Entrevista a Juliana Krapp sobre ENTRE FACAS, ALGODÃO

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Numa espécie de diário, um advogado em fim de carreira descreve como decide abandonar a mulher e a vida em Taguatinga, no Planalto Central, para reencontrar o passado. Aos 70 anos, o protagonista de Entre facas, algodão retorna à periferia rural onde passou a infância. Busca o amor de menino, o acerto de contas com as dúvidas da memória e a vingança pela morte do pai. Acaba se confrontando com uma realidade traiçoeira, repleta de surpresas e de desvios.

Em seu sétimo romance, João Almino lança mão de Brasília, cenário primordial de sua obra, apenas como ponto de partida e de chegada, cedendo espaço a um mergulho inédito no universo do Nordeste brasileiro. Nessa investida, deixa ainda mais intensa a dicção enxuta que marca sua trajetória — três décadas de produção literária, que acabam de torná-lo o mais novo imortal da Academia Brasileira de Letras.

1. O senhor já afirmou algumas vezes que a construção dos personagens costuma ser o passo inicial em seu processo de criação. Como nasceu o protagonista de “Entre facas, algodão”?
O Nordeste esteve presente em minha literatura através de personagens que migraram para Brasília. Do Nordeste vem a Profetisa Íris Quelemém, do meu primeiro romance, Ideias para Onde Passar o Fim de Mundo, referência a Guimarães Rosa. Ela está em todos os seis romances meus já publicados. Do Nordeste vem Berenice, que também vinda do meu primeiro romance, reaparece em Samba-Enredo, em As cinco estações do amor e em O livro das emoções. Do Nordeste vem Valdivino, que costura as histórias de Cidade Livre, meu quinto romance. Mas ainda não havia dado a voz a um dos personagens nordestinos em primeira pessoa. Senti que deveria agora suprir esta lacuna proposital. Achei que deveria manter a região de Brasília como ponto de partida e de chegada. Mas meu personagem faria uma viagem de regresso a seu Nordeste natal. E então construí sua biografia. Pensei nos seus fantasmas e nas suas fantasias de infância, na sua identidade. E fui costurando sua memória falha nos pontos geográficos de sua viagem presente.
2. Memória e identidade são temas centrais neste romance. Mas trata-se de uma trama traiçoeira, na qual esses dois elementos — memória e identidade — revelam-se movediços, peças à mercê de uma violência que parece inerente à vida. Como transformar essa instabilidade do cotidiano em jogo literário?
Você captou bem. Memória e identidade, recorrentes em minha literatura, são elementos fundamentais de compreensão do mundo. No entanto, são objeto de uma busca permanente. Memória parcial. Identidade múltipla e em aberto. Essa instabilidade cria narrativas, que a literatura problematiza, exercendo seu papel.
3. Brasília tem sido cenário primordial em seus livros. Mas agora a cena se desloca para o interior cearense ou potiguar. Ou melhor: esta nova trama serpeia entre Taguatinga, no Planalto Central, e o lugarejo de Várzea Pacífica — com passagens por Brasília e Fortaleza. Quais os desafios de lançar luz, via ficção, ao Brasil periférico e rural? Este tem sido um espaço negligenciado pela prosa contemporânea?
Sim, muito da melhor tradição literária brasileira é a urbana das grandes cidades. Apenas para citar os maiores, se Machado está para aquela tradição, Graciliano está para esta outra, que lança um olhar aguçado para a pequena cidade e para o mundo rural. O Brasil profundo está em ambos os universos. Brasília, terceira cidade mais populosa do Brasil, está no primeiro, e seu entorno em grande medida no segundo. Para lançar luz, via ficção, sobre o Brasil periférico e rural do sertão nordestino, não é bom romantizar nem apenas realçar suas grandes mazelas. É preciso compaixão, mais do que escrutínio sociológico ou antropológico. Isso é possível através de personagens que tenham vida dentro das realidades e verdades da ficção.
4. Mossoró, onde o senhor nasceu, guarda muitas semelhanças com Várzea Pacífica? Qual o papel de sua própria memória nessa narrativa?
As memórias neste livro, memórias movediças, são inventadas. Mas os espaços físicos percorridos pelo personagem central são conhecidos meus. Isso facilita meu trabalho de descrição e fornece um sentido mais claro de verossimilhança. Várzea Pacífica, porém, se parece menos com Mossoró do que com pequenas cidades sertanejas do interior do Ceará e do Rio Grande do Norte onde estive quando criança.
5. “Entre facas, algodão” seria sua obra-prima, afirma o pesquisador alemão Hans Ulrich Gumbrecht, no posfácio ao livro. Como este novo romance se distingue de seus livros anteriores?
