ENTRE FACAS, ALGODÃO

  1. Taguatinga, Setor A Norte, QNA 32

 

31 de março

Clarice havia mandado uma mensagem pelo Facebook.

O que ela quer contigo? Patrícia me perguntou, mais amarga do que nunca, nós dois sentados numa poltrona da sala.

Caía uma chuva torrencial.

Você leu. Sabe tanto quanto eu.

Eu tinha esquecido de sair do Facebook. Patrícia aproveitou pra vasculhar minhas mensagens. Inadmissível!

Não, não li. Só vi que foi ela que lhe escreveu.

Duvido. Deve ter visto que ela não quer nada comigo. Só me deu uma dica.

Dica de quê?

Saco! Patrícia querer me controlar. Podia ter-lhe dito a verdade, se é que ela não sabia. Pouco me custava. A mensagem de Clarice nada tinha de pessoal. Nada que denotasse afeto entre nós. Absolutamente nada! Quase mensagem comercial. Soube por meu amigo Arnaldo de meu interesse em comprar um terreno nas redondezas e me passou a dica. Também me informou seu e-mail e número do celular. Só isso.

Não interessa, respondi.

Interessa, sim. Acha que esqueci o que essa perua representa pra ti?

Agressão gratuita. Como me arrependi de contar tudo. Falar de meu passado. Entrar em minúcias logo sobre Clarice! Sou mesmo um idiota, um imbecil!

Ou fui. Era lá no comecinho, quando achávamos que, como estávamos apaixonados e o mundo não faria sentido se não estivéssemos juntos, tínhamos que abrir nossos corações e contar tudo, absolutamente tudo. Sinceridade total. Respeito à verdade, que não podia ter qualquer remendo. Patrícia nunca esqueceu o menor detalhe sobre Clarice.

Ainda chovia. Os relâmpagos clareavam as janelas. Os trovões ribombavam sem parar, querendo dramatizar nossa discussão.

Não representa bulhufas. O terreno que está à venda, sim. É o que eu quero. Eu, entende? Onde passei minha infância.

Na mensagem Clarice diz que minha casa foi destruída. Mas o terreno à venda ainda preserva a antiga casa-grande da fazenda do pai dela, o Riacho Negro. E como o Riacho Negro me traz recordações! Se não leu, Patrícia adivinhou o que dizia a mensagem, pois perguntou:

E por que ela não compra?

Irritado, respondi, porque quer que eu compre.

Ah, é isso, né? A sem-vergonha quer que tu vá morar perto dela.

Como sabia que Clarice morava perto do terreno? Isso a mensagem não dizia. A verdade é que, se eu comprar o terreno, serei quase vizinho de Clarice.

Não. Eu é que quero morar perto dela. Eu é que quero, entendeu?, respondi, irônico, elevando a voz.

Posso saber por quê? Nem precisa me responder, já entendi tudo, disse, sem considerar minha ironia.

Pensando bem, não há mesmo ironia. Me dá enorme prazer ser vizinho de Clarice.

Porque sim, respondi.

Pois então compre a merda do terreno e se afunde nele, Patrícia berrou. Vá logo, seu bosta. Eu sabia que não podia confiar em você!

Meu casamento com Patrícia sobreviveu a infidelidades, e esse assunto boboca não devia ter provocado tanta zanga.

Pois é o que vou fazer, me flagrei dizendo, só porque uma provocação leva a outra e mais outra.

Descarado! Saia já de casa, gritou ainda mais alto.

Não era pra tanto, mas a arenga continuou por horas, em gritos insensatos, gota d’água para nossa separação sempre adiada. Basta dizer que, sem se importar com a chuva, Patrícia jogou minhas roupas pela janela. Um sapato caiu do outro lado da rua, na calçada em frente, e encheu-se de água.

