O MITO DA MEGALÓPOLE NA LITERATURA BRASILEIRA. Samba-Enredo, de João Almino. Barbara Freitag, Revista Tempo Brasileiro.

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Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 132: 143-158, jan.-mar., 1998

por Barbara Freitag

1. Metrópole e megalópole

Em um pequeno ensaio Civilização urbana e subculturas da cidade (Freitag 1997: 111), fiz uma distinção conceitual entre “metrópole” e “megalópole”. O termo “megalópole” não se refere somente à dimensão quantitativa da vida urbana, mas também a uma dimensão qualitativa, ou seja, a uma forma específica da vida societária em cidades gigantescas, típica para este final do século XX. As características essenciais da “megalópole” contemporânea podem ser resumidas de forma típico-ideal como segue:

1. trata-se de cidades gigantes, com uma população que oscila em torno de 10 milhões ou mais de habitantes;

2. esse crescimento urbano vertiginoso aconteceu nas últimas três décadas, portanto nos anos 70, 80 e 90 (do século XX), período em que o número de habitantes triplicou ou quadruplicou-se;

3. essa verdadeira explosão demográfica não se deveu tanto a um crescimento vegetativo da população urbana, mas sim à confluência maciça de populações das mais variadas origens;

4. a imigração mais ou menos descontrolada dos migrantes das mais variadas regiões do território nacional e mesmo do exterior, do campo, de aldeias e de pequenas cidades gera uma civilização multicultural;

5. essa civilização urbana compõe-se de “.subculturas” em si homogêneas, mas entre si divergentes; tomando-se como critérios de distinção a nacionalidade, a classe social, a etnia, convicções religiosas, grupos etários, o gênero e os hábitos sexuais dos habitantes da megalópole;

6. por isso mesmo, a megalópole caracteriza-se por contrastes radicais que se refletem no tecido urbano, nos materiais dos prédios, nos estilos arquitetônicos: ao lado de arranha-céus de aço e vidro fumé, encontram-se favelas, cortiços, “barriadas” que ocupam as áreas vazias entre os prédios e bairros, e as zonas periféricas. Os barracos de papelão e lata, madeira e bambu vão se multiplicando à beira dos rios e das auto-estradas, embaixo de pontes de concreto e aço e em estacas sobre lagunas, como em tempos pré-históricos. Eles convivem com enormes centros comerciais (shopping centers), parques de diversão, complexos empresariais, conglomerados bancários de alto luxo dos tempos pós-modernos;

7. as megalópoles de hoje são os pilares e os pontos de cristalização da economia mundial globalizada; elas são os sustentáculos da pós-modernidade.

8. Praticamente quatro quintos das megalópoles do mundo contemporâneo encontram-se no hemisfério sul, o que equivale a dizer que pertencem aos países subdesenvolvidos ou em franco desenvolvimento.

Essa lista de características permitiria novos acréscimos. Entretanto, o conceito de “megalópole” se torna mais nítido se o confrontarmos ao conceito de “metrópole”.

Quando se fala em “metrópole” também se tem em mente uma cidade grande. Mas ao contrário da megalópole, a metrópole não chega a 10 milhões de habitantes e não acusa um crescimento populacional sensível nas últimas três ou quatro décadas. Ao contrário, na maior parte das metrópoles do mundo registra-se, hoje, um decréscimo da população, devido a taxas de natalidade baixíssimas e um controle rigoroso das imigrações.

O termo “metrópole” denota uma cidade histórica, de tradição centenária. Especialmente as metrópoles européias transformaramse no final do século XIX e começo do século XX em capitais de nações desenvolvidas, centros da industrialização moderna e arquivos da cultura mundial, que passaram a determinar os estilos de vida dentro e fora da Europa. Um exame do mapa mundial revela que a maioria das metrópoles encontra-se no hemisfério norte. Elas foram e continuam sendo os pontos de irradiação da modernidade.

As enormes riquezas materiais e simbólicas compiladas nas metrópoles, transformaram-nas em lugares de atração turística sem par. Anualmente, milhões de turistas batem às suas portas, invadem seus museus, suas galerias de arte, hotéis e restaurantes para admirar as curiosidades e consumir os bens materiais e simbólicos aqui armazenados. Depois da “temporada”, voltam aos seus países de origem. As metrópoles européias demonstraram uma extraordinária habilidade em explorar o turismo. Graças à preservação e proteção de suas riquezas culturais, ao controle dos refugiados emigrantes, às suas instituições de assistência social, aos seus sistemas viários e de transportes aéreos, onde se registram os movimentos de passageiros e os fluxos de turistas e refugiados, as metrópoles de hoje ainda conseguem preservar a paz intramuros e oferecer uma alta qualidade de vida a seus cidadãos. Tensões sociais; conflitos étnicos e religiosos em outras partes do mundo são ignorados ou harmonizados por instituições competentes extra-muros. Por quanto tempo ainda?

Ronald Daus fala da “terceiromundialização” das metrópoles européias (Daus: 1997: 222). De minha parte, dou preferência ao termo “megalopolização” . Na essência, os dois termos se referem à mesma coisa. Ambos procuram dar conta dos radicais processos de transformação da vida humana no globo terrestre, que se refletem nos modernos espaços urbanos. As tendências da megalopolização são, pois, mais nítidas nas cidades gigantescas do hemisfério sul, ou seja, nas megalópoles, mas podem manifestar-se, de forma atenuada, nas metrópoles do hemisfério norte. Nesse processo de megalopolização, as fronteiras nacionais estão sendo gradativamente dissolvidas, os Estados Nacionais tornam-se cada vez mais permeáveis, diluindo-se suas formas de legitimação e seu alcance jurídico. Haverá uma condensação cada vez maior de pessoas nos grandes conglomerados urbanos. Comunidades campestres; cidades de pequeno e ‘ médio porte possivelmente desaparecerão do mapa no início do terceiro milênio, diluindo-se também as instituições sociais nas quais se apoiavam (família, cooperativas, corporações, municipalidades). Sua sobrevivência ficará condicionada à proximidade ou não de uma grande megalópole.

A forma de institucionalização da sociedade moderna passa pela urbanização crescente, em outras palavras, pela “metropolização” e “megalopolização” .

No Brasil, essa tendência já se concretizou. Enquanto hoje em dia 50% da população mundial vive no campo, no Brasil dos anos noventa, a população rural já se reduziu a 25% da população total. Isso significa que 120 milhões dos 160 milhões de brasileiros vivem em cidades, a maior parte em conglomerados urbanos no sul e sudeste do país, ou seja, no Eixo Rio-São Paulo, i. é., em duas megalópoles, na definição acima.

Em quase todas as partes do mundo artistas, cineastas, escritores e poetas detectaram esse fenômeno da megalopolização. Com sua maior sensibilidade às novas formas de sociabilidade que as megalópoles fazem emergir, eles traduziram esses fenômenos em seus filmes, romances, peças de teatro ou poemas. Filósofos, sociólogos, políticos, economistas e demógrafos assumiram até agora o papel do mocho de Minerva: somente foram alertados para os fatos novos depois do clamor dos profissionais da criatividade e buscaram, a posteriori, explicações ou conceptualizações para o que vem acontecendo.

2. A megalópole na literatura brasileira contemporânea

Para compreender melhor esse papel “sismográfico” da arte, selecionei, a título de exemplo, três romances brasileiros, escritos nas últimas três décadas, e que se passam em três megalópoles brasileiras: o Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília:

-A hora da estrela (1977), de Clarice Lispector;

– Não verás país nenhum (1981), de Ignácio de Loyola Brandão;

– Samba-enredo (1994), de João Almino.