Espero que Gumbrecht tenha razão, pois gosto de pensar que o tempo pode nos ensinar a ser melhores no que fazemos. Algo parecido com este meu novo romance poderia ter sido o meu primeiro, se não fosse a preocupação que tive, no início, de não situar as histórias no Nordeste para não cair na armadilha de me situar ou ser situado dentro de uma tradição forte e vista por muitos como regionalista. Brasília era território inexplorado, sem clara tradição literária, propícia ao novo, um mito para ser desmistificado e que, por ser cruzamento de brasis, me dava a oportunidade de ali acolher também o Nordeste. Depois de seis romances, relaxei. Vou direto para o Nordeste. O novo romance também se distingue dos demais pela forma. Do ponto de vista da linguagem, da própria técnica, da estrutura, da perspectiva do narrador, procurei a cada livro não me repetir. Para este levei ao ponto mais alto o esforço de limpidez, enxugamento e simplificação, para retratar a secura nordestina. Sem querer me comparar e apenas para prestar as devidas homenagens, é o que fizeram João Cabral e Graciliano Ramos.
6. Desejo, sensualidade e paixão também são elementos marcantes na história narrada em “Entre facas, algodão”. Ao mesmo tempo, há volúpia na fluidez narrativa que é uma das marcas de seu trabalho. A aparente simplicidade de sua escrita — resultado, claro, de intensa sofisticação estética — contrasta com a volúpia que emerge de seus personagens. O quão fundamental é essa volúpia na sua criação literária?
Volúpia é vida. Está também na forma, não só no que é contado. Está na sedução da própria escrita, no prazer obtido pelo encadeamento exato de palavras, no encontro feliz entre a linguagem popular e a erudita. No prazer que vem da escolha do melhor, do que pode ser saboreado muitas vezes, sem que se perca o gosto quando se tem gosto apurado. E tudo isso para que o prazer da escrita se encontre com o prazer da leitura. Isso não se faz sem esforço paciente. Não está isento de sacrifício. Não tenho pena dos personagens. Posso fazê-los sofrer. Mas, quando o faço, é para aumentar o prazer da leitura. Não só porque a leitora e o leitor podem sentir aquilo que os alemães chamam de schadenfreude, ou seja, sentir prazer com o infortúnio alheio. Sobretudo porque podem reavivar sua compaixão, seu desejo, amor, ódio e toda uma gama de sentimentos. O que faz a leitora e leitor sofrerem não é o personagem mau ou maltratado; é a má e maltratada escrita.
7. Não é de hoje que os dispositivos tecnológicos têm lugar de destaque em seus romances, criando um tom contemporâneo que é muito marcante em sua obra. Mas se apropriar do aparato comunicacional de nossos tempos não é tarefa fácil para a maioria dos escritores. Como o senhor trabalha para integrar esse tipo de comunicação contemporânea — WhatsApp e Facebook, por exemplo — às suas narrativas?
Muito se tem falado das linguagens que vêm surgindo, às vezes com a insinuação de que ameaçam de morte a linguagem literária. Ela cederia ao cinema (o escritor escreveria já pensando na apropriação cinematográfica de seu texto). Haveria o empobrecimento da linguagem advindo da internet, do uso do blog, das redes sociais. A era das imagens relegaria a segundo plano a linguagem escrita. Às vezes isso vem acompanhado de um lamento. Procurei tomar um partido pela literatura e pela linguagem literária propriamente dita, mostrando que, ao contrário do que alguns pensam, elas têm a capacidade de assimilar todas as outras formas de expressão artística, sem qualquer subordinação. Por isso meu romance em que o narrador escrevia um roteiro de cinema (Ideias para onde passar o fim do mundo) jamais poderia ser um roteiro de cinema. A máquina ou computador do futuro, narrador de meu romance Samba-Enredo, não se presta a uma ficção científica, mas a uma visão humana e próxima de nosso próprio tempo. Em O livro das emoções, descrição de 62 fotografias, elas não são vistas. Somente podem ser lidas. São palavras. Cidade Livre, que foi postado num blog e comentado por blogueiros, não utiliza a linguagem do blog. O WhatsApp e o Facebook podem entrar num romance contemporâneo brasileiro porque são parte integrante e visível do cotidiano brasileiro e das relações que se estabelecem entre as pessoas. Esse diálogo entre as formas de expressão, ao invés de empobrecer ou relegar a segundo plano a literatura, pode enriquecê-la. O mundo muda, e a literatura com ele. O que salva o leitor da mediocridade é a linguagem literária. Ela pode manter sua elegância e beleza estando atenta não apenas às normas cultas, mas também às formas populares e de criação popular. Não precisamos de defender a literatura nem nos lamentarmos por sua guerra perdida. Vamos para o ataque.
8. O senhor tomou posse, em julho deste ano, na Academia Brasileira de Letras. É uma grande conquista, imagino que motivo de muita alegria. Há algo que o tenha surpreendido na experiência de se tornar um autor imortal?
Fiquei surpreso quanto ao grau com que essa alegria foi compartida por muitos. Onde quer que estive somente recebi manifestações de contentamento e de carinho, no Nordeste, em Brasília e até mesmo no Sul do país.
9. Já há planos para um novo livro? Quais seus projetos atuais?
Vai sair quase ao mesmo tempo que o romance um livrinho de ensaios sobre utopia. E um novo romance está a caminho. Prefiro não falar dele, porque sinto que é, embora não deseje que seja, da família daqueles meus projetos do passado que levaram sete anos para serem concluídos.