Não desisti. Debaixo de chuva, juntei todas as coisas, sem medo do ridículo perante os vizinhos, e voltei pra casa. Patrícia tentou me agredir fisicamente. Só me defendi, não queria parar na delegacia. Depois me tranquei num quarto. Decidi que sairia de casa, mas não enxotado. Patrícia não insistiu, apenas deixou de falar comigo, no que lhe correspondi. Se não me expulsava, eu estava no lucro.

 

1º de abril

Não é mentira, apesar do primeiro de abril: vendo à minha volta, meu casamento com Patrícia não é dos piores. Temos muito em comum. Conversávamos, o que nem todo casal pode dizer. Nos beijávamos, feito notável depois de décadas de casamento. E os ciúmes de Patrícia são prova de que ainda me ama.

Só não tenho os mesmos ciúmes que ela porque há muito deixou de cantar nos bares e hoje não vejo rival à minha altura entre seus colegas dos Correios. Não tinha a menor intenção de me separar dela. Mas a briga cresceu feito suflê fora de meu controle. Não tem mais jeito. Me fez acreditar que é melhor mesmo voltar pro Nordeste.

Vou responder a Clarice. Pedir detalhes sobre o vendedor do terreno. Se conseguir negociar bom preço, pergunto se ela aceita que lhe passe uma procuração pra que cuide da transação no cartório de Várzea Pacífica.

Abril, Páscoa

Clarice me deu o número do vendedor. Depois de negociar com ele os termos da compra, liguei pro celular dela, achei melhor conversar. Aceitou que lhe faça a procuração. Não tocamos no assunto mais pessoal. Perguntei por Miguel, seu irmão. Está bem, fora as dificuldades nos negócios. Passa a maior parte do tempo viajando.

Pensei em tanta coisa antes de ligar… Em perguntar se ela se lembra de tal ou qual momento, como se sente vivendo sozinha numa fazenda, se alguma vez pensou em mim… Meus sentimentos ficaram embotados. Mas foi possível perceber emoção na sua voz. Sobretudo registrei bem o que disse:

Que bom que você está voltando.

Escavando sob meus pés, encontro muitas lembranças dela. Os sonhos têm memória. A Clarice do futuro — acho que existe, apesar de tudo — tem muito da Clarice do passado.

Se não me engano, foi em 58, plena seca, quando pela primeira vez senti por ela algo parecido com o amor. Não quero falar demais, porque não tenho certeza e não me lembro direito. Era muito pequeno. Podia ser naquele ano ou em qualquer outro que o rame-rame era o mesmo, morcegos voando de madrugada, árvores peladas, o verde só nas folhagens dos juazeiros, nos xiquexiques e mandacarus, carcaças de animais pelos caminhos de terra poeirenta exalando bafo quente, o sol queimando e secando o mundo, dentro de mim tudo seco. Em poucas palavras, o de sempre, agora cruzado por algum caminhão-pipa e à espera da transposição do Rio São Francisco.

Ou talvez tenha sido inverno, pois me lembro do açude com água, o verde das árvores espinhentas e baixas, verde-claro e brilhoso, a roça atrás do açude também verde, e eu acordava cedo para ir ao curral ordenhar as vacas. Não sei direito, me desculpe quem vier a ler isto. Ou, ora bolas, não me desculpo, pois não devo me desculpar de minhas contradições se são as meras contradições do sertão, seco ou molhado, contradições que hoje ainda existem. Quando seco, a paisagem cinza, realçada por pedras e caveiras, digo sem nenhum exagero. Quando molhado, molhado demais, assustando a gente e causando desastres.

21 de abril

Feriado, fiquei em casa. Achei que Patrícia ia querer me perturbar. Me ignorou, pelo menos até agora. Fico tranquilo para continuar estas anotações sobre meus tempos do Riacho Negro, de Várzea Pacífica, aquela época em que Clarice foi tão importante pra mim. Um dia, quem sabe, mostro estas páginas a ela.