Os critérios para essa seleção foram fornecidos pela própria definição de “megalopolização” e pela distinção feita entre metrópole e megalópole.

O Rio de Janeiro dos anos setenta, ex-capital federal, fornece a moldura urbana para o romance A hora da estrela, de Clarice Lispector. Trata-se do Rio de Janeiro que ainda apresenta certas feições da metrópole que ela já não é mais, em conseqüência da “megalopolização” a que esteve submetida nas últimas décadas.

A São Paulo da década de oitenta, a maior megalópole da América do Sul, constitui a arena que Ignácio de Loyola Brandão escolheu para desenvolver suas visões apocalípticas da sociedade brasileira e da capital paulista no ano 2020.

E, finalmente, a Brasília da década de 90, que ainda não é “megalópole”, no sentido estrito da palavra, mas que se encontra em franco processo de “megalopolização”, fornece o palco para a ação do romance de João Almino.

Outros critérios foram fornecidos por teóricos e críticos literários mas também tradutores (do português para o alemão) da literatura ficcional brasileira.

Em suas narrativas, esses romances traduzem percepções bem peculiares da cidade: os seus ruídos e cheiros, suas cores, as luzes e sombras, os espaços estruturados e delimitados. Implícita ou explicitamente, seus autores apontam para as características “típicas” de uma megalópole. Essa forma do romance urbano representa um salto qualitativo com relação aos romances urbanos clássicos que descreviam a metrópole européia. (Vide os estudos detalhados feitos por Volker Klotz , 1969).

Metaforicamente, poder-se-ia dizer que as características da megalópole, inicialmente destacadas, assumem a função de filtro ou rede, capazes de detectar, nos próprios romances, os processos de institucionalização das sociedades globalizadas.

2.1. O Rio no romance “A hora da estrela”

Como já foi dito, a ação deste último romance de Clarice Lispector (1925-1977) desenrola-se no Rio. Considerando-se que não pretendo fazer crítica literária, permito-me colocar em parênteses a sofisticada construção do romance, em especial a intrincada relação entre narrador e leitor, idealizada pela escritora, voltando-me diretamente para a trama do romance. Esta é surpreendentemente simples, quase banal.

Macabéa, a personagem central do romance, muda-se, depois da morte de sua tia, de Alagoas, onde nascera, para o Rio. Ela mora na rua do Acre, na zona portuária já decadente, dividindo o quarto com três outras moças em uma pequena pensão. Macabéa trabalha como datilógrafa em um escritório, onde – por sua mediocridade e insignificância – émaltratada pelo chefe. Ela é virgem, pequena e franzina, quase feia, em todo caso, inexpressiva. Por isso mesmo, até surpreende que arranje um namorado, Olímpio, que mais tarde a deixará por Glória, uma de suas companheiras de quarto. Macabéa, que aceita esse fato novo com certa naturalidade, também aceita o conselho de Glória: procurar uma cartomante. Ao “ler” o futuro implacável da moça nas cartas, até mesmo a cartomante se compadece. Não ousa revelar a verdade a Macabéa e resolve mentir. A cartomante inventa uma pequena história e fala de uma mudança radical em sua vida: o encontro com um jovem rico, loiro, de olhos azuis, e de nome Hans. Alegre com essa boa nova, Macabéa sai da casa da cartomante. Ao pôr o pé na calçada é atropelada por uma Mercedes, cuja estrela na capota da frente do carro ainda percebe ao tombar na rua. O motorista loiro foge em seu carro. Com um sorriso nos lábios, Macabéa morre no local, convencida de que essa era a sua hora da estrela.

Macabéa representa milhares de “nordestinas” que, ansiosas por deixarem a vida miserável que vivem no nordeste, tentam sua sorte na grande cidade, onde na maioria das vezes acabam sendo trituradas e engolidas. Macabéa é uma dessas mártires inumeráveis, com sua morte anunciada já no próprio nome.

2.2. São Paulo em “Não verás país nenhum”

O autor deste romance, nascido no interior de São Paulo, em 1936, escolhe a capital paulista no ano 2020 para desenvolver sua trama da sociedade brasileira vitimada pelo regime militar e pelo desequilíbrio ecológico. Como já foi destacado por outros autores (Engler, 1992; Spielmann, 1994), Ignácio de Loyola Brandão fez da megalópole São Paulo seu personagem principal. O futuro próximo dessa cidade é apresentado numa visão de horror e apocalipse em Não verás país nenhum parafraseando o conhecido poema de Olavo Bilac.

Souza; ao mesmo tempo narrador e personagem central do romance, vivencia as diferentes etapas da destruição da cidade, que coincidem com as etapas da destruição da sociedade brasileira. Como antigo professor de história, prematuramente aposentado, Souza procura relembrar-se de passagens relevantes de sua vida, especialmente os momentos que lhe teriam possibilitado interferir nos processos societários em curso para tentar evitar o pior.

O governo militar havia entregue a firmas nacionais e multinacionais concessões para a exploração de vastas regiões do território nacional, especialmente na Amazônia. Com a derrubada da última árvore da antiga selva amazônica, a seca no nordeste se agravara, deslanchando um movimento migratório sem paralelo, em direção ao sul. Em pânico, a população nordestina buscara salvar-se em São Paulo, mas fora apanhada em sua fuga por enormes ondas e buracos de calor que os haviam torrado e reduzido a pó e cinzas. A maior parte dos fugitivos morrera, pois, no caminho. Uma pequena parte procurou voltar e buscar abrigo nos antigos sítios. Somente um grupo menor alcançara a megalópole São Paulo, onde passara a viver “no isolamento”, na periferia pauperizada da cidade. Aqui há falta de tudo. A comida insípida tem consistência de borracha. Somente variam as cores e os cheiros, sem que os alimentos, uma vez ingeridos, saciem os famintos. Em toda

cidade há falta crônica de água. Até mesmo a urina é reciclada. Para a racionalização e o controle do uso da água, são distribuídos “tíquetes” que muitos usam como moeda de barganha. Do mesmo modo, existem tíquetes de alimentação e de “circulação” que autorizam (ou não) os habitantes a se locomoverem de um bairro a outro. Há controles em toda parte para capturar os infratores. Os controladores são subornáveis, mas são, ao mesmo tempo, espiões e delatores que reportam irregularidades aos superiores e dirigentes políticos.

A poluição do ar submerge São Paulo sob uma enorme nuvem marrom-cinzenta. O sol somente é perceptível pelo imenso calor que irradia e que fica armazenado entre os prédios cinzentos e as ruas estreitas; barulhentas e malcheirosas. O centro da cidade parece morto, triste e deserto. Envolve-o um cinturão de áreas habitadas, onde vivem certos privilegiados que procuram defender-se como podem. Mas ninguém sabe exatamente como vivem e o que acontece atrás das muralhas de proteção erguidas contra os habitantes menos privilegiados e os fugitivos do nordeste. Sabe-se que este cinturão está habitado pelos conformistas que vivem com medo do estado policial, mas o apóiam para defender-se de outros medos. No “Isolamento”, o círculo periférico, as multidões se atropelam, se agridem e se matam. Cadáveres e moribundos amontoam-se por toda parte, são esmagados e pisoteados por aqueles que aind a lutam pela sobrevivência. E preciso fugir do sol, de seus raios, de seu calor, antes que eles abafem, sufoquem tudo e todos. O único lugar de abrigo existente são as enormes marquises que o governo mandou instalar. Um passo em falso, um empurrão para a área exposta aos raios e a morte é certa. Cai-se no abismo, no nada, no calor tórrido do inferno.