[:en]Numa espécie de diário, um advogado em fim de carreira descreve como decide abandonar a mulher e a vida em Taguatinga, no Planalto Central, para reencontrar o passado. Aos 70 anos, o protagonista de Entre facas, algodão retorna à periferia rural onde passou a infância. Busca o amor de menino, o acerto de contas com as dúvidas da memória e a vingança pela morte do pai. Acaba se confrontando com uma realidade traiçoeira, repleta de surpresas e de desvios.

Em seu sétimo romance, João Almino lança mão de Brasília, cenário primordial de sua obra, apenas como ponto de partida e de chegada, cedendo espaço a um mergulho inédito no universo do Nordeste brasileiro. Nessa investida, deixa ainda mais intensa a dicção enxuta que marca sua trajetória — três décadas de produção literária, que acabam de torná-lo o mais novo imortal da Academia Brasileira de Letras.

1. O senhor já afirmou algumas vezes que a construção dos personagens costuma ser o passo inicial em seu processo de criação. Como nasceu o protagonista de “Entre facas, algodão”?
O Nordeste esteve presente em minha literatura através de personagens que migraram para Brasília. Do Nordeste vem a Profetisa Íris Quelemém, do meu primeiro romance, Ideias para Onde Passar o Fim de Mundo, referência a Guimarães Rosa. Ela está em todos os seis romances meus já publicados. Do Nordeste vem Berenice, que também vinda do meu primeiro romance, reaparece em Samba-Enredo, em As cinco estações do amor e em O livro das emoções. Do Nordeste vem Valdivino, que costura as histórias de Cidade Livre, meu quinto romance. Mas ainda não havia dado a voz a um dos personagens nordestinos em primeira pessoa. Senti que deveria agora suprir esta lacuna proposital. Achei que deveria manter a região de Brasília como ponto de partida e de chegada. Mas meu personagem faria uma viagem de regresso a seu Nordeste natal. E então construí sua biografia. Pensei nos seus fantasmas e nas suas fantasias de infância, na sua identidade. E fui costurando sua memória falha nos pontos geográficos de sua viagem presente.
2. Memória e identidade são temas centrais neste romance. Mas trata-se de uma trama traiçoeira, na qual esses dois elementos — memória e identidade — revelam-se movediços, peças à mercê de uma violência que parece inerente à vida. Como transformar essa instabilidade do cotidiano em jogo literário?
Você captou bem. Memória e identidade, recorrentes em minha literatura, são elementos fundamentais de compreensão do mundo. No entanto, são objeto de uma busca permanente. Memória parcial. Identidade múltipla e em aberto. Essa instabilidade cria narrativas, que a literatura problematiza, exercendo seu papel.
3. Brasília tem sido cenário primordial em seus livros. Mas agora a cena se desloca para o interior cearense ou potiguar. Ou melhor: esta nova trama serpeia entre Taguatinga, no Planalto Central, e o lugarejo de Várzea Pacífica — com passagens por Brasília e Fortaleza. Quais os desafios de lançar luz, via ficção, ao Brasil periférico e rural? Este tem sido um espaço negligenciado pela prosa contemporânea?
Sim, muito da melhor tradição literária brasileira é a urbana das grandes cidades. Apenas para citar os maiores, se Machado está para aquela tradição, Graciliano está para esta outra, que lança um olhar aguçado para a pequena cidade e para o mundo rural. O Brasil profundo está em ambos os universos. Brasília, terceira cidade mais populosa do Brasil, está no primeiro, e seu entorno em grande medida no segundo. Para lançar luz, via ficção, sobre o Brasil periférico e rural do sertão nordestino, não é bom romantizar nem apenas realçar suas grandes mazelas. É preciso compaixão, mais do que escrutínio sociológico ou antropológico. Isso é possível através de personagens que tenham vida dentro das realidades e verdades da ficção.
4. Mossoró, onde o senhor nasceu, guarda muitas semelhanças com Várzea Pacífica? Qual o papel de sua própria memória nessa narrativa?
As memórias neste livro, memórias movediças, são inventadas. Mas os espaços físicos percorridos pelo personagem central são conhecidos meus. Isso facilita meu trabalho de descrição e fornece um sentido mais claro de verossimilhança. Várzea Pacífica, porém, se parece menos com Mossoró do que com pequenas cidades sertanejas do interior do Ceará e do Rio Grande do Norte onde estive quando criança.
5. “Entre facas, algodão” seria sua obra-prima, afirma o pesquisador alemão Hans Ulrich Gumbrecht, no posfácio ao livro. Como este novo romance se distingue de seus livros anteriores?