Pode ser até que não me lembre propriamente. Que a realidade daquele passado esteja só na minha imaginação. Devo estar misturando várias secas e várias enchentes. Então, sim, por essa confusão devo me desculpar com quem vier a ler estas anotações, feitas assim rapidamente sem preocupação com estilo ou vocabulário.

Olho meu passado não com orgulho, mas com resignação. Muitas das turbulências que me atormentavam se apaziguaram. O que me despertava paixão agora está arquivado na memória como fotos num álbum de páginas amareladas pelo tempo. Algumas dessas fotos, cobertas de fungo. Outras, tão coladas entre si que, quando a gente tenta despregá-las, se rasgam deixando brancos.

Clarice é exceção. Minha lembrança dela é nítida como a fotografia bem guardada no fundo de uma de minhas gavetas em que ela olha pra mim com olhar que sinto ser apaixonado e até hoje transmite vibrações por meu corpo.

Recupero pedaços de mim para criar esta história contraditória e verdadeira, que me atormenta. Por isso tenho que pôr pra fora. Como contraditórios e verdadeiros, além do sertão, eram mamãe, que me punia e me protegia, e meu padrinho, pai de Clarice, severo e carinhoso. Eu aceitava as mudanças de humor deles como aceitava mudanças de humor da natureza. Achava normais minhas alegrias e tristezas.

No inverno a chuva cobria o campo verde, o chão ficava marcado com o barro das botas, as conversas e risos se prolongavam no alpendre da casa-grande de meus padrinhos, os aboios se animavam no campo, as muriçocas me picavam na nossa casa de tijolo aparente e vermelho, eu me enrolava na rede e envolvia o rosto com o lençol, deixando só o nariz de fora e ouvindo os pingos bater nas telhas.

Já na seca, o sol impiedoso castigava a fazenda do Riacho Negro e me cegava a vista. A poeira açoitava os campos cinzentos, de árvores despojadas, o açude minguado, as cacimbas sem água, as pessoas zonzas cozinhando irritação no calor, e o curral vazio, o gado tangido para o Piauí.

Nisso pode ser que de novo misture tempos, me desculpem, a seca de um ano com o verão prolongado de outro. Mas não invento nada, no máximo é a memória que me trai aqui e ali, coisa da idade, aos setenta anos a memória falha. O que é certo é que as paisagens da secura traziam sempre as mesmas árvores calcinadas, a mesma ruína cinzenta e a mesma irritação. Acho que são sobretudo elas, as paisagens da secura, que marcam os sertanejos feito eu.

1º de maio

Vou aqui de feriado em feriado, nem sei por quê. Hoje imagino que haja discursos e protestos. Prefiro me concentrar nas minhas anotações. Procurei lá no fundo minhas memórias mais antigas.

Deve haver outras lá atrás, mas as que me chegaram logo foram as de um dia em que, deitado numa ponta do parapeito da casa-grande de meu padrinho, pai de Clarice, com 6 anos, eu ouvia o rádio a pilha Hitachi, novidade que acabava de chegar no Riacho Negro, alegrando o alpendre com forrós interrompidos pelos chiados da má transmissão. O rádio movido a bateria carregada por cata-vento, desligado. Noutra ponta do parapeito, a avó de Clarice, Dona Leopolda, gorda, de rosto redondo, bochechudo, metida num vestido florido até o meio da canela, fazia cigarro cortando com faca afiada o fumo de corda enquanto fumava cachimbo, soltando baforadas. Uma rede branca, sem ninguém, balançava no alpendre movida pelo nordeste que chegava forte. Da varanda se via um quarto separado da casa e, pela porta, selas e cabrestos, couros espichados, baús no chão e gibões pendurados nos tornos de rede. Talvez seja minha memória de um dia. Ou talvez, o que é mais provável, de muitos dias que se repetiam iguaizinhos, sem tirar nem pôr.

Arnaldo, um preto mais preto e dois anos mais velho do que eu, que hoje também mora perto da fazendola que quero comprar e com quem já me comuniquei, me chamou para ir ao açude buscar água. Ele morava com o pai, Seu Rodolfo, a mãe, Dona Vitória, e um magote de irmãos, na fazenda vizinha, do irmão de meu padrinho, que eu chamava de titio. Íamos com Quinquim, buchudo de lombrigas, mas magricela com cor de leite azedo, que, abestado, enrolava a língua e só tinha dois amigos: eu e o jumento Cinzento. Cinzento conhecia o caminho do açude, ia na frente. Todos os dias buscava água. Às vezes voltava só, nem precisava da gente, e ficava esperando até que a gente chegasse para esvaziar as caçambas.

Eu considerava Arnaldo meu superior, e com razão. Ele conhecia o nome de todas as rezes — vacas e bezerros —, sabia ajudar Quinquim com as caçambas d’água e enchia os quatro potes de barro que repousavam sobre o estrado de madeira do alpendre da casa-grande — hoje, me diz Arnaldo, substituídos pela cisterna. Embaixo deles depositávamos réstias de alho, cebola, panelas de barro e mochilas de sal. Para ali de manhã cedo trazíamos os potes de leite, que num canto da cozinha seriam mudados em queijo de coalho ou coalhada. Ali colocávamos os cachos de bananas para amadurecer, as bananas baba-de-boi, maçã, prata e casca verde que à medida que amadureciam exalavam seu cheiro. Meu padrinho, pai de Clarice, dizia para colocar as bananas verdes junto das mais maduras para amadurecerem depressa. Eu e Arnaldo às vezes roubávamos bananas-prata quando começavam a ficar amarelas e as comíamos quando descíamos com Cinzento para o açude.

Há coisas, já disse, que não me lembro direito, me desculpem. Não sei se foi neste dia ou noutro, a muda que morava na fazenda do tio de Clarice que eu chamava de titio tomava banho nua no açude. Surda, não ouvia o barulho dos nossos passos, meus e de Arnaldo. Se nos via, fingia que não nos via, e nós fingíamos não dar fé de seu fingimento. Não era a primeira vez. Embora mangássemos dela quando fazia caretas e barulhos incompreensíveis com a língua, era a principal atração da caminhada. Contávamos a Miguel, o irmão de Clarice, exagerando na beleza das coxas, da bunda e dos peitos, e ele ficava cheio de inveja. Só não conseguíamos dizer que era bonita de rosto, ainda que o cabelo louro, liso e comprido enfeitasse suas costas, pois, nisso concordávamos, a feiura de seu rosto assustava.

2 de maio

Um dia peguei uma aposta com Arnaldo na corrida — dia especial por uma razão simples: tem a ver com Clarice, de quem, afinal de contas, queria falar. Arnaldo corria mais rápido que eu. Me senti derrotado. Caí e ralei meus joelhos. Foi o fim do mundo. Ou melhor, seu começo.

O sol nos encandeava com desenhos amarelos. Projetava pra dentro da casa-grande os pilares do alpendre, marcando o chão e os potes de barro com sombras negras e violentas. Daquele dia perdura em mim até hoje um sentimento de drama e esperança.

De drama: de que a noite que caía me despojava de seu manto protetor; de que eu sempre tropeçaria sobre as pedras da ladeira; de que o horizonte nunca deixaria de ser incerto; de que, perdido, não encontraria o caminho.

De esperança: de que alguém me salvaria do desastre. Do alto da ladeira, joelhos ralados nas pedras, vendo o sangue, eu também via a casa-grande e, na frente, Clarice, que veio em meu socorro.

Uma guiné gasguita voava no terreiro com medo dos vaqueiros encourados. Então chegou um magote de ciganos, visitantes que a cada dois ou três meses passavam tangendo tropas de burros, mulas e cavalos carregados de bugigangas. Juntaram-se embaixo do pé de tamarindo do terreiro.

Vende este cavalo? Cadê o ferrão?, perguntava meu padrinho, o pai de Clarice, com voz raivosamente fina e minúcias de atenção, desconfiado dos ciganos, sem dar fé do sangue nos meus joelhos.

Eu não tinha dinheiro e queria comprar um presente para Clarice. Por gestos, um dos ciganos me deu a entender que eu poderia pagar depois. Escolhi um anel certamente de ouro e pedra falsos, que dei de presente a Clarice quando o sol já se escondia envergonhado e as galinhas se aquietavam no poleiro.

De noite — pode ter sido nesse dia e, se não foi, juntei com outro, sua prolongação natural — havia uma fogueira enorme, feita de muitas carradas de lenha, em frente à casa-grande. Devia ser junho, quem sabe dia 24, festa de São João. As labaredas iluminavam rostos risonhos, às vezes de gargalhadas escancaradas, gente dando volta em torno da fogueira, assando milho verde. No alpendre da casa, a brincadeira era outra, séria: joguei gotas da vela derretida num copo d’água, e a cera formou uma letra cê, cê de Clarice. A felicidade.

Naquela época falava-se em roubos de moça para se casar, e me contaram que um roubo tinha acontecido em Várzea Pacífica. O rapaz roubava a moça, e as famílias tinham a obrigação de fazer o casamento. Imaginava-me, então, chegando a cavalo numa das janelas da casa-grande e levando Clarice na garupa. Será que ela toparia?

 

Hoje falei com Arnaldo. Faz muitos anos que não nos vemos, mas sempre que nos falamos é como se tivéssemos nos encontrado ontem. Vamos nos comunicar por WhatsApp, ele propôs. Um sujeito que ele conhece está vendendo um carro de segunda mão. Vendo o meu aqui em Taguatinga para comprar esse outro quando chegar a Várzea Pacífica, se ainda estiver à venda. Comprar sem ver é que não.

Levo para a fazenda uma técnica de plantio direto do algodão com a introdução de culturas rotativas. Já consultei uma lista de empresas de energia solar fotovoltaica da região de Fortaleza, pois vou, sim, instalar placas de energia solar, pelo menos para as necessidades da casa principal, que não será a casa-grande, mas a minha própria, moderna e confortável. E vou aprimorar o sistema precário de irrigação, que existe há alguns anos. De novidade, há dois poços artesianos na propriedade, e a casa já tem cisterna, Arnaldo me disse.

7 de maio

Quando penso na viagem em breve ao Riacho Negro, o passado assume tonalidades acinzentadas, vago e fora de foco. Aqui e ali surgem luzes que iluminam, rasgões no escuro e sem continuidade, a cara encarquilhada de minha avó, os vestidos de chita de mamãe, o paletó de linho branco e botas lustrosas de meu padrinho, pai de Clarice, os chocalhos balançando nos pescoços das vacas leiteiras quando saíam de manhã cedo para pastar e voltavam de tarde para o curral, o pião que eu jogava na calçada alta de cimento da casa-grande, os papagaios a voar quando o nordeste chegava quente soprando galhos secos, o meu carneirinho branco no qual eu montava antes de levá-lo ao chiqueiro no final da tarde, o gibão, perneiras, peitoral e chapéu de couro de Seu Rodolfo, pai de meu amigo Arnaldo e marido da bela Vitória.

Vitória… Devo falar também dela? Me lembro que, na janela pobre, exibia um sorriso misterioso para mim em dentes perfeitamente alinhados, vestido leve e decotado mostrando o vinco entre os peitos. Não, não vou falar dela. É só uma imagem de passagem, um sorriso na janela, um desejo de menino.

Olhando nas cinzas do passado, vejo mãos calejadas no cabo da enxada e outras, delicadas, de Clarice, acariciando as bolhas de minha catapora, que ela queria pegar. Vejo os campos de algodão, branquinhos, muito branquinhos, subindo e descendo morros a perder de vista, e Arnaldo chamando-me para caçar avoantes, que chamávamos avoetes; para acompanhá-lo em algum trabalho, sempre em lombo de burro. E depois ouço suas gargalhadas cúmplices pelo caminho, vozes ásperas me dando ordens, outras me acalentando.

De repente surge minha irmã Zuleide, que hoje mora em Recife, dois anos mais velha do que eu, arengando comigo por causa de uma brincadeira que eu não entendia e continuo não entendendo. Pedaços do passado que chegam me assustando ou me convidando a um reencontro. É o que vejo; o que ouço. O resto imagino, e devo descrever?

Fecho os olhos. Lá no fundo aparece a paisagem do açude, de brilho pontuado por marrecos e mergulhões. Ainda estão lá? Às vezes descia com Arnaldo, tangendo o jumento Cinzento até a vazante para colher capim, melancia ou jerimum. As melancias se espalhavam feito erva daninha, um tapete verde pelo meio das plantações de milho. Enchíamos os caçuás, e Cinzento penava subindo a ladeira empedrada para que depositássemos a carga nos tonéis dos armazéns ao lado da casa-grande.

21 de maio

Papai não aparece por esses rasgões de luz que vejo nas cortinas embotadas do passado. Minto. Ele aparece, e muito, quando vejo, assombrado, o que não vi: a faca dilacerando sua barriga, o sangue escoando feito rio pelo chão, o cadáver encostado na porta de um beco de Várzea Pacífica, a cidadezinha perto da fazenda do Riacho Negro onde morávamos…

E então talvez quando o que vi com apenas dois anos, não tenho certeza, as imagens estão fora de foco: uma cova funda, um montículo de terra com flores e uma cruz… Ele é uma história terrível que me angustia sempre. Ou então é uma fotografia junto com mamãe, fotografia retocada a cores, na qual o rosto preto de mamãe está rosado e seus lábios trazem um batom de um vermelho que nunca vi ao vivo. Uma fotografia emoldurada e pendurada na parede da sala de nossa casa pobre, de tijolo vermelho.

O assassinato de papai cozinha alguma coisa dentro de mim, uma coisa que vai explodir, tenho certeza. Vingança? Quando eu chegar ao Riacho Negro e sobretudo quando visitar Várzea Pacífica, ainda vou me deparar com esse fato do passado que não para de me atormentar. Enfrentar necessariamente o assassino.

Parto dentro de uma semana, está tudo certo. Fujo da secura que começa. Não tem caído pingo d’água neste planalto.

Clarice me enviou a escritura do terreno que comprei por procuração. Arrumei minhas coisas e despachei há exatamente treze dias uma pequena mudança, que Arnaldo vai receber e acomodar na casa da fazenda. Encarreguei-o também de comprar sementes de algodão para o plantio, quando eu chegar.

 

 

2. Voo Brasília-Fortaleza

1º de junho

O avião subiu faz pouco. Voo Brasília-Fortaleza. Agora que Patrícia me deixou, deixo Taguatinga. Digo que foi ela que me deixou, embora seja eu que parti, pois a iniciativa foi dela, não há dúvida.

Teve razão e coragem. Eu não teria nem uma coisa nem outra. Mas fico matutando se o medo às vezes é que tem razão. A despedida foi dura e fria.

Seja feliz, ela disse, como se dissesse que se foda.

Você também, respondi.

A separação foi amigável, e muita coisa ainda tem que ser decidida. Ela ficou com a maior parte dos bens, inclusive a casa, mas não exige dinheiro. Combinamos que vamos formalizar o divórcio, porém não começamos a cuidar dos papéis. Sugeri aguardar um pouco, testar como vamos nos sentir com a separação.

Não tem volta, foi categórica.

Olhando as chapadas pela janela do avião — será a Mantiqueira? —, deixo aparecer outro ser que vivia dentro de mim, outro de mim contra quem sempre lutei. Ser triste, de tristeza terna e contente, que se relaxa na sua própria natureza. Que talvez queira encontrar futuro no passado, tenho de admitir. A gente não tem controle sobre o que se lembra. E o que se lembra pode insistir em nunca ir embora, até acorda a gente de madrugada. Pode estar pra cá ou pra lá do que aconteceu.