O romance termina com Souza, o personagem central, à beira do abismo. Ele ainda está vivo mas sem esperanças. Lembra-se, remo-tamente, de que no desespero extremo ele, como outros pais, havia levado os seus filhos para um navio em Santos, enviando-os para além-mar. Somente o retorno dessa geração mais nova poderia trazer alguma forma de salvação.

2.3 Brasília no Romance “Samba-enredo”

O narrador sem corpo mas não imaterial deste romance é uma máquina, mais especificamente um computador portátil, um laptop, jogado no lixo. No seu disco rígido, encontram-se anotações de Ana, escritora e amante do presidente.

GG ou “Gigi”, como se autodenomina o computador sem dono, começa a decodificar os textos cifrados que guarda em sua memória. Nesse processo, traz à tona os textos com os quais havia sido alimentado por Ana, antes de ser jogado fora. Eram anotações feitas durante as festividades de carnaval em Brasília, nos anos noventa. Originalmente, Ana pensara transformar essas anotações em um romance, depois desistira dessa idéia. Em seu esforço de rememorização, o disco rígido consegue restabelecer os ruídos e as batucadas do pano de fundo, que vão se avolumando. O programa de computador submete-os, então, a uma filtragem para discriminar a gritaria da música, os diálogos do barulho das cigarras, para finalmente selecionar o que julga relevante. Reconstitui, em seguida, os jogos de luz com o céu estrelado, os cartazes iluminados de Conjunto Nacional, os holofotes perto do teatro Martins Pena e da Rodoviária. Finalmente, reconfigura a ação, tudo aquilo que aconteceu em uma noite morna de carnaval no Plano Piloto da cidade, antes de Ana desfazer-se da máquina.

João Almino (1950- ), o autor do romance, atribui ao computador a competência para retrieve, de fragmento em fragmento, a trama do que aconteceu ao personagem central. Paulo Antônio Fernandes, o primeiro presidente negro do Brasil, acredita ser um novo messias, capaz de ajudar o seu povo. Ele assiste à folia carnavalesca sentado em sua tribuna, erguida ao longo do Eixão e aproveita a ocasião para dirigir algumas palavras à multidão. Depois do discurso, ao entrar em seu carro, é cercado por um grupo de pessoas contrariadas. Com olhares raivosos, gritando palavrões, jogam pedras e dão vazão ao seu descontentamento com o governo. O grupo rebelde é disperso pelos simpatizantes, pelos seguranças, policiais e militares que estão por perto. O carro se afasta, mas permanece o mal-estar. Antes que o veículo atinja a garagem do Palácio do Planalto, já correm boatos de que o presidente teria sido seqüestrado. Ouvem-se afirmações de que estaria morto, que um novo golpe militar teria tido êxito. Como o vice-presidente não se encontrava no país, o exército já teria cercado a Praça dos Três Poderes.

Enquanto a boataria progride, uma tempestade desaba sobre o Plano Piloto, encharcando os foliões e os espectadores. A festa vira pesadelo. A multidão tensa e silenciosa aguarda um milagre. Velas são acesas e, por causa da chuva, também lanternas e lampeões. Ouvem-se murmúrios e preces.

Em verdade, o presidente não tinha tomado rumo ao Palácio, mas estava a caminho da fazenda de sua irmã, Eva. Na estrada deserta seu carro é assaltado por homens mascarados que o seqüestram e levam para o meio do cerrado. Aí o obrigam a escrever uma carta, na qual informa o valor do resgate exigido. Junto com a carta dirigida ao povo brasileiro, Paulo Antônio envia um bilhete para sua mulher e sua filha. Está convencido de que o seqüestro tem razões políticas e aposta em sua libertação para, finalmente, dar início às obras de reformas das quais a sociedade brasileira tanto necessita. Caso seja sacrificado, pede em lugar de choro e vela que o homenageiem com um bom “samba-enredo”.

A chuva forte continua caindo sobre o telhado do barraco em que o presidente está preso. Seus raptores parecem tê-lo abandonado ali. O silêncio é total. O presidente recluso decide fugir pelo telhado. A alguns passos da cabana um tiro o colhe pela nuca. Sua morte éinstantânea. Um dos seqüestradores, acordado pela barulheira, briga com o atirador. Adeus dinheiro para o resgate! “Esse negócio com presidente não vale a pena”, argumenta o assassino, “o valor do resgate de um presidente é muito baixo.”

O cadáver é enterrado, ali mesmo, no anonimato do cerrado. Os seqüestradores haviam assaltado o carro errado, o plano era capturar um empresário rico.

3. Sobre o mito nos três romances.

“O que é um mito?” pergunta-se Jean-Pierre Vernant (1996) em sua coletânea mais recente: Entre mythe et politique. E sua resposta é inequívoca: “O mito não existe. O mito é um conceito que os antropólogos tomaram de empréstimo à tradição ocidental, como se isso fosse tão fácil! Seu significado não éuniversal, seu sentido não é unívoco, não há realidade que lhe corresponda. Stricto sensu essa palavra não diz nada.” (Vernant 1966: 353).

Vernant admite, entretanto, que ao conceito de “mito” sempre se contrapôs o conceito de “logos”, o que permite ver o mito como sendo o lado avesso, o outro, do discurso verdadeiro. “Assim, o mito conquista seu direito de existência, no mundo grego, não pelo que ele propriamente é mas pelo que ele – por uma razão ou outra – exclui ou denega.” (Vernant 1996: 355). Assim sendo, o mito estabelece uma certa distância com relação ao que ele próprio tematiza. Nesta acepção, o conceito pode ‘transcender os limites da cultura grega clássica. Neste sentido lato sensu, a referência ao “mito” simplesmente exprime o fato de que, no caso do tratamento literário de um tema, não está sendo representada a realidade como tal; o texto literário ou o discurso permanecem no âmbito da “ficção”.

É nestes termos que procuro usar o conceito de mito na interpretação do meu tema.

Em sua Filosofia das formas simbólicas (1987), como é sabido, Ernst Cassirer refletiu sobre o “pensamento mítico”. Segundo o filósofo alemão, o mito estaria voltado essencialmente para a configuração, a estruturação do tempo (Gestaltung), mais especificamente, para as formas temporais (Zeitgestalten).

“O verdadeiro mito não nasce simplesmente no momento em que a intuição do universo com suas partes e forças se configura em certas imagens e figuras de deuses e demônios, mas no momento em que se atribui a tais figuras uma emergência, um vir-a-ser, uma vida no tempo.” (Cassirer 1987: 129).

Esse conceito de tempo implícito no mito não deve ser confundido com o conceito de tempo usado na história, como um simples desenrolar de eventos e fatos que se comportam de maneira causal um com relação ao outro, mas de uma passagem no tempo – de um tempo original (Urzeit) para o tempo efetivo (eigendiche Zeit), ou deste para um tempo sagrado (heilige Zeit). Essa passagem corresponderia a um “rito de passagem” para uma nova qualidade de vida, em que é dado o salto qualitativo no tempo, do tempo profano para o tempo sagrado (ou não).

Ao indagar sobre o mito da megalópole na literatura brasileira contemporânea, interessa-me, pois, descobrir e ressaltar essas “figuras temporais” (Zeitgestalten) no sentido de Cassirer. Até que ponto os três romances urbanos aqui escolhidos tematizam este tipo de figuras? E como?

