Literatura entre utopia e realidade

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ANTARES: Letras e Humanidades, Caxias do Sul, v. 10, n. 21, set./dez. 2018, p. 171-178.

LITERATURA ENTRE UTOPIA E REALIDADE:
ENTREVISTA COM JOÃO ALMINO*

LITERATURE BETWEEN UTOPIA AND REALITY:
AN INTERVIEW WITH JOÃO ALMINO

André Tessaro Pelinser**
Letícia Malloy***

Escritor e diplomata, João Almino nasceu em Mossoró, no Rio Grande do Norte, em 1950. Doutorou-se na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, sob a orientação do filósofo Claude Lefort. Lecionou na UNAM (México), na UnB, no Instituto Rio Branco, em Berkeley, em Stanford e na Universidade de Chicago. Ao longo de mais de trinta anos dedicados à literatura, o escritor publicou sete romances: Ideias para onde passar o fim do mundo (1987), Samba-enredo (1994), As cinco estações do amor (2001), O livro das emoções (2008); Cidade livre (2010); Enigmas da primavera (2015); e Entre facas, algodão (2017). Nesse período, sua obra recebeu a chancela de importantes prêmios literários nacionais e internacionais, como o Prêmio Casa de las Américas de 2003, e obteve traduções para o inglês, o francês, o espanhol e o italiano. Como intérprete do Brasil contemporâneo, a ficção de João Almino tem recebido sólido reconhecimento por parte da crítica literária, que vem apontando a profícua recorrência da cidade de Brasília em seus textos.

Em torno desse cenário, João Almino construiu uma consistente galeria de personagens, com os quais tem logrado explorar a fundo a potência dos sentidos que emanam de um lugar sui generis como a capital brasileira. Devido a sua posição geográfica e a seu histórico, Brasília possui uma carga simbólica única, que a transforma simultaneamente em ponto de convergência e de irradiação de significados. Misto de história, mito e utopia, a cidade real, uma vez inaugurada, passou a enfrentar as contradições do mundo real e, sobretudo, do país em que se insere. Ao longo dos anos, porém, João Almino deu origem a uma cidade própria, que, se não deixa de revisitar criticamente a história nacional, lança luzes sobre o presente a partir de perspectivas caras à literatura contemporânea.

Com efeito, a ficção brasileira possui diversos espaços característicos, lugares reais que foram progressivamente associados a conjuntos de obras literárias e com isso adquiriram dimensão simbólica particular. Nesses casos, o poder de significação conquistado por esses espaços ficcionais não raro alarga-se a ponto de transformá-los em espécie de símbolo, quase lugares de memória criados não pela experiência real, mas por seu correlato na ficção. Identificados a séries de obras ou a autores em particular, vários são os exemplos de cidades ou regiões brasileiras que incorporaram características próprias na literatura e assim acabaram ressignificando sua contraparte no mundo concreto. Podemos falar na Rio de Janeiro de Machado de Assis, na São Paulo dos modernistas, no sertão de Guimarães Rosa. A cidade de Brasília, embora tenha sido fundada há relativamente pouco tempo, se assenta sobre uma ideia, algo utópica, que possui mais de um século e meio de história. Desde o Oitocentos, há registros do interesse na transferência da capital nacional, com base nos mais diversos motivos, sejam de ordem prática, simbólica e até mesmo mística. Não surpreende, portanto, que, uma vez inaugurada a nova capital, a literatura não tenha demorado a tomá-la por cenário.

Eleito para a Academia Brasileira de Letras em 2017, João Almino é também autor de trabalhos de história e filosofia política que se tornaram referência no campo dos estudos sobre autoritarismo e democracia, dos quais destacam-se os livros Os democratas autoritários (1980), A idade do presente (1985), Era uma vez uma constituinte (1985) e O segredo e a informação (1986). Ainda no terreno da não-ficção, além de capítulos de livros e textos em periódicos especializados, o autor publicou Naturezas mortas: a filosofia política do ecologismo (2004), Brasil-EUA: balanço poético (1996), Escrita em contraponto (2008), O diabrete angélico e o pavão: enredo e amor possíveis em Brás Cubas (2009), 500 anos de Utopia (2017) e Dois ensaios sobre Utopia (2017).

No decorrer dos anos, João Almino aperfeiçoou uma escrita literária sintética e arguta, capaz de reelaborar de modo crítico questões candentes da contemporaneidade, como as relações entre passado, presente e futuro, as consequências de projetos de modernização e desenvolvimento contraditórios, as migrações e seus reflexos identitários. Na entrevista a seguir, realizada no âmbito do projeto “Notícia da atual literatura brasileira: entrevistas”, João Almino reflete a respeito de seu processo de composição literária, pondera sobre o lugar que Brasília ocupa em sua obra, lança um olhar sobre sua trajetória como escritor de ficção e não-ficção e compartilha com o leitor sua visão sobre o lugar da ética nas artes.