Espero que Gumbrecht tenha razão, pois gosto de pensar que o tempo pode nos ensinar a ser melhores no que fazemos. Algo parecido com este meu novo romance poderia ter sido o meu primeiro, se não fosse a preocupação que tive, no início, de não situar as histórias no Nordeste para não cair na armadilha de me situar ou ser situado dentro de uma tradição forte e vista por muitos como regionalista. Brasília era território inexplorado, sem clara tradição literária, propícia ao novo, um mito para ser desmistificado e que, por ser cruzamento de brasis, me dava a oportunidade de ali acolher também o Nordeste. Depois de seis romances, relaxei. Vou direto para o Nordeste. O novo romance também se distingue dos demais pela forma. Do ponto de vista da linguagem, da própria técnica, da estrutura, da perspectiva do narrador, procurei a cada livro não me repetir. Para este levei ao ponto mais alto o esforço de limpidez, enxugamento e simplificação, para retratar a secura nordestina. Sem querer me comparar e apenas para prestar as devidas homenagens, é o que fizeram João Cabral e Graciliano Ramos.
6. Desejo, sensualidade e paixão também são elementos marcantes na história narrada em “Entre facas, algodão”. Ao mesmo tempo, há volúpia na fluidez narrativa que é uma das marcas de seu trabalho. A aparente simplicidade de sua escrita — resultado, claro, de intensa sofisticação estética — contrasta com a volúpia que emerge de seus personagens. O quão fundamental é essa volúpia na sua criação literária?
Volúpia é vida. Está também na forma, não só no que é contado. Está na sedução da própria escrita, no prazer obtido pelo encadeamento exato de palavras, no encontro feliz entre a linguagem popular e a erudita. No prazer que vem da escolha do melhor, do que pode ser saboreado muitas vezes, sem que se perca o gosto quando se tem gosto apurado. E tudo isso para que o prazer da escrita se encontre com o prazer da leitura. Isso não se faz sem esforço paciente. Não está isento de sacrifício. Não tenho pena dos personagens. Posso fazê-los sofrer. Mas, quando o faço, é para aumentar o prazer da leitura. Não só porque a leitora e o leitor podem sentir aquilo que os alemães chamam de schadenfreude, ou seja, sentir prazer com o infortúnio alheio. Sobretudo porque podem reavivar sua compaixão, seu desejo, amor, ódio e toda uma gama de sentimentos. O que faz a leitora e leitor sofrerem não é o personagem mau ou maltratado; é a má e maltratada escrita.
7. Não é de hoje que os dispositivos tecnológicos têm lugar de destaque em seus romances, criando um tom contemporâneo que é muito marcante em sua obra. Mas se apropriar do aparato comunicacional de nossos tempos não é tarefa fácil para a maioria dos escritores. Como o senhor trabalha para integrar esse tipo de comunicação contemporânea — WhatsApp e Facebook, por exemplo — às suas narrativas?
Muito se tem falado das linguagens que vêm surgindo, às vezes com a insinuação de que ameaçam de morte a linguagem literária. Ela cederia ao cinema (o escritor escreveria já pensando na apropriação cinematográfica de seu texto). Haveria o empobrecimento da linguagem advindo da internet, do uso do blog, das redes sociais. A era das imagens relegaria a segundo plano a linguagem escrita. Às vezes isso vem acompanhado de um lamento. Procurei tomar um partido pela literatura e pela linguagem literária propriamente dita, mostrando que, ao contrário do que alguns pensam, elas têm a capacidade de assimilar todas as outras formas de expressão artística, sem qualquer subordinação. Por isso meu romance em que o narrador escrevia um roteiro de cinema (Ideias para onde passar o fim do mundo) jamais poderia ser um roteiro de cinema. A máquina ou computador do futuro, narrador de meu romance Samba-Enredo, não se presta a uma ficção científica, mas a uma visão humana e próxima de nosso próprio tempo. Em O livro das emoções, descrição de 62 fotografias, elas não são vistas. Somente podem ser lidas. São palavras. Cidade Livre, que foi postado num blog e comentado por blogueiros, não utiliza a linguagem do blog. O WhatsApp e o Facebook podem entrar num romance contemporâneo brasileiro porque são parte integrante e visível do cotidiano brasileiro e das relações que se estabelecem entre as pessoas. Esse diálogo entre as formas de expressão, ao invés de empobrecer ou relegar a segundo plano a literatura, pode enriquecê-la. O mundo muda, e a literatura com ele. O que salva o leitor da mediocridade é a linguagem literária. Ela pode manter sua elegância e beleza estando atenta não apenas às normas cultas, mas também às formas populares e de criação popular. Não precisamos de defender a literatura nem nos lamentarmos por sua guerra perdida. Vamos para o ataque.
8. O senhor tomou posse, em julho deste ano, na Academia Brasileira de Letras. É uma grande conquista, imagino que motivo de muita alegria. Há algo que o tenha surpreendido na experiência de se tornar um autor imortal?
Fiquei surpreso quanto ao grau com que essa alegria foi compartida por muitos. Onde quer que estive somente recebi manifestações de contentamento e de carinho, no Nordeste, em Brasília e até mesmo no Sul do país.
9. Já há planos para um novo livro? Quais seus projetos atuais?
Vai sair quase ao mesmo tempo que o romance um livrinho de ensaios sobre utopia. E um novo romance está a caminho. Prefiro não falar dele, porque sinto que é, embora não deseje que seja, da família daqueles meus projetos do passado que levaram sete anos para serem concluídos.
[:es]Numa espécie de diário, um advogado em fim de carreira descreve como decide abandonar a mulher e a vida em Taguatinga, no Planalto Central, para reencontrar o passado. Aos 70 anos, o protagonista de Entre facas, algodão retorna à periferia rural onde passou a infância. Busca o amor de menino, o acerto de contas com as dúvidas da memória e a vingança pela morte do pai. Acaba se confrontando com uma realidade traiçoeira, repleta de surpresas e de desvios.

Em seu sétimo romance, João Almino lança mão de Brasília, cenário primordial de sua obra, apenas como ponto de partida e de chegada, cedendo espaço a um mergulho inédito no universo do Nordeste brasileiro. Nessa investida, deixa ainda mais intensa a dicção enxuta que marca sua trajetória — três décadas de produção literária, que acabam de torná-lo o mais novo imortal da Academia Brasileira de Letras.

1. O senhor já afirmou algumas vezes que a construção dos personagens costuma ser o passo inicial em seu processo de criação. Como nasceu o protagonista de “Entre facas, algodão”?
O Nordeste esteve presente em minha literatura através de personagens que migraram para Brasília. Do Nordeste vem a Profetisa Íris Quelemém, do meu primeiro romance, Ideias para Onde Passar o Fim de Mundo, referência a Guimarães Rosa. Ela está em todos os seis romances meus já publicados. Do Nordeste vem Berenice, que também vinda do meu primeiro romance, reaparece em Samba-Enredo, em As cinco estações do amor e em O livro das emoções. Do Nordeste vem Valdivino, que costura as histórias de Cidade Livre, meu quinto romance. Mas ainda não havia dado a voz a um dos personagens nordestinos em primeira pessoa. Senti que deveria agora suprir esta lacuna proposital. Achei que deveria manter a região de Brasília como ponto de partida e de chegada. Mas meu personagem faria uma viagem de regresso a seu Nordeste natal. E então construí sua biografia. Pensei nos seus fantasmas e nas suas fantasias de infância, na sua identidade. E fui costurando sua memória falha nos pontos geográficos de sua viagem presente.
2. Memória e identidade são temas centrais neste romance. Mas trata-se de uma trama traiçoeira, na qual esses dois elementos — memória e identidade — revelam-se movediços, peças à mercê de uma violência que parece inerente à vida. Como transformar essa instabilidade do cotidiano em jogo literário?
Você captou bem. Memória e identidade, recorrentes em minha literatura, são elementos fundamentais de compreensão do mundo. No entanto, são objeto de uma busca permanente. Memória parcial. Identidade múltipla e em aberto. Essa instabilidade cria narrativas, que a literatura problematiza, exercendo seu papel.
3. Brasília tem sido cenário primordial em seus livros. Mas agora a cena se desloca para o interior cearense ou potiguar. Ou melhor: esta nova trama serpeia entre Taguatinga, no Planalto Central, e o lugarejo de Várzea Pacífica — com passagens por Brasília e Fortaleza. Quais os desafios de lançar luz, via ficção, ao Brasil periférico e rural? Este tem sido um espaço negligenciado pela prosa contemporânea?
Sim, muito da melhor tradição literária brasileira é a urbana das grandes cidades. Apenas para citar os maiores, se Machado está para aquela tradição, Graciliano está para esta outra, que lança um olhar aguçado para a pequena cidade e para o mundo rural. O Brasil profundo está em ambos os universos. Brasília, terceira cidade mais populosa do Brasil, está no primeiro, e seu entorno em grande medida no segundo. Para lançar luz, via ficção, sobre o Brasil periférico e rural do sertão nordestino, não é bom romantizar nem apenas realçar suas grandes mazelas. É preciso compaixão, mais do que escrutínio sociológico ou antropológico. Isso é possível através de personagens que tenham vida dentro das realidades e verdades da ficção.
4. Mossoró, onde o senhor nasceu, guarda muitas semelhanças com Várzea Pacífica? Qual o papel de sua própria memória nessa narrativa?
As memórias neste livro, memórias movediças, são inventadas. Mas os espaços físicos percorridos pelo personagem central são conhecidos meus. Isso facilita meu trabalho de descrição e fornece um sentido mais claro de verossimilhança. Várzea Pacífica, porém, se parece menos com Mossoró do que com pequenas cidades sertanejas do interior do Ceará e do Rio Grande do Norte onde estive quando criança.
5. “Entre facas, algodão” seria sua obra-prima, afirma o pesquisador alemão Hans Ulrich Gumbrecht, no posfácio ao livro. Como este novo romance se distingue de seus livros anteriores?
Espero que Gumbrecht tenha razão, pois gosto de pensar que o tempo pode nos ensinar a ser melhores no que fazemos. Algo parecido com este meu novo romance poderia ter sido o meu primeiro, se não fosse a preocupação que tive, no início, de não situar as histórias no Nordeste para não cair na armadilha de me situar ou ser situado dentro de uma tradição forte e vista por muitos como regionalista. Brasília era território inexplorado, sem clara tradição literária, propícia ao novo, um mito para ser desmistificado e que, por ser cruzamento de brasis, me dava a oportunidade de ali acolher também o Nordeste. Depois de seis romances, relaxei. Vou direto para o Nordeste. O novo romance também se distingue dos demais pela forma. Do ponto de vista da linguagem, da própria técnica, da estrutura, da perspectiva do narrador, procurei a cada livro não me repetir. Para este levei ao ponto mais alto o esforço de limpidez, enxugamento e simplificação, para retratar a secura nordestina. Sem querer me comparar e apenas para prestar as devidas homenagens, é o que fizeram João Cabral e Graciliano Ramos.
6. Desejo, sensualidade e paixão também são elementos marcantes na história narrada em “Entre facas, algodão”. Ao mesmo tempo, há volúpia na fluidez narrativa que é uma das marcas de seu trabalho. A aparente simplicidade de sua escrita — resultado, claro, de intensa sofisticação estética — contrasta com a volúpia que emerge de seus personagens. O quão fundamental é essa volúpia na sua criação literária?
Volúpia é vida. Está também na forma, não só no que é contado. Está na sedução da própria escrita, no prazer obtido pelo encadeamento exato de palavras, no encontro feliz entre a linguagem popular e a erudita. No prazer que vem da escolha do melhor, do que pode ser saboreado muitas vezes, sem que se perca o gosto quando se tem gosto apurado. E tudo isso para que o prazer da escrita se encontre com o prazer da leitura. Isso não se faz sem esforço paciente. Não está isento de sacrifício. Não tenho pena dos personagens. Posso fazê-los sofrer. Mas, quando o faço, é para aumentar o prazer da leitura. Não só porque a leitora e o leitor podem sentir aquilo que os alemães chamam de schadenfreude, ou seja, sentir prazer com o infortúnio alheio. Sobretudo porque podem reavivar sua compaixão, seu desejo, amor, ódio e toda uma gama de sentimentos. O que faz a leitora e leitor sofrerem não é o personagem mau ou maltratado; é a má e maltratada escrita.
7. Não é de hoje que os dispositivos tecnológicos têm lugar de destaque em seus romances, criando um tom contemporâneo que é muito marcante em sua obra. Mas se apropriar do aparato comunicacional de nossos tempos não é tarefa fácil para a maioria dos escritores. Como o senhor trabalha para integrar esse tipo de comunicação contemporânea — WhatsApp e Facebook, por exemplo — às suas narrativas?
Muito se tem falado das linguagens que vêm surgindo, às vezes com a insinuação de que ameaçam de morte a linguagem literária. Ela cederia ao cinema (o escritor escreveria já pensando na apropriação cinematográfica de seu texto). Haveria o empobrecimento da linguagem advindo da internet, do uso do blog, das redes sociais. A era das imagens relegaria a segundo plano a linguagem escrita. Às vezes isso vem acompanhado de um lamento. Procurei tomar um partido pela literatura e pela linguagem literária propriamente dita, mostrando que, ao contrário do que alguns pensam, elas têm a capacidade de assimilar todas as outras formas de expressão artística, sem qualquer subordinação. Por isso meu romance em que o narrador escrevia um roteiro de cinema (Ideias para onde passar o fim do mundo) jamais poderia ser um roteiro de cinema. A máquina ou computador do futuro, narrador de meu romance Samba-Enredo, não se presta a uma ficção científica, mas a uma visão humana e próxima de nosso próprio tempo. Em O livro das emoções, descrição de 62 fotografias, elas não são vistas. Somente podem ser lidas. São palavras. Cidade Livre, que foi postado num blog e comentado por blogueiros, não utiliza a linguagem do blog. O WhatsApp e o Facebook podem entrar num romance contemporâneo brasileiro porque são parte integrante e visível do cotidiano brasileiro e das relações que se estabelecem entre as pessoas. Esse diálogo entre as formas de expressão, ao invés de empobrecer ou relegar a segundo plano a literatura, pode enriquecê-la. O mundo muda, e a literatura com ele. O que salva o leitor da mediocridade é a linguagem literária. Ela pode manter sua elegância e beleza estando atenta não apenas às normas cultas, mas também às formas populares e de criação popular. Não precisamos de defender a literatura nem nos lamentarmos por sua guerra perdida. Vamos para o ataque.
8. O senhor tomou posse, em julho deste ano, na Academia Brasileira de Letras. É uma grande conquista, imagino que motivo de muita alegria. Há algo que o tenha surpreendido na experiência de se tornar um autor imortal?
Fiquei surpreso quanto ao grau com que essa alegria foi compartida por muitos. Onde quer que estive somente recebi manifestações de contentamento e de carinho, no Nordeste, em Brasília e até mesmo no Sul do país.
9. Já há planos para um novo livro? Quais seus projetos atuais?
Vai sair quase ao mesmo tempo que o romance um livrinho de ensaios sobre utopia. E um novo romance está a caminho. Prefiro não falar dele, porque sinto que é, embora não deseje que seja, da família daqueles meus projetos do passado que levaram sete anos para serem concluídos.
[:fr]Numa espécie de diário, um advogado em fim de carreira descreve como decide abandonar a mulher e a vida em Taguatinga, no Planalto Central, para reencontrar o passado. Aos 70 anos, o protagonista de Entre facas, algodão retorna à periferia rural onde passou a infância. Busca o amor de menino, o acerto de contas com as dúvidas da memória e a vingança pela morte do pai. Acaba se confrontando com uma realidade traiçoeira, repleta de surpresas e de desvios.

Em seu sétimo romance, João Almino lança mão de Brasília, cenário primordial de sua obra, apenas como ponto de partida e de chegada, cedendo espaço a um mergulho inédito no universo do Nordeste brasileiro. Nessa investida, deixa ainda mais intensa a dicção enxuta que marca sua trajetória — três décadas de produção literária, que acabam de torná-lo o mais novo imortal da Academia Brasileira de Letras.

1. O senhor já afirmou algumas vezes que a construção dos personagens costuma ser o passo inicial em seu processo de criação. Como nasceu o protagonista de “Entre facas, algodão”?
O Nordeste esteve presente em minha literatura através de personagens que migraram para Brasília. Do Nordeste vem a Profetisa Íris Quelemém, do meu primeiro romance, Ideias para Onde Passar o Fim de Mundo, referência a Guimarães Rosa. Ela está em todos os seis romances meus já publicados. Do Nordeste vem Berenice, que também vinda do meu primeiro romance, reaparece em Samba-Enredo, em As cinco estações do amor e em O livro das emoções. Do Nordeste vem Valdivino, que costura as histórias de Cidade Livre, meu quinto romance. Mas ainda não havia dado a voz a um dos personagens nordestinos em primeira pessoa. Senti que deveria agora suprir esta lacuna proposital. Achei que deveria manter a região de Brasília como ponto de partida e de chegada. Mas meu personagem faria uma viagem de regresso a seu Nordeste natal. E então construí sua biografia. Pensei nos seus fantasmas e nas suas fantasias de infância, na sua identidade. E fui costurando sua memória falha nos pontos geográficos de sua viagem presente.
2. Memória e identidade são temas centrais neste romance. Mas trata-se de uma trama traiçoeira, na qual esses dois elementos — memória e identidade — revelam-se movediços, peças à mercê de uma violência que parece inerente à vida. Como transformar essa instabilidade do cotidiano em jogo literário?
Você captou bem. Memória e identidade, recorrentes em minha literatura, são elementos fundamentais de compreensão do mundo. No entanto, são objeto de uma busca permanente. Memória parcial. Identidade múltipla e em aberto. Essa instabilidade cria narrativas, que a literatura problematiza, exercendo seu papel.
3. Brasília tem sido cenário primordial em seus livros. Mas agora a cena se desloca para o interior cearense ou potiguar. Ou melhor: esta nova trama serpeia entre Taguatinga, no Planalto Central, e o lugarejo de Várzea Pacífica — com passagens por Brasília e Fortaleza. Quais os desafios de lançar luz, via ficção, ao Brasil periférico e rural? Este tem sido um espaço negligenciado pela prosa contemporânea?
Sim, muito da melhor tradição literária brasileira é a urbana das grandes cidades. Apenas para citar os maiores, se Machado está para aquela tradição, Graciliano está para esta outra, que lança um olhar aguçado para a pequena cidade e para o mundo rural. O Brasil profundo está em ambos os universos. Brasília, terceira cidade mais populosa do Brasil, está no primeiro, e seu entorno em grande medida no segundo. Para lançar luz, via ficção, sobre o Brasil periférico e rural do sertão nordestino, não é bom romantizar nem apenas realçar suas grandes mazelas. É preciso compaixão, mais do que escrutínio sociológico ou antropológico. Isso é possível através de personagens que tenham vida dentro das realidades e verdades da ficção.
4. Mossoró, onde o senhor nasceu, guarda muitas semelhanças com Várzea Pacífica? Qual o papel de sua própria memória nessa narrativa?
As memórias neste livro, memórias movediças, são inventadas. Mas os espaços físicos percorridos pelo personagem central são conhecidos meus. Isso facilita meu trabalho de descrição e fornece um sentido mais claro de verossimilhança. Várzea Pacífica, porém, se parece menos com Mossoró do que com pequenas cidades sertanejas do interior do Ceará e do Rio Grande do Norte onde estive quando criança.
5. “Entre facas, algodão” seria sua obra-prima, afirma o pesquisador alemão Hans Ulrich Gumbrecht, no posfácio ao livro. Como este novo romance se distingue de seus livros anteriores?
Espero que Gumbrecht tenha razão, pois gosto de pensar que o tempo pode nos ensinar a ser melhores no que fazemos. Algo parecido com este meu novo romance poderia ter sido o meu primeiro, se não fosse a preocupação que tive, no início, de não situar as histórias no Nordeste para não cair na armadilha de me situar ou ser situado dentro de uma tradição forte e vista por muitos como regionalista. Brasília era território inexplorado, sem clara tradição literária, propícia ao novo, um mito para ser desmistificado e que, por ser cruzamento de brasis, me dava a oportunidade de ali acolher também o Nordeste. Depois de seis romances, relaxei. Vou direto para o Nordeste. O novo romance também se distingue dos demais pela forma. Do ponto de vista da linguagem, da própria técnica, da estrutura, da perspectiva do narrador, procurei a cada livro não me repetir. Para este levei ao ponto mais alto o esforço de limpidez, enxugamento e simplificação, para retratar a secura nordestina. Sem querer me comparar e apenas para prestar as devidas homenagens, é o que fizeram João Cabral e Graciliano Ramos.
6. Desejo, sensualidade e paixão também são elementos marcantes na história narrada em “Entre facas, algodão”. Ao mesmo tempo, há volúpia na fluidez narrativa que é uma das marcas de seu trabalho. A aparente simplicidade de sua escrita — resultado, claro, de intensa sofisticação estética — contrasta com a volúpia que emerge de seus personagens. O quão fundamental é essa volúpia na sua criação literária?
Volúpia é vida. Está também na forma, não só no que é contado. Está na sedução da própria escrita, no prazer obtido pelo encadeamento exato de palavras, no encontro feliz entre a linguagem popular e a erudita. No prazer que vem da escolha do melhor, do que pode ser saboreado muitas vezes, sem que se perca o gosto quando se tem gosto apurado. E tudo isso para que o prazer da escrita se encontre com o prazer da leitura. Isso não se faz sem esforço paciente. Não está isento de sacrifício. Não tenho pena dos personagens. Posso fazê-los sofrer. Mas, quando o faço, é para aumentar o prazer da leitura. Não só porque a leitora e o leitor podem sentir aquilo que os alemães chamam de schadenfreude, ou seja, sentir prazer com o infortúnio alheio. Sobretudo porque podem reavivar sua compaixão, seu desejo, amor, ódio e toda uma gama de sentimentos. O que faz a leitora e leitor sofrerem não é o personagem mau ou maltratado; é a má e maltratada escrita.
7. Não é de hoje que os dispositivos tecnológicos têm lugar de destaque em seus romances, criando um tom contemporâneo que é muito marcante em sua obra. Mas se apropriar do aparato comunicacional de nossos tempos não é tarefa fácil para a maioria dos escritores. Como o senhor trabalha para integrar esse tipo de comunicação contemporânea — WhatsApp e Facebook, por exemplo — às suas narrativas?
Muito se tem falado das linguagens que vêm surgindo, às vezes com a insinuação de que ameaçam de morte a linguagem literária. Ela cederia ao cinema (o escritor escreveria já pensando na apropriação cinematográfica de seu texto). Haveria o empobrecimento da linguagem advindo da internet, do uso do blog, das redes sociais. A era das imagens relegaria a segundo plano a linguagem escrita. Às vezes isso vem acompanhado de um lamento. Procurei tomar um partido pela literatura e pela linguagem literária propriamente dita, mostrando que, ao contrário do que alguns pensam, elas têm a capacidade de assimilar todas as outras formas de expressão artística, sem qualquer subordinação. Por isso meu romance em que o narrador escrevia um roteiro de cinema (Ideias para onde passar o fim do mundo) jamais poderia ser um roteiro de cinema. A máquina ou computador do futuro, narrador de meu romance Samba-Enredo, não se presta a uma ficção científica, mas a uma visão humana e próxima de nosso próprio tempo. Em O livro das emoções, descrição de 62 fotografias, elas não são vistas. Somente podem ser lidas. São palavras. Cidade Livre, que foi postado num blog e comentado por blogueiros, não utiliza a linguagem do blog. O WhatsApp e o Facebook podem entrar num romance contemporâneo brasileiro porque são parte integrante e visível do cotidiano brasileiro e das relações que se estabelecem entre as pessoas. Esse diálogo entre as formas de expressão, ao invés de empobrecer ou relegar a segundo plano a literatura, pode enriquecê-la. O mundo muda, e a literatura com ele. O que salva o leitor da mediocridade é a linguagem literária. Ela pode manter sua elegância e beleza estando atenta não apenas às normas cultas, mas também às formas populares e de criação popular. Não precisamos de defender a literatura nem nos lamentarmos por sua guerra perdida. Vamos para o ataque.
8. O senhor tomou posse, em julho deste ano, na Academia Brasileira de Letras. É uma grande conquista, imagino que motivo de muita alegria. Há algo que o tenha surpreendido na experiência de se tornar um autor imortal?
Fiquei surpreso quanto ao grau com que essa alegria foi compartida por muitos. Onde quer que estive somente recebi manifestações de contentamento e de carinho, no Nordeste, em Brasília e até mesmo no Sul do país.
9. Já há planos para um novo livro? Quais seus projetos atuais?
Vai sair quase ao mesmo tempo que o romance um livrinho de ensaios sobre utopia. E um novo romance está a caminho. Prefiro não falar dele, porque sinto que é, embora não deseje que seja, da família daqueles meus projetos do passado que levaram sete anos para serem concluídos.
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