramática através do tempo e da história! Uma jornada do Ontem para o Amanhã, do que terminou para o que vai começar, das velhas realizações, para novas promessas.” (171) Para quem teve a oportunidade de mergulhar no fascínio de Brasília de hoje, é apaixonante a leitura do mais recente romance de João Almino, Cidade Livre. Poucos sabem que em 1959 Cidade livre (hoje o Núcleo Bandeirante) era o nome de um “aglomerado de casas esparsas com cerca de trezentas pessoas, quase todos homens, junto com o acampamento da Candangolândia, a única nova aglomeração de população da região da nova capital.” (101) É dessa cidade que se lembra um bloguista-jornalista, num relato extraído em parte do pai encarcerado e a beira da morte. Esse relato – deliberadamente descuidado e errático, como é de costume num blog – torna incrivelmente plástica a essência de Brasília vista através da vida de um menino (porém não mais n’”As margens da alegria” rosiana). O menino é o próprio bloguista anônimo que aí chega com duas tias e um pai biológico que, recentemente, substitui o pai de criação – o traçado deste menino quase se parece com uma modulação (mais urbana, mais recente) da aventura de Riobaldo. Porém despojada da aura mítico-lendária, mais voltada para uma alegoria das derivas tão freqüentes da grande família Brasil nas suas variações pessoais, sociais e políticas. Os perfis quase alegóricos de certas figuras antropológicas da sociabilidade brasileira aparecem em filigrano na história caótica do bloguista, amigo ou alter-ego de infância de João Almino. Ele debita no seu blog a torrente de recordações que recolheu junto ao pai em desgraça numa cela de prisão, acuando impiedosamente o velho moribundo em busca de esclarecimentos de alguns mistérios que rodeiam a instável existência do pai alcoólatra, seus fracassos financeiros e deslizes passionais, e, seu possível envolvimento na morte de um amigo humilde, Valdivino.

Como o próprio livro-blog, construído por mentes fantasmas de outras mentes, Brasília, os homens e mulheres que a construíram, se desdobram em fantasmas simultaneamente tangíveis e irreais, cuja verdade adivinhamos sem jamais trazê-la totalmente à luz. O que vemos desfilar é a versão urbana e ‘moderna’ do “sertão que está dentro da gente” – histórias que repetem as estruturas do mando clientelista, a dependência da gente miúda (inclusive do pai do menino) à espera de apadrinhamento e proteção, os clãs (políticos, policiais, empresariais…) que reproduzem, no seio do milagre utópico, como um deboche da sociabilidade masculina que remonta à ‘genesia violenta’ dos colonizadores solitários de antanho.

A meninice pré-adolescente e adolescente do narrador dá um colorido particularmente erotizado aos fragmentos que retornam do passado, o que permite aos múltiplos ‘eus’ do bloguista intuir os desejos ávidos e predadores dos homens que circulavam pela cidade em construção, e que o menino, na época, observava apenas de fora. Dessa técnica multi-focal resultam interessantes sobreposições de imagens ‘inocentes’ – descrições muito palpáveis de corpos e roupas femininos, ou da vestimenta masculina com suas conotações hierárquicas e sociais: botas caprichosamente enceradas, por exemplo -, e de vislumbres que adivinham e antecipam os gestos predadores, cálculos assombrosos e armações infames que resultarão pouco a pouco das rivalidades veladas desses conquistadores do novo-nosso Brasil.

A aventura dos engenheiros e políticos, especuladores imobiliários e policiais que mandam na cidade livre entretece-se com a trajetória semi-oculta (e ocultista-espiritista) de Lucrécia – puta baiana, ‘princesa’ brasiliense e sacerdotisa de uma seita de fracassados e criminosos –, que enfeitiça todos os homens da Cidade Livre, destruindo sua paz como uma labareda, mas ao mesmo tempo vítima ‘protegida’, explorada e destruída pelos mais valentes destes mandões. A morte misteriosa e suspeita de Valdivino, seu companheiro baiano marginalizado pelos mais poderosos, é o mistério que intriga o bloguista e o fio vermelho da narrativa.

Não é um romance apenas, é um documento precioso que capta o mundo submerso da história recente de uma cidade, de um pais e de uma forma de vida profundamente ancorada nas tradições (talvez esquecidas) do Brasil.