1. Cada escritor possui um método e estilo de trabalho próprios. Em sua ficção, são recorrentes tanto a apresentação de um espaço narrativo que remete à cidade de Brasília quanto de personagens que a habitam ou para lá convergem. Levando-se em conta esses elementos, que parecem consistir em um leitmotiv em sua obra, você poderia nos falar um pouco sobre as opções temáticas que norteiam seu projeto literário? Poderia, também, comentar algumas das opções formais adotadas em seus textos?
Vivi em muitas cidades, para ser exato em 14 até o dia de hoje. Talvez por isso mesmo, em vez de variar a localização das histórias de minha ficção, busquei um ponto de referência. Fazia sentido que fosse no Brasil, e Brasília me foi conveniente por várias razões. Podia se prestar a ser um Brasil de brasis, era uma possibilidade de cruzamentos. Ali eu podia situar personagens vindos de várias partes do país. O tema da utopia sempre me interessou, e Brasília partia de uma concepção utópica que podia ser contrastada com a utopia não realizada ou com a evolução da cidade espontânea e real. Brasília podia ser também uma metáfora do mundo moderno, com todas as suas contradições.
Creio, porém, que mais importante do que a localização das histórias é a criação de um universo ficcional, que é revisitado a cada livro a partir de determinada perspectiva. Procurei desenvolver uma linguagem adequada a cada um dos romances, às técnicas neles empregadas e a seus narradores. Apesar disso, é possível dizer, creio, que existem opções formais que perpassam todo o meu trabalho de ficção. Tento extrair poesia das palavras mantendo a fluidez da prosa e uma escrita concisa, enxuta e precisa, que diga mais com menos. Procuro fazer com que as metáforas ou metonímias agreguem significados e não sejam meros ornamentos. Finalmente, busco introduzir elementos de verossimilhança mesmo quando o contexto mais geral é de fantasia.

2. Em seu primeiro romance, Ideias para onde passar o fim do mundo (Record, 1987), o narrador manobra o leitor, fazendo-o crer que não possui muita clareza quanto à condução da narrativa. Já no primeiro capítulo ele afirma querer “Escrever sem saber o quê, escrever espontâneo. Era isso que eu queria. Sem saber o fim nem o começo da história…”. Logo em seguida, talvez se contradiga: “Queria inventar uma história, fantasiar o real, o da cidade e o de cada personagem. Mas os fatos me antecipam e enchem rapidamente estas páginas.” Em que medida essas passagens dizem de seu processo criativo?

Talvez façam parte da série de engodos que aquela narrativa empreende e a que se refere a crítica literária Walnice Nogueira Galvão.
Acho necessários dois processos que podem parecer divergentes e são complementares. Uma vez concebidos um narrador e alguns personagens, procuro construir um plano o mais detalhado possível, tendo, porém, plena liberdade para refazê-lo, o que ocorre a partir de ideias que surgem do ato de escrever, do encadeamento mesmo das palavras e das exigências dos personagens. Por isso levo muito tempo reescrevendo.

3. Antes de lançar seu primeiro romance, Ideias para Onde Passar o Fim do Mundo, que completou trinta anos em 2017, você publicou quatro obras de não-ficção. Entre os estudos de ciência política e a produção literária, houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu um escritor? O que mudou de lá para cá em seu modo de conceber a ficção?
A ficção estava lá no início, antes dos textos de não ficção. Estes foram escritos com urgência, como parênteses na escrita de ficção ou por obrigação acadêmica. A ficção exigia de mim um rigor formal próprio que levou mais tempo para ser alcançado da maneira que me parecesse satisfatória. Era mais vital e por isso mesmo mais difícil.
Creio que meu modo de conceber a ficção não mudou de maneira fundamental, mas o projeto ficcional em si, tal como pensado no início, sofreu transformações. O primeiro romance centrava num personagem diferente cada um de seus capítulos maiores (há também capítulos menores, de transição). Eu tinha a ideia de escrever vários outros romances, cada um tendo como narrador um daqueles personagens do primeiro livro. Haveria, por exemplo, um romance da Berenice, a personagem nordestina, outro da profetisa Íris Quelemém, um terceiro de Cadu, o fotógrafo responsável pela foto a partir da qual o romance se estrutura, e assim por diante. Cadu de fato voltou como narrador de meu quarto romance, O livro das emoções. Mas já a partir do segundo romance me dei conta de que não seguiria exatamente aquele plano inicial. De alguns personagens, me distanciei. Outros perpassaram mais de um romance (foi, aliás, o caso de Íris e Berenice), vistos em cada um deles de forma diferente.

4. Além de escritor de ficção, você possui vários escritos sobre ciência política e atua na área da diplomacia. Você identifica diálogos entre essas atividades e sua escrita literária?
São linguagens muito distintas uma da outra. Mas não deixa de haver alguma reflexão política no pano de fundo de alguns de meus romances. Um ou outro personagem (uma professora de filosofia em As Cinco Estações do Amor, um especialista no Islã em Enigmas da Primavera) podem inclusive recorrer de maneira direta ou irônica a algum conhecimento sistematizado. Mas procuro evitar que suas informações ou reflexões sufoquem a narrativa, para que o ensaio, se houver, esteja subordinado à ficção, diluído na narração e nos diálogos. Dito isto, há quem tenha procurado traçar paralelo entre meus ensaios – neste caso incluindo também os ensaios literários – e minha ficção.

5. Desde o início, sua produção literária recebeu avaliações positivas, com prêmios como o do Instituto Nacional do Livro, o Casa de las Américas e o Passo Fundo Zaffari & Bourbon de Literatura. De que maneira as premiações influenciaram o reconhecimento da sua literatura? Como você avalia a recepção de sua obra para além dos prêmios literários?
As premiações podem ter aumentado minha autoconfiança, embora eu escreva por necessidade; ou seja, porque não poderia deixar de escrever.
Quanto à recepção além dos prêmios literários, a crítica tem sido positiva. No caso do meu romance mais recente, Entre facas, algodão, houve também uma reação espontânea do leitor comum, que me escreve através do Facebook ou de minha página Web.
Mas nenhum de meus livros foi um best-seller. O que mais vendeu, As cinco estações do amor, está no momento fora de catálogo. Se as traduções forem outra medida da recepção, este romance está bem situado ao lado de Cidade Livre, que teve traduções para o inglês, francês e algumas outras línguas. Samba-Enredo, O Livro das Emoções e Enigmas da Primavera também foram publicados em tradução.

6. Em 2017 você publicou Entre facas, algodão (Record), romance que recupera paisagens rurais do Nordeste brasileiro comumente associadas ao Regionalismo literário. Em entrevista ao Correio Braziliense, você menciona que, no início da carreira, evitou esse caminho por certo receio de fazer algo menor ou menos importante do que já havia sido feito por alguns dos mais destacados escritores brasileiros. Como foi assumir essa relação com a tradição regionalista? Mais do que isso, como lidar com a filiação a uma vertente que, embora reconhecidamente fecunda, acumulou largo espectro de considerações depreciativas por parte da crítica literária brasileira?
Meus romances, desde o primeiro, tiveram personagens nordestinos, e o desejo de situar histórias principalmente no Nordeste também estava presente lá no início. O problema que eu enfrentava era o de como revisitar a paisagem nordestina ou homenagear os grandes nomes de sua literatura, como Graciliano e João Cabral, sem repetir o que já havia sido feito e sobretudo sem cair no lugar comum. Levou tempo para que eu entendesse como isso seria possível. Requereu – digamos — destemor e maturidade. Era um encontro marcado e inevitável que eu tinha comigo mesmo como escritor.

7. Diante do panorama da literatura brasileira atual, o que você vê? Que autores você tem lido? Gostaríamos que você nos falasse um pouco sobre suas principais inquietações e estímulos em face da produção literária brasileira contemporânea.
Para mim a criação literária é principalmente um trabalho solitário, que pode – reconheço – se alimentar de leituras e de diálogo. Estou sempre relendo algum clássico. Entre os brasileiros, nunca me canso de Machado, Graciliano e Clarice. E não só para entender o Brasil. São autores de dimensão universal. Também me interesso pela produção literária brasileira contemporânea, que alarga minhas percepções. Acabo de ler Machado, de Silviano Santiago. Entre os estrangeiros, tenho lido alguns contemporâneos ingleses, como quase tudo de Edward St Aubyn.

8. Quais os principais desafios para a edição de novos escritores no Brasil de hoje?
À parte a autopublicação ou a publicação pela internet sem grandes critérios, os desafios são grandes, mas não sei se são maiores do que há décadas atrás. Salvo exceções, que vêm da sorte, de oportunidades extraordinárias e de alguns poucos concursos, é sempre difícil para quem está começando.
Acho que ainda existe um papel de grande importância para os editores, que têm a responsabilidade e também o interesse de descobrir novos talentos. Tenho visto surgirem pequenas editoras que procuram fazer um trabalho de qualidade. Vencer os desafios depende, claro, da qualidade do que se está produzindo, do aproveitamento das oportunidades que surgem e da sensibilidade dos editores.