Ao aprofundar-me no tema, tornou-se necessário considerar uma outra diferenciação: de um lado, a questão do “mi to na megalópole” e, de outro, a questão do “mito da megalópole”. No primeiro caso, trata-se de estudar os personagens que se transformam em mitos na grande cidade. Nos romances aqui selecionados, as figuras míticas são encarnadas por Macabéa, Souza e o presidente Paulo Antônio. No segundo caso, o do mito da megalópole, a própria megalópole passa a ser um personagem principal, ou seja, sua “ação” e seu “desempenho” passam a assumir um caráter mítico. No sentido de Barthes, a própria cidade passa a ser considerada “texto”, produtora de textos. Nesta ótica, as cidades do Rio, de São Paulo e de Brasília estariam sendo tratadas como personagens míticos.

O “mito do passado” ganha destaque na Hora da estrela, de Lispector, pela maneira com que Macabéa se movimenta na cidade, presa às regras do jogo e padrões sociais de sua região de origem. Ela não consegue beneficiar-se das “ofertas” da megalópole por continuar vivendo no passado, no estilo de vida nordestino. Ela não consegue transformar a relação com Olímpio em um verdadeiro namoro por continuar presa aos preceitos morais tradicionais do nordeste. Jamais realizará seu sonho oculto de tornar-se atriz, por sua aparência insignificante e “tipicamente nordestina”. Macabéa também não pode comprar as mercadorias expostas nas vitrines de luxo de Copacabana por não possuir dinheiro. Pela mesma razão ela não pode ir a restaurantes. Alimenta-se de cachorro-quente, tem saudades da comida nordestina e continua subnutrida no Rio como já o era em Alagoas. Os navios que partem do porto e que gosta de observar calada, bem como os aviões que a sobrevoam são tão inatingíveis para a moça como as estrelas. Com sua mudança para o Rio, nada mudou para ela: Macabéa continua tão pobre, ignorante, explorada, infeliz e ameaçada de morte quanto esteve em sua terra natal. Ela não tem competência para viver na megalópole e paga essa incompetência com a morte. Será a vítima do trânsito agressivo da antiga capital. Assim termina o mito na megalópole. Ela não consegue conhecer seu tempo, acompanha-lo, adiantar-se a ele, no sentido de Cassirer. E sucumbe às crendices e mentiras do passado para as quais é seduzida pela cartomante.

Mas como se apresenta, neste romance de Lispector, o mito da cidade do Rio de Janeiro? O Rio permanece para Macabéa um enigma. Um monstro que lhe tirará a vida, a megalópole que tudo devora. Mas o Rio, sujeito, personagem, está voltado para o passado como Macabéa. A violência do cangaceiro é substituída pela violência do motorista no trânsito. A cidade se comporta – depois da transferência da capital para Brasília – como uma mulher abandonada pelo marido que não consegue refazer a vida. A própria Rio de Janeiro não tem controle sobre a situação e sucumbe nos tempos da megalópole às suas próprias contradições. Por isso mesmo, o Rio é incapaz de amparar aqueles seres humanos que o procuram para, mudar de vida, vencer na luta. Macabéa não decifrou o enigma da cidade e a cidade se vinga, engolindo-a.

O mito do presente está condensado no romance de Almino, Samba-enredo. 0 presidente fictício, Paulo Antônio, que gostaria de ser um líder messiânico, nada mais é que um simples presidente, cidadão comum, como tantos outros antes (e possivelmente depois) dele. Seu valor é tão ínfimo que os seqüestradores, ao perceberem que ele é o presidente, nem se dão o trabalho de pedir o resgate, enterrando-o numa cova anônima do cerrado. Como em outros casos, antes dele, ele não chegará ao final de seu mandato, deixará o país na crise e com a ameaça de nova ditadura militar. Sua vocação messiânica não basta para dar o salto do profano para o sagrado, como sua liderança é fraca para projetar o país do presente para o futuro. Atémesmo Ana, sua amante, prefere abandonar o computador, a transformar o presidente morto em ídolo e mito para conquistar novos horizontes e vencer velhas dificuldades. As circunstâncias de sua morte são demasiadamente banais.

Nem mesmo Brasília, a cidade planejada e simbolizada em forma do avião, consegue reverter esse quadro da mediocridade do personagem central. A nova Capital procura sua identidade no presente, no carnaval, na farsa e no deboche da política do dia-a-dia. A cidade construída por urbanistas e arquitetos não tem, por si só, força para construir uma nova sociedade. O povo permanece supersticioso, ingênuo, crédulo e vulnerável a movimentos messiânicos, a sentimentos míticos. Está exposto à mídia niveladora, presa ao cotidiano, ao presente. Rádio, televisão, vídeo, cinema, telões, cartazes, telefones portáteis são tecnologias novas que veiculam ideologias velhas. Brasília, como a antiga capital, fornece o substrato urbano para a corrupção, os escândalos sexuais, os golpes que já pertenciam ao quotidiano da vida política e social carioca. O novo, prometido por Brasília, é roupagem diferente, fantasia carnavalesca para disfarçar o déjà vu, o velho, o sempre-o-mesmo.

O laptop conservava em seu disco rígido uma estória que, por sua repetição cansativa, se desfaz em farsa, não tem interesse. Ana percebe isso e abandona a máquina em que parou o tempo, jogando-a no lixo.

O mito do futuro é tematizado em Não verás país nenhum. Trata-se de um futuro sem perspectivas para Souza, o narrador e personagem mítico do romance. Seu triste fim está selado desde o início da narrativa. O mesmo vale para a megalópole que serve de base material e urbana para a trama. Souza, historiador, ainda tem lembranças de tempos melhores, mas vive na consciência do seu fim próximo, desesperado. Seu destino é indissociável do destino de São Paulo. Aqui o mito na megalópole se sobrepõe ao mito da megalápole. Os dois mitos se confundem, se mesclam em um. 0 destino de Souza é o destino de São Paulo e o que vai acontecer a São Paulo arrastará consigo todos os milhões de Souzas que povoam a cidade. São Paulo, em franca ascensão econômica, no início do século XIX e XX, é apresentada – no final do século XX – como uma cidade “terminal” que somente promete morte e esterilidade para todos os seus habitantes.

A economia de mercado globalizada, a ditadura militar, a falta de consciência ecológica, a indiferença e a ignorância da população não deixam perspectivas para o futuro. Uma geração nova, expatriada, é a única esperam que resta.

Nos três romances, os autores desconstroem a visão otimista da cidade como instância civilizadora, socializadora, de “civitas” no sentido que lhe atribuiu Sennett (1990). Longe de serem pontos de irradiação do progresso, espaços organizados para uma vida melhor, centrais racionais da organização da cidadania, da democracia e do “bem viver” aristotélico, as cidades tematizadas por Lispector, Loyola Brandão e João Almino não prometem vida melhor, não oferecem chances aos indivíduos de transcenderem os seus limites e seu tempo para construírem um novo mundo em novo espaço urbano. Essa visão, que caracterizava ainda certos romances de Hugo a Balzac, de Dickens e Dos Passos parece justificar-se somente para as “metrópoles” da virada do século XIX para o XX (cf. Caillois, 1966; Klotz, 1969). Aqui o espaço urbano ainda oferecia chances de realização individual aos personagens atrevidos e pouco escrupulosos. Na era da megalópole, neste final de século e milênio, os indivíduos já não têm vez. Como vimos, tanto Macabéa quanto Souza e Paulo Antônio estão condenados à morte, cada um à sua maneira e dentro das malhas que cada megalópole lhes teceu: o trânsito infernal do Rio, o desequilíbrio político e ecológico de São Paulo, o crime econômico e político organizado de Brasília. ..

Acreditando-se nos romancistas aqui analisados, as megalópoles não conseguem gerar personagens míticas novas, Zeitfiguren, no sentido de Cassirer, que rompam as algemas do profano, do agora e anunciem tempos melhores, “sagrados”, de uma vida digna no futuro das megalópoles. O que ainda parecia ser possível no contexto das metrópoles, se tomarmos a Paris de Balzac como paradigma, não acontece mais no contexto das megalópoles.

Em outras palavras, o mito na megalópole, representado pelos personagens de Macabéa, Souza e Paulo Antônio é devorado pelo mito da megalópole, o monstro ciclópico que destrói seus habitantes e acabará se devorando a si próprio.


4. Bibliografia

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Klotz, Volker. (1969). Die erzählte Stadt. Ein Sujet als Herausforderung des Romans von Lesage bis Döblin. München: Carl Hanser Verlag.

Lispector, Clarice (1977). A hora da estrela. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 23′ edição (usada) 1995.

Machado de Assis (1957). “A cartomante”. Em: Ibid. Obras Completas de Machado de Assis. Editores W. M. Jackson Inc.. Rio, S.Paulo, P Alegre, vol. 14 (pp. 9-25).

Orsini, Elisabeth (1994). “Caso de amor com um computador”. Em: O Globo/Livros, 07.08.94, p. 6.

Osaskabe, Haquira (1994). “O romance carnavalesco de um narrador-computador”, em: Folha de São Paulo/Livros, 09.10.94, p. 6.

Spielmann, Ellen (1994). Brasilianische Fiktionen: Gegenwart als Pastiche. Frankfurt/M: Vervuert.

Vernant, Jean-Pierre (1996). Entre mythe et politique. Paris: Seuil.

Notas

1 Vide (na bibliografia trabalhos publicados por Briesemeister/Feldmann/ Santiago (1992); Spielmann (1994); Osakabe (1994); Bonvicino (1994); Orsini (1994) a respeito.

2 A filmagem deste romance, feita por Susana do Amaral, em 1986, transfere o cenário da vida e morte de Macabéa para São Paulo. A cineasta consegue, assim, radicalizar as diferenças da vida de Macabéa (no nordeste) e sua vida urbana,” nova” , na megalópole.

3 O leitor de Várias histórias, de Machado de Assis, fará a associação com Camilo, o personagem central de “A Cartomante” (M. de Assis, 1957: Obras Completas, vol. 14, pp. 9-25). Camilo ouvira da cartomante que nada lhe aconteceria, pois seu amigo Vilela ignorava a relação amorosa clandestina que ele, Camilo, mantinha com Rita, a mulher do amigo. “Pensando nas horas felizes de outrora e nas que haviam de vir”, vai à casa do Vilela que o mandara chamar. Ao entrar no apartamento, Vilela o mata com dois tiros.

4 Clarice Lispector fez um empréstimo aos escritos apócrifos dos Macabeus (em quatro volumes: I-IV) do judaísmo. Nesses escritos, encontram-se relatos das lutas dos judeus contra os sírios na época do Imperador romano, Calígula. Nesses relatos é dado destaque ao martírio dos judeus que representavam o protótipo do homem justo e sensato que luta contra impulsos irracionais. Esses escritos não foram reconhecidos nem pelos judeus, nem pelos protestantes. Contudo, os católicos, entre eles Tomás de Aquino, preservaram e retransmitiram-nos esses escritos por suas histórias de sofrimento e martírio.

5 Em Balzac et le mythe de Paris (1957), Roger Caillois mostra que Balzac, apoiado em Baudelaire, procurava refletir em sua Comédie Humaine exatamente essa noção do mito moderno. Seus heróis simbolizam superação de dificuldades, saltos no tempo, passagens de uma episteme a outra (p. ex., do romantismo para o realismo). “Certes le roman n’est pas le mythe. Cependant ses héros, comme les héros mythiques, apportent à l’individu les répondants dont il a besoin pour oser agir, quelquefois même pour seulement imaginer sa conduite future.” (p. xvii). Em Balzac, Honoré de. (1966, vol.4, pp. I-xvi)

6 Essa distinção* pode facilmente ser ilustrada no final do romance de Balzac Le père Goriot (1834; 1966), no diálogo de Rastignac, o jovem herói vindo do campo, disposto a enfrentar os desafios da grande cidade, da metrópole de Paris. Rastignac, que testemunhara o sacrifício do pai pelas filhas e a indiferença dessas na hora da morte do velho, conscientiza-se, durante o enterro, que Paris é o personagem que destrói todas as sensibilidades; e écontra ela que Rastignac lançará seu grito de revolta: “À nous deux maintenant!” (Balzac, vo1.4: p. 322). Através da Comédie Humaine este “herói” não se deixará intimidar e ensinará a outros jovens, como “vencer” na vida, em Paris. Enquanto Rastignac incorpora o mito na cidade, Paris representa o mito da cidade. Aqui, os dois personagens ainda estão em pé de igualdade; um desafia o outro, um é a condição de existência e sobrevivência do outro. Na megalópole essa equação será zerada.

7. Le mythe de Paris annonce d’étranges pouvoirs de Ia littérature. […111 entend traduire une réalité ephémère et changeante, qu’il cherche à modifier en donnant conscience au lecteur des problèmes de l’époque, en l’obligeant à les examiner, en lui suggérant l’attitude qu’il doit prendre, en lui proposant l’exemple d’une décision prestigíeuse. Balzac est à l’origine d’un pareil mode d’emploi du roman.” (Caillois, 1957: xvii).

Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 132: 143-158, jan.-mar., 1998

por Barbara Freitag

1. Metrópole e megalópole

Em um pequeno ensaio Civilização urbana e subculturas da cidade (Freitag 1997: 111), fiz uma distinção conceitual entre “metrópole” e “megalópole”. O termo “megalópole” não se refere somente à dimensão quantitativa da vida urbana, mas também a uma dimensão qualitativa, ou seja, a uma forma específica da vida societária em cidades gigantescas, típica para este final do século XX. As características essenciais da “megalópole” contemporânea podem ser resumidas de forma típico-ideal como segue:

1. trata-se de cidades gigantes, com uma população que oscila em torno de 10 milhões ou mais de habitantes;

2. esse crescimento urbano vertiginoso aconteceu nas últimas três décadas, portanto nos anos 70, 80 e 90 (do século XX), período em que o número de habitantes triplicou ou quadruplicou-se;

3. essa verdadeira explosão demográfica não se deveu tanto a um crescimento vegetativo da população urbana, mas sim à confluência maciça de populações das mais variadas origens;

4. a imigração mais ou menos descontrolada dos migrantes das mais variadas regiões do território nacional e mesmo do exterior, do campo, de aldeias e de pequenas cidades gera uma civilização multicultural;

5. essa civilização urbana compõe-se de “.subculturas” em si homogêneas, mas entre si divergentes; tomando-se como critérios de distinção a nacionalidade, a classe social, a etnia, convicções religiosas, grupos etários, o gênero e os hábitos sexuais dos habitantes da megalópole;

6. por isso mesmo, a megalópole caracteriza-se por contrastes radicais que se refletem no tecido urbano, nos materiais dos prédios, nos estilos arquitetônicos: ao lado de arranha-céus de aço e vidro fumé, encontram-se favelas, cortiços, “barriadas” que ocupam as áreas vazias entre os prédios e bairros, e as zonas periféricas. Os barracos de papelão e lata, madeira e bambu vão se multiplicando à beira dos rios e das auto-estradas, embaixo de pontes de concreto e aço e em estacas sobre lagunas, como em tempos pré-históricos. Eles convivem com enormes centros comerciais (shopping centers), parques de diversão, complexos empresariais, conglomerados bancários de alto luxo dos tempos pós-modernos;

7. as megalópoles de hoje são os pilares e os pontos de cristalização da economia mundial globalizada; elas são os sustentáculos da pós-modernidade.

8. Praticamente quatro quintos das megalópoles do mundo contemporâneo encontram-se no hemisfério sul, o que equivale a dizer que pertencem aos países subdesenvolvidos ou em franco desenvolvimento.

Essa lista de características permitiria novos acréscimos. Entretanto, o conceito de “megalópole” se torna mais nítido se o confrontarmos ao conceito de “metrópole”.

Quando se fala em “metrópole” também se tem em mente uma cidade grande. Mas ao contrário da megalópole, a metrópole não chega a 10 milhões de habitantes e não acusa um crescimento populacional sensível nas últimas três ou quatro décadas. Ao contrário, na maior parte das metrópoles do mundo registra-se, hoje, um decréscimo da população, devido a taxas de natalidade baixíssimas e um controle rigoroso das imigrações.

O termo “metrópole” denota uma cidade histórica, de tradição centenária. Especialmente as metrópoles européias transformaramse no final do século XIX e começo do século XX em capitais de nações desenvolvidas, centros da industrialização moderna e arquivos da cultura mundial, que passaram a determinar os estilos de vida dentro e fora da Europa. Um exame do mapa mundial revela que a maioria das metrópoles encontra-se no hemisfério norte. Elas foram e continuam sendo os pontos de irradiação da modernidade.

As enormes riquezas materiais e simbólicas compiladas nas metrópoles, transformaram-nas em lugares de atração turística sem par. Anualmente, milhões de turistas batem às suas portas, invadem seus museus, suas galerias de arte, hotéis e restaurantes para admirar as curiosidades e consumir os bens materiais e simbólicos aqui armazenados. Depois da “temporada”, voltam aos seus países de origem. As metrópoles européias demonstraram uma extraordinária habilidade em explorar o turismo. Graças à preservação e proteção de suas riquezas culturais, ao controle dos refugiados emigrantes, às suas instituições de assistência social, aos seus sistemas viários e de transportes aéreos, onde se registram os movimentos de passageiros e os fluxos de turistas e refugiados, as metrópoles de hoje ainda conseguem preservar a paz intramuros e oferecer uma alta qualidade de vida a seus cidadãos. Tensões sociais; conflitos étnicos e religiosos em outras partes do mundo são ignorados ou harmonizados por instituições competentes extra-muros. Por quanto tempo ainda?

Ronald Daus fala da “terceiromundialização” das metrópoles européias (Daus: 1997: 222). De minha parte, dou preferência ao termo “megalopolização” . Na essência, os dois termos se referem à mesma coisa. Ambos procuram dar conta dos radicais processos de transformação da vida humana no globo terrestre, que se refletem nos modernos espaços urbanos. As tendências da megalopolização são, pois, mais nítidas nas cidades gigantescas do hemisfério sul, ou seja, nas megalópoles, mas podem manifestar-se, de forma atenuada, nas metrópoles do hemisfério norte. Nesse processo de megalopolização, as fronteiras nacionais estão sendo gradativamente dissolvidas, os Estados Nacionais tornam-se cada vez mais permeáveis, diluindo-se suas formas de legitimação e seu alcance jurídico. Haverá uma condensação cada vez maior de pessoas nos grandes conglomerados urbanos. Comunidades campestres; cidades de pequeno e ‘ médio porte possivelmente desaparecerão do mapa no início do terceiro milênio, diluindo-se também as instituições sociais nas quais se apoiavam (família, cooperativas, corporações, municipalidades). Sua sobrevivência ficará condicionada à proximidade ou não de uma grande megalópole.

A forma de institucionalização da sociedade moderna passa pela urbanização crescente, em outras palavras, pela “metropolização” e “megalopolização” .

No Brasil, essa tendência já se concretizou. Enquanto hoje em dia 50% da população mundial vive no campo, no Brasil dos anos noventa, a população rural já se reduziu a 25% da população total. Isso significa que 120 milhões dos 160 milhões de brasileiros vivem em cidades, a maior parte em conglomerados urbanos no sul e sudeste do país, ou seja, no Eixo Rio-São Paulo, i. é., em duas megalópoles, na definição acima.

Em quase todas as partes do mundo artistas, cineastas, escritores e poetas detectaram esse fenômeno da megalopolização. Com sua maior sensibilidade às novas formas de sociabilidade que as megalópoles fazem emergir, eles traduziram esses fenômenos em seus filmes, romances, peças de teatro ou poemas. Filósofos, sociólogos, políticos, economistas e demógrafos assumiram até agora o papel do mocho de Minerva: somente foram alertados para os fatos novos depois do clamor dos profissionais da criatividade e buscaram, a posteriori, explicações ou conceptualizações para o que vem acontecendo.

2. A megalópole na literatura brasileira contemporânea

Para compreender melhor esse papel “sismográfico” da arte, selecionei, a título de exemplo, três romances brasileiros, escritos nas últimas três décadas, e que se passam em três megalópoles brasileiras: o Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília:

-A hora da estrela (1977), de Clarice Lispector;

– Não verás país nenhum (1981), de Ignácio de Loyola Brandão;

– Samba-enredo (1994), de João Almino.

Os critérios para essa seleção foram fornecidos pela própria definição de “megalopolização” e pela distinção feita entre metrópole e megalópole.

O Rio de Janeiro dos anos setenta, ex-capital federal, fornece a moldura urbana para o romance A hora da estrela, de Clarice Lispector. Trata-se do Rio de Janeiro que ainda apresenta certas feições da metrópole que ela já não é mais, em conseqüência da “megalopolização” a que esteve submetida nas últimas décadas.

A São Paulo da década de oitenta, a maior megalópole da América do Sul, constitui a arena que Ignácio de Loyola Brandão escolheu para desenvolver suas visões apocalípticas da sociedade brasileira e da capital paulista no ano 2020.

E, finalmente, a Brasília da década de 90, que ainda não é “megalópole”, no sentido estrito da palavra, mas que se encontra em franco processo de “megalopolização”, fornece o palco para a ação do romance de João Almino.

Outros critérios foram fornecidos por teóricos e críticos literários mas também tradutores (do português para o alemão) da literatura ficcional brasileira.

Em suas narrativas, esses romances traduzem percepções bem peculiares da cidade: os seus ruídos e cheiros, suas cores, as luzes e sombras, os espaços estruturados e delimitados. Implícita ou explicitamente, seus autores apontam para as características “típicas” de uma megalópole. Essa forma do romance urbano representa um salto qualitativo com relação aos romances urbanos clássicos que descreviam a metrópole européia. (Vide os estudos detalhados feitos por Volker Klotz , 1969).

Metaforicamente, poder-se-ia dizer que as características da megalópole, inicialmente destacadas, assumem a função de filtro ou rede, capazes de detectar, nos próprios romances, os processos de institucionalização das sociedades globalizadas.

2.1. O Rio no romance “A hora da estrela”

Como já foi dito, a ação deste último romance de Clarice Lispector (1925-1977) desenrola-se no Rio. Considerando-se que não pretendo fazer crítica literária, permito-me colocar em parênteses a sofisticada construção do romance, em especial a intrincada relação entre narrador e leitor, idealizada pela escritora, voltando-me diretamente para a trama do romance. Esta é surpreendentemente simples, quase banal.

Macabéa, a personagem central do romance, muda-se, depois da morte de sua tia, de Alagoas, onde nascera, para o Rio. Ela mora na rua do Acre, na zona portuária já decadente, dividindo o quarto com três outras moças em uma pequena pensão. Macabéa trabalha como datilógrafa em um escritório, onde – por sua mediocridade e insignificância – émaltratada pelo chefe. Ela é virgem, pequena e franzina, quase feia, em todo caso, inexpressiva. Por isso mesmo, até surpreende que arranje um namorado, Olímpio, que mais tarde a deixará por Glória, uma de suas companheiras de quarto. Macabéa, que aceita esse fato novo com certa naturalidade, também aceita o conselho de Glória: procurar uma cartomante. Ao “ler” o futuro implacável da moça nas cartas, até mesmo a cartomante se compadece. Não ousa revelar a verdade a Macabéa e resolve mentir. A cartomante inventa uma pequena história e fala de uma mudança radical em sua vida: o encontro com um jovem rico, loiro, de olhos azuis, e de nome Hans. Alegre com essa boa nova, Macabéa sai da casa da cartomante. Ao pôr o pé na calçada é atropelada por uma Mercedes, cuja estrela na capota da frente do carro ainda percebe ao tombar na rua. O motorista loiro foge em seu carro. Com um sorriso nos lábios, Macabéa morre no local, convencida de que essa era a sua hora da estrela.

Macabéa representa milhares de “nordestinas” que, ansiosas por deixarem a vida miserável que vivem no nordeste, tentam sua sorte na grande cidade, onde na maioria das vezes acabam sendo trituradas e engolidas. Macabéa é uma dessas mártires inumeráveis, com sua morte anunciada já no próprio nome.

2.2. São Paulo em “Não verás país nenhum”

O autor deste romance, nascido no interior de São Paulo, em 1936, escolhe a capital paulista no ano 2020 para desenvolver sua trama da sociedade brasileira vitimada pelo regime militar e pelo desequilíbrio ecológico. Como já foi destacado por outros autores (Engler, 1992; Spielmann, 1994), Ignácio de Loyola Brandão fez da megalópole São Paulo seu personagem principal. O futuro próximo dessa cidade é apresentado numa visão de horror e apocalipse em Não verás país nenhum parafraseando o conhecido poema de Olavo Bilac.

Souza; ao mesmo tempo narrador e personagem central do romance, vivencia as diferentes etapas da destruição da cidade, que coincidem com as etapas da destruição da sociedade brasileira. Como antigo professor de história, prematuramente aposentado, Souza procura relembrar-se de passagens relevantes de sua vida, especialmente os momentos que lhe teriam possibilitado interferir nos processos societários em curso para tentar evitar o pior.

O governo militar havia entregue a firmas nacionais e multinacionais concessões para a exploração de vastas regiões do território nacional, especialmente na Amazônia. Com a derrubada da última árvore da antiga selva amazônica, a seca no nordeste se agravara, deslanchando um movimento migratório sem paralelo, em direção ao sul. Em pânico, a população nordestina buscara salvar-se em São Paulo, mas fora apanhada em sua fuga por enormes ondas e buracos de calor que os haviam torrado e reduzido a pó e cinzas. A maior parte dos fugitivos morrera, pois, no caminho. Uma pequena parte procurou voltar e buscar abrigo nos antigos sítios. Somente um grupo menor alcançara a megalópole São Paulo, onde passara a viver “no isolamento”, na periferia pauperizada da cidade. Aqui há falta de tudo. A comida insípida tem consistência de borracha. Somente variam as cores e os cheiros, sem que os alimentos, uma vez ingeridos, saciem os famintos. Em toda

cidade há falta crônica de água. Até mesmo a urina é reciclada. Para a racionalização e o controle do uso da água, são distribuídos “tíquetes” que muitos usam como moeda de barganha. Do mesmo modo, existem tíquetes de alimentação e de “circulação” que autorizam (ou não) os habitantes a se locomoverem de um bairro a outro. Há controles em toda parte para capturar os infratores. Os controladores são subornáveis, mas são, ao mesmo tempo, espiões e delatores que reportam irregularidades aos superiores e dirigentes políticos.

A poluição do ar submerge São Paulo sob uma enorme nuvem marrom-cinzenta. O sol somente é perceptível pelo imenso calor que irradia e que fica armazenado entre os prédios cinzentos e as ruas estreitas; barulhentas e malcheirosas. O centro da cidade parece morto, triste e deserto. Envolve-o um cinturão de áreas habitadas, onde vivem certos privilegiados que procuram defender-se como podem. Mas ninguém sabe exatamente como vivem e o que acontece atrás das muralhas de proteção erguidas contra os habitantes menos privilegiados e os fugitivos do nordeste. Sabe-se que este cinturão está habitado pelos conformistas que vivem com medo do estado policial, mas o apóiam para defender-se de outros medos. No “Isolamento”, o círculo periférico, as multidões se atropelam, se agridem e se matam. Cadáveres e moribundos amontoam-se por toda parte, são esmagados e pisoteados por aqueles que aind a lutam pela sobrevivência. E preciso fugir do sol, de seus raios, de seu calor, antes que eles abafem, sufoquem tudo e todos. O único lugar de abrigo existente são as enormes marquises que o governo mandou instalar. Um passo em falso, um empurrão para a área exposta aos raios e a morte é certa. Cai-se no abismo, no nada, no calor tórrido do inferno.

O romance termina com Souza, o personagem central, à beira do abismo. Ele ainda está vivo mas sem esperanças. Lembra-se, remo-tamente, de que no desespero extremo ele, como outros pais, havia levado os seus filhos para um navio em Santos, enviando-os para além-mar. Somente o retorno dessa geração mais nova poderia trazer alguma forma de salvação.

2.3 Brasília no Romance “Samba-enredo”

O narrador sem corpo mas não imaterial deste romance é uma máquina, mais especificamente um computador portátil, um laptop, jogado no lixo. No seu disco rígido, encontram-se anotações de Ana, escritora e amante do presidente.

GG ou “Gigi”, como se autodenomina o computador sem dono, começa a decodificar os textos cifrados que guarda em sua memória. Nesse processo, traz à tona os textos com os quais havia sido alimentado por Ana, antes de ser jogado fora. Eram anotações feitas durante as festividades de carnaval em Brasília, nos anos noventa. Originalmente, Ana pensara transformar essas anotações em um romance, depois desistira dessa idéia. Em seu esforço de rememorização, o disco rígido consegue restabelecer os ruídos e as batucadas do pano de fundo, que vão se avolumando. O programa de computador submete-os, então, a uma filtragem para discriminar a gritaria da música, os diálogos do barulho das cigarras, para finalmente selecionar o que julga relevante. Reconstitui, em seguida, os jogos de luz com o céu estrelado, os cartazes iluminados de Conjunto Nacional, os holofotes perto do teatro Martins Pena e da Rodoviária. Finalmente, reconfigura a ação, tudo aquilo que aconteceu em uma noite morna de carnaval no Plano Piloto da cidade, antes de Ana desfazer-se da máquina.

João Almino (1950- ), o autor do romance, atribui ao computador a competência para retrieve, de fragmento em fragmento, a trama do que aconteceu ao personagem central. Paulo Antônio Fernandes, o primeiro presidente negro do Brasil, acredita ser um novo messias, capaz de ajudar o seu povo. Ele assiste à folia carnavalesca sentado em sua tribuna, erguida ao longo do Eixão e aproveita a ocasião para dirigir algumas palavras à multidão. Depois do discurso, ao entrar em seu carro, é cercado por um grupo de pessoas contrariadas. Com olhares raivosos, gritando palavrões, jogam pedras e dão vazão ao seu descontentamento com o governo. O grupo rebelde é disperso pelos simpatizantes, pelos seguranças, policiais e militares que estão por perto. O carro se afasta, mas permanece o mal-estar. Antes que o veículo atinja a garagem do Palácio do Planalto, já correm boatos de que o presidente teria sido seqüestrado. Ouvem-se afirmações de que estaria morto, que um novo golpe militar teria tido êxito. Como o vice-presidente não se encontrava no país, o exército já teria cercado a Praça dos Três Poderes.

Enquanto a boataria progride, uma tempestade desaba sobre o Plano Piloto, encharcando os foliões e os espectadores. A festa vira pesadelo. A multidão tensa e silenciosa aguarda um milagre. Velas são acesas e, por causa da chuva, também lanternas e lampeões. Ouvem-se murmúrios e preces.

Em verdade, o presidente não tinha tomado rumo ao Palácio, mas estava a caminho da fazenda de sua irmã, Eva. Na estrada deserta seu carro é assaltado por homens mascarados que o seqüestram e levam para o meio do cerrado. Aí o obrigam a escrever uma carta, na qual informa o valor do resgate exigido. Junto com a carta dirigida ao povo brasileiro, Paulo Antônio envia um bilhete para sua mulher e sua filha. Está convencido de que o seqüestro tem razões políticas e aposta em sua libertação para, finalmente, dar início às obras de reformas das quais a sociedade brasileira tanto necessita. Caso seja sacrificado, pede em lugar de choro e vela que o homenageiem com um bom “samba-enredo”.

A chuva forte continua caindo sobre o telhado do barraco em que o presidente está preso. Seus raptores parecem tê-lo abandonado ali. O silêncio é total. O presidente recluso decide fugir pelo telhado. A alguns passos da cabana um tiro o colhe pela nuca. Sua morte éinstantânea. Um dos seqüestradores, acordado pela barulheira, briga com o atirador. Adeus dinheiro para o resgate! “Esse negócio com presidente não vale a pena”, argumenta o assassino, “o valor do resgate de um presidente é muito baixo.”

O cadáver é enterrado, ali mesmo, no anonimato do cerrado. Os seqüestradores haviam assaltado o carro errado, o plano era capturar um empresário rico.

3. Sobre o mito nos três romances.

“O que é um mito?” pergunta-se Jean-Pierre Vernant (1996) em sua coletânea mais recente: Entre mythe et politique. E sua resposta é inequívoca: “O mito não existe. O mito é um conceito que os antropólogos tomaram de empréstimo à tradição ocidental, como se isso fosse tão fácil! Seu significado não éuniversal, seu sentido não é unívoco, não há realidade que lhe corresponda. Stricto sensu essa palavra não diz nada.” (Vernant 1966: 353).

Vernant admite, entretanto, que ao conceito de “mito” sempre se contrapôs o conceito de “logos”, o que permite ver o mito como sendo o lado avesso, o outro, do discurso verdadeiro. “Assim, o mito conquista seu direito de existência, no mundo grego, não pelo que ele propriamente é mas pelo que ele – por uma razão ou outra – exclui ou denega.” (Vernant 1996: 355). Assim sendo, o mito estabelece uma certa distância com relação ao que ele próprio tematiza. Nesta acepção, o conceito pode ‘transcender os limites da cultura grega clássica. Neste sentido lato sensu, a referência ao “mito” simplesmente exprime o fato de que, no caso do tratamento literário de um tema, não está sendo representada a realidade como tal; o texto literário ou o discurso permanecem no âmbito da “ficção”.

É nestes termos que procuro usar o conceito de mito na interpretação do meu tema.

Em sua Filosofia das formas simbólicas (1987), como é sabido, Ernst Cassirer refletiu sobre o “pensamento mítico”. Segundo o filósofo alemão, o mito estaria voltado essencialmente para a configuração, a estruturação do tempo (Gestaltung), mais especificamente, para as formas temporais (Zeitgestalten).

“O verdadeiro mito não nasce simplesmente no momento em que a intuição do universo com suas partes e forças se configura em certas imagens e figuras de deuses e demônios, mas no momento em que se atribui a tais figuras uma emergência, um vir-a-ser, uma vida no tempo.” (Cassirer 1987: 129).

Esse conceito de tempo implícito no mito não deve ser confundido com o conceito de tempo usado na história, como um simples desenrolar de eventos e fatos que se comportam de maneira causal um com relação ao outro, mas de uma passagem no tempo – de um tempo original (Urzeit) para o tempo efetivo (eigendiche Zeit), ou deste para um tempo sagrado (heilige Zeit). Essa passagem corresponderia a um “rito de passagem” para uma nova qualidade de vida, em que é dado o salto qualitativo no tempo, do tempo profano para o tempo sagrado (ou não).

Ao indagar sobre o mito da megalópole na literatura brasileira contemporânea, interessa-me, pois, descobrir e ressaltar essas “figuras temporais” (Zeitgestalten) no sentido de Cassirer. Até que ponto os três romances urbanos aqui escolhidos tematizam este tipo de figuras? E como?

Ao aprofundar-me no tema, tornou-se necessário considerar uma outra diferenciação: de um lado, a questão do “mi to na megalópole” e, de outro, a questão do “mito da megalópole”. No primeiro caso, trata-se de estudar os personagens que se transformam em mitos na grande cidade. Nos romances aqui selecionados, as figuras míticas são encarnadas por Macabéa, Souza e o presidente Paulo Antônio. No segundo caso, o do mito da megalópole, a própria megalópole passa a ser um personagem principal, ou seja, sua “ação” e seu “desempenho” passam a assumir um caráter mítico. No sentido de Barthes, a própria cidade passa a ser considerada “texto”, produtora de textos. Nesta ótica, as cidades do Rio, de São Paulo e de Brasília estariam sendo tratadas como personagens míticos.

O “mito do passado” ganha destaque na Hora da estrela, de Lispector, pela maneira com que Macabéa se movimenta na cidade, presa às regras do jogo e padrões sociais de sua região de origem. Ela não consegue beneficiar-se das “ofertas” da megalópole por continuar vivendo no passado, no estilo de vida nordestino. Ela não consegue transformar a relação com Olímpio em um verdadeiro namoro por continuar presa aos preceitos morais tradicionais do nordeste. Jamais realizará seu sonho oculto de tornar-se atriz, por sua aparência insignificante e “tipicamente nordestina”. Macabéa também não pode comprar as mercadorias expostas nas vitrines de luxo de Copacabana por não possuir dinheiro. Pela mesma razão ela não pode ir a restaurantes. Alimenta-se de cachorro-quente, tem saudades da comida nordestina e continua subnutrida no Rio como já o era em Alagoas. Os navios que partem do porto e que gosta de observar calada, bem como os aviões que a sobrevoam são tão inatingíveis para a moça como as estrelas. Com sua mudança para o Rio, nada mudou para ela: Macabéa continua tão pobre, ignorante, explorada, infeliz e ameaçada de morte quanto esteve em sua terra natal. Ela não tem competência para viver na megalópole e paga essa incompetência com a morte. Será a vítima do trânