Ideias para onde passar o fim do mundo

(Fragmento do primeiro capítulo do romance Idéias para Onde Passar o Fim do Mundo, de João Almino)

Fantasia para Plano Piloto

PASSA o letreiro, outra foto, música de fundo nostálgica. Ou « Babalu », com Ângela Maria, ou o Cauby cantando « Conceição ». Você, eu imaginava preferindo Dolores Duran ou Antônio Maria.

Ainda não tinha decidido o clima.

Talvez um rock. « That’ll be the day », Buddy Holly me deixando triste. Fazia tempo, Peggy Sue. Não, nostálgico mesmo era Pink Floyd, « Atom’s Heart Mother », fumaça no ar, os amigos no chão, curtindo um som, sem palavras.

Nada sobre mim. A câmara em quem me chamasse atenção. Refletido nos outros, ia vendo, perguntando. Meu interesse me retrataria.

Assim, poucos flashes de mim, como o da foto do começo, deitado sobre o mosaico e a folha de papel almaço, o tempo de aparecerem os títulos. Tenho seis anos, minha mãe me prometeu chocolate e coca-cola se eu escrever uma frase ao lado de cada figurinha. O sol entra forte pelas duas portas altíssimas, enchendo metade da tela e enfocando a rede de palha.

Corte brusco, toda uma página em branco, travessão, parágrafo, recomeço:

Junto à música de fundo, os primeiros barulhos: motores e buzinas dos automóveis. A civilização da energia acende o alarme, e já é urgente o suspense, informação qualitativamente nova.

O filme começaria num dia de céu tão azul e sol tão amarelo quanto os de uma pintura naïve. Um de meus personagens traria de Minas suaves montanhas, casinhas brancas do século XVIII e folhas, muito verdes e muito grandes, de bananeira, para serem recortadas sobre o vasto azul.

Não. Se a história fosse a de um lugar escolhido… tempos silenciosos, paredes brancas, ninguém: uma ausência ainda desconhecida, como o universo antes de existir, diria outro dos futuros personagens. Fora as coisas dos personagens, um espaço qualquer.

Ah se esses personagens olhassem o cenário antes de entrarem em suas próprias histórias e na história de todos!

Num tempo inativo, eles se escondem em suas histórias, participam de encontros apenas seus, fazem parte de grupos que não conheço. São ilhas reflexivas como esse tempo fora da história. Compõem acasos, motivações sem sentido, tramas iniciais e causas puras.

A despeito deles mesmos, são já objeto do meu olhar de narrador que inventa as relações que esse lugar, transformado­ agora na foto de uma festa, provoca entre os presentes ou leitores: relações nascidas da casualidade, que perduram com as tramas do enredo.

No princípio seria o desconhecido, regra ou desordem ainda ausentes. Ausências inexistentes, inimaginadas. O caos e o tempo. Todas as direções. O inconsciente. A inexistência de conflito, de problema. Viria o silêncio, gerador do símbolo, do verbo, a consciência trazendo os interesses, as razões e as paixões. Surgiriam os problemas. Ou, então, tudo ao contrário ou em relações diagonais concomitantes. Ou, então, outras palavras e outras ordens. Ou não haveria princípio: só e sempre o mistério dos princípios.

A você confesso que, quando morri, me joguei em busca do começo dos começos. Despenquei do presente. Fui passear no ponto zero, na luz, na energia infinita, de há vinte bilhões de anos. Um microssegundo depois, a energia já havia baixado para algumas centenas de bilhões de volts. Ponto zero. Nenhuma fundação. Mistério catastrófico.

Calor infinito, densidade infinita, volume infinitamente pequeno. Vento da explosão inicial, que me sopra ainda agora a seiscentos quilômetros por segundo. A singularidade, fora do espaço-tempo, se desequilibrou instantaneamente, por causa de pequenos defeitos em sua superfície e, assim, eu descendo, como você, de um erro da natureza.

Detesto passear pelo universo, pois ele é já uma espécie de lixo: é a pequeníssima sobra de matéria que restou depois da reunião da matéria e da antimatéria — elétron positivo e próton negativo — produzidas simetricamente pela luz inicial. Em menos de um microssegundo, um conjunto de reações físicas criou um bilionésimo mais de matéria que de antimatéria.

No início, era a total instabilidade; no fim a completa estabilidade. No início, o hidrogênio; no fim, o ferro. Percurso determinado, com tempo infinito entre começo e fim. As estrelas formam as galáxias e estas me levam ao universo-infinito. E se não for infinito, o que está por trás do limite? Tenho espaço demais para onde me expandir. Não me repito. Assim são os fantasmas. Sem limites.