Às vezes fica difícil traçar a fronteira entre lembrança e imaginação. Às vezes a realidade se impõe às duas. Às vezes a fazenda que pertencia a meu padrinho me traz más lembranças. A fazenda ficava a três léguas de Várzea Pacífica, que, quando eu era criança, nem várzea nem pacífica era. Ali a vegetação secava no verão — isso imagino que ainda acontece — e, por qualquer coisa, armava-se o maior cu de boi. Assassinatos a todo tempo. Terríveis assassinatos! A mais terrível de todas as lembranças me chega por tabela, lembrança de lembranças. Papai assassinado a peixeiradas. Ainda vejo o sangue saindo de sua barriga, esguichado, desparramando-se pelo chão.

Lembranças mesmo, quando tenho, são vagas, de gritos, portas batendo, eu correndo por um descampado sem fim. Eu seguia caminhos sinuosos e esburacados ouvindo choros fortes de mulher, acho que de mamãe, de vovó. Finalmente chegamos ao lugar de chão ondulado e marcado por cruzes, onde, ao lado de um buraco sem fim, foi depositado o caixão que não sei se vi ou imaginei, em madeira lisa e pintada de preto. O montículo de terra ali ao lado me parecia uma montanha também infindável, montanha que eu não conseguia escalar. Lágrimas ainda caem de meus olhos pelo que não vi, me desculpo uma vez mais com quem tem paciência de continuar me lendo.

Como posso me lembrar direito? Tinha só dois anos. Sei da violência do assassinato de papai pelos relatos que ouvi anos depois. Mais de vinte peixeiradas, sangue escorrendo pela calçada. Sangue, muito sangue, um vermelho que mancha todas as minhas lembranças.

Sempre pensava naquele crime quando assistia à morte das novilhas no curral, vendo as machadadas, a carne esfolada e o sangue escrevendo garranchos no tapete de estrume, preto e fofo.

O assassino, preso, nunca admitiu o crime. Sujeitinho nojento, filho da puta. Não há dúvida: teve uma rixa com papai por uma migalhice — papai se recusou a pagar por um gibão de couro malfeito — e era assassino confesso de outras quatro vítimas. Cabra ranzinza, irritadiço, que batia na mulher aos murros. A filha, de tanto levar chibatada, enlouqueceu, foi o que me contou há muitos anos Arnaldo, aquele meu amigo de infância com quem troco mensagens por WhatsApp.

Li uma vez que é somente nos vivos que os mortos existem, assim como será apenas nos vivos que estas anotações podem sobreviver depois de minha morte. Papai é um morto que vive em mim. Por que ainda quero vingar sua morte depois de tanto tempo? A verdade é que quero. Aparece cada vez mais como necessidade, necessidade de um velho, necessidade cada vez mais urgente, como se me faltasse o que preciso fazer para me sentir completo.

Só de pensar que posso me encontrar com o assassino, o sangue sobe à cabeça. À medida que os dias passam, vejo que me sobra pouco tempo para cumprir minha missão. Claro que não foi só por causa de Clarice que comprei o terreno. Volto pra perto do desgraçado, o filho da puta. Saiu da prisão há vários anos. Nunca o procurei, mas hoje sei que, se o encontrar, eu o mato. Tenho de matá-lo. Não me importa nada passar o resto da vida na cadeia. Quem lamentaria? Meus três filhos, sei que não. Talvez minha irmã Zuleide… Falo tão pouco com ela! Na verdade, faz dois anos que não a vejo. Para Patrícia, preso ou não, tanto faz, deve estar contente de se livrar de mim. E, se eu morrer, será minha morte gloriosa, pelo melhor dos objetivos, me entendam ou não. Trago na bagagem um revólver.

 

 

7 de maio

 

Quando penso na viagem em breve ao Riacho Negro, o passado assume tonalidades acinzentadas, vago e fora de foco. Aqui e ali surgem luzes que iluminam, rasgões no escuro e sem continuidade, a cara encarquilhada de minha avó, os vestidos de chita de mamãe, o paletó de linho branco e botas lustrosas de meu padrinho, pai de Clarice, os chocalhos balançando nos pescoços das vacas leiteiras quando saíam de manhã cedo para pastar e voltavam de tarde para o curral, o pião que eu jogava na calçada alta de cimento da casa-grande, os papagaios a voar quando o nordeste chegava quente soprando galhos secos, o meu carneirinho branco no qual eu montava antes de levá-lo ao chiqueiro no final da tarde, o gibão, perneiras, peitoral e chapéu de couro de Seu Rodolfo, pai de meu amigo Arnaldo e marido da bela Vitória.

Vitória… Devo falar também dela? Me lembro que, na janela pobre, exibia um sorriso misterioso para mim em dentes perfeitamente alinhados, vestido leve e decotado mostrando o vinco entre os peitos. Não, não vou falar dela. É só uma imagem de passagem, um sorriso na janela, um desejo de menino.

Olhando nas cinzas do passado, vejo mãos calejadas no cabo da enxada e outras, delicadas, de Clarice, acariciando as bolhas de minha catapora, que ela queria pegar. Vejo os campos de algodão, branquinhos, muito branquinhos, subindo e descendo morros a perder de vista, e Arnaldo chamando-me para caçar avoantes, que chamávamos avoetes; para acompanhá-lo em algum trabalho, sempre em lombo de burro. E depois ouço suas gargalhadas cúmplices pelo caminho, vozes ásperas me dando ordens, outras me acalentando.

De repente surge minha irmã Zuleide, que hoje mora em Recife, dois anos mais velha do que eu, arengando comigo por causa de uma brincadeira que eu não entendia e continuo não entendendo. Pedaços do passado que chegam me assustando ou me convidando a um reencontro. É o que vejo; o que ouço. O resto imagino, e devo descrever?

Fecho os olhos. Lá no fundo aparece a paisagem do açude, de brilho pontuado por marrecos e mergulhões. Ainda estão lá? Às vezes descia com Arnaldo, tangendo o jumento Cinzento até a vazante para colher capim, melancia ou jerimum. As melancias se espalhavam feito erva daninha, um tapete verde pelo meio das plantações de milho. Enchíamos os caçuás, e Cinzento penava subindo a ladeira empedrada para que depositássemos a carga nos tonéis dos armazéns ao lado da casa-grande.

 

21 de maio

Papai não aparece por esses rasgões de luz que vejo nas cortinas embotadas do passado. Minto. Ele aparece, e muito, quando vejo, assombrado, o que não vi: a faca dilacerando sua barriga, o sangue escoando feito rio pelo chão, o cadáver encostado na porta de um beco de Várzea Pacífica, a cidadezinha perto da fazenda do Riacho Negro onde morávamos…

E então talvez quando o que vi com apenas dois anos, não tenho certeza, as imagens estão fora de foco: uma cova funda, um montículo de terra com flores e uma cruz… Ele é uma história terrível que me angustia sempre. Ou então é uma fotografia junto com mamãe, fotografia retocada a cores, na qual o rosto preto de mamãe está rosado e seus lábios trazem um batom de um vermelho que nunca vi ao vivo. Uma fotografia emoldurada e pendurada na parede da sala de nossa casa pobre, de tijolo vermelho.

O assassinato de papai cozinha alguma coisa dentro de mim, uma coisa que vai explodir, tenho certeza. Vingança? Quando eu chegar ao Riacho Negro e sobretudo quando visitar Várzea Pacífica, ainda vou me deparar com esse fato do passado que não para de me atormentar. Enfrentar necessariamente o assassino.


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