9. Nos últimos anos, a crescente polarização política observada na sociedade brasileira mobilizou debates sobre o lugar da arte, com destaque para forças interessadas em controlar o discurso artístico. Como você observa a relação entre a arte e o aparato judicial do Estado? Deve haver uma ética artística?
Essas questões podem ser consideradas de vários pontos de vista.
O artista poderá ter um comportamento julgado por outros ético ou não. Ele próprio poderá julgar ocupar a posição eticamente correta. Sua arte pode ou não conter uma dimensão ética. O artista também pode, através de seu trabalho ou à margem dele (por exemplo, emitindo opiniões), exprimir posições que considere ter uma dimensão ética ou assim sejam entendidas por outros. Além disso, em nome da ética setores do Estado ou da própria sociedade podem querer controlar a expressão artística.
Sabemos, por outro lado, através da história, que não necessariamente as intenções dos artistas correspondem à apropriação de suas obras pela crítica ou pelo público. Sobretudo o sentido que fica dessas obras para a história muitas vezes independe das ações, posições ou opiniões dos artistas.
Tomemos o caso da literatura. Seria um equívoco analisar a obra modernizadora de Céline à luz de seu apoio ao governo de Vichy ou de Pound por suas simpatias fascistas – nos dois casos posições eticamente condenáveis. As opiniões e ideias reacionárias de Balzac não impediram a apropriação de sua literatura pela esquerda, que soube valorizar o realismo de seus romances. Mesmo no caso de autores que pretendem imprimir claramente um cunho ético e político à sua obra, sua eficácia e alcance podem ser maiores em decorrência de uma descrição contundente dos fatos ou do confronto da realidade objetiva com a fabulação do que de uma mensagem dirigida pelo autor ou pelo narrador.
A arte escapa a quaisquer controles, porque o inconformismo é de sua essência. O artista pode ter de responder perante o tribunal da ética e até mesmo ser encarcerado por crimes comuns. Mas é um equívoco julgar a obra de arte por motivos externos, sejam eles de ordem ética, política, biográfica ou comportamental relativa a seus autores.
A ética artística é a da plena liberdade. Ponto!

10. Enigmas da primavera (Record, 2015) envolve a Primavera Árabe e os protestos de julho de 2013 no Brasil, mostrando-se atento a anseios e desafios da contemporaneidade. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como coda do atual estágio da humanidade?
Esta onda reacionária libera o que estava reprimido e ainda vivo em alguns setores da sociedade. É uma reação a distintos movimentos da história, alguns próximos, outros recuados no tempo. Faz 50 anos da grande revolução dos costumes simbolizada por 1968 em várias partes do mundo. Vivemos uma reação a alguns daqueles ideais. No Brasil a onda conservadora se fortalece com os escândalos de corrupção, está calcado no moralismo e se fortalece com avanços de algumas seitas religiosas.
Confio que haverá antítese aos atuais excessos e que no final poderá haver progresso, com a ressalva de que essa aposta não deve levar a uma postura conformista. Diante dos riscos, que são reais, aumenta a responsabilidade do político, do artista e do cidadão em geral.

11. Muitos escritores têm mantido atividade constante nas redes sociais, sobretudo para expressar engajamento político. Você mantém atuação discreta no Facebook, utilizando-o majoritariamente para a divulgação do seu trabalho. Por quê? E como avalia essa face do intelectual contemporâneo?
O que quero dizer de maneira mais refletida é o que meus livros dizem. Dizem às vezes com tristeza, com angústia, com dúvidas, com sentimentos misturados, com contradições. Prefiro concentrar na literatura minhas energias criativas.
De maneira acessória, tenho um “site” onde coloco informações sobre os livros (por exemplo, resenhas). Uso o Facebook em substituição ao blog que não tenho. Nele posso anunciar uma palestra ou uma participação em algum evento literário. Gosto de fotografar, e ponho de vez em quando alguma de minhas fotos no Instagram.

12. Você está escrevendo algum livro no momento? Possui projetos que envolvam outros gêneros literários?
Publiquei dias depois de meu sétimo e mais recente romance, Entre facas, algodão, um pequeno livro de ensaios sobre a Utopia de Thomas More. Mas é no romance, na narrativa longa, que me sinto mais realizado. Tomo notas e faço leitura para um próximo romance.

* Recebido em 10/11/2018 e aprovado em 10/12/2018. Entrevista concedida aos autores em abril de 2018.
** Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
*** Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.