Morto, começo rendendo homenagem ao velho Machado. Não me interessa saber se começo do começo ou do fim. Não quero narrar minha morte. Não me chamo Brás Cubas. Não escrevi minhas memórias. Nem dedico meu roteiro de cinema ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver. Não é aos vermes que pertence o futuro. Sou dos que nele continuam a acreditar.

Por isso
aos ratos
meus rabiscos.

Deles é o futuro do mundo, já daqui a cinqüenta milhões de anos, segundo a teoria da evolução das espécies. Tanto mais que sou brasiliense. Não tenha você dúvida de que a Brasília pertence o futuro da humanidade, futuro desta história, pois em nenhuma outra parte haverá ratos maiores, mais belos, mais desenvolvidos que os daqui. Os ratos e as plantas secas do Planalto sobreviverão. E com eles Brasília.

Eu não começaria do fim nem do começo. Começaria do momento em que saí de um buraco negro e em que, de volta, a mim pertenciam os céus do Planalto. Daquele momento em que o meu amor podia, assim, crescer num jardim aberto e cheio de sol, já depois do inferno. Lúcifer fizera bem de sair do céu, pois o céu era o medo do prazer e da dor. Mas eu queria agora viver nesse jardim aberto, longe do inferno, que eu imaginava ser o paraíso. Se dele me expulsassem, estava persuadido de que não me caberia apenas o castigo e que me seria dada, contrariamente a Adão, a chance de me pronunciar sobre meu destino: « Preferes o céu, na paz de espírito e na companhia dos santos, ou o inferno, com todo o seu sofrimento e todos os seus prazeres, na companhia dos teus demônios? », me perguntaria um anjo maldito. E eu, que já não teria direito à inocência do limbo, diria preferir a companhia dos demônios, porque contra estes, que temem a luz, poderia lutar à luz do dia; enquanto os santos me ameaçariam com a gélida clausura da eternidade perfeita e morta, impedindo a volta ao verdadeiro e perdido paraíso. Tudo estaria mudado, e nós, Silvinha e eu, sobreviventes da desilusão, aventureiros dos espaços infinitos, perseverando sem fé, sem medo do ridículo de amar, faríamos juntos mais um passeio pelo desconhecido.

Você me desculpe, prefiro um começo como um continho de fadas: era uma vez léptons e logo prótons e nêutrons… Uma vez, núcleons e elétrons e então átomos… Era uma vez átomos que se associavam em moléculas, que, combinadas, se transformavam em biomoléculas — açúcares, aminoácidos — que se tornavam células, que formavam os primeiros seres multicelulares, espécies de medusas, e muitos etecéteras, até que eu mesmo descendi dos macacos e um dia descenderei — de alguma forma já lhe foi explicado — dos ratos de Brasília.

Ou melhor: num dos inícios comprovados, anos antes da minha morte, flanando pelo Marais, Silvinha me mostrou a fotografia. Tínhamos parado na Place de Vosges e agora caminharíamos até seu estúdio da Île, onde eu teria a idéia de transformar aquela fotografia em quadro de filme.

No começo, uma mistura de Eisenstein com Cecil B. de Mille, Brasília em grande angular. Ao som de « O guarani », prédios euforicamente construindo-se por escravos voluntários e modernos, operários voltados para o futuro da humanidade. E logo a tomada de cena da inauguração, JK descendo de helicóptero.

E a poeira
vermelha
das ruas
ainda nuas
cobrindo as casacas
dos altos burocratas.

Então enxergue: o verde recortado que se vê de qualquer janela anuncia, escuro, que vai chover. O barro vermelho invade as calçadas. Um raio tangencia, ao longe, a ponta da torre de televisão. Brasília não pertence aos meus personagens e nunca lhes vai pertencer. Mas é nesta cidade, com história e futuro ainda abertos, que está para surgir, vestido de fada ou de bruxa, um mito antigo, finalmente real: toda a novidade do mundo.

Assim conta a história, você me acredite: a novidade completa surgiu quando o acaso se liberou nas cidades, veloz, ameaçando acabar o mundo. Mas no Brasil ainda havia esperança: baixo um céu rosado, um anjinho de flor no peito ia finalmente chegar ao poder. Num fim de tarde, os intensos assobios das cigarras enchiam os espaços de Brasília. Lembravam a infância e advertiam que as brincadeiras de rua tinham acabado.

Esse era o começo, e o começo já era quase noite.
Não se vê na foto.
Não se vê, na foto, que o mundo atravessava sua maior crise.
Não se vê que em Brasília era como se nada estivesse acontecendo e tudo estivesse para acontecer. Enxergue, ­então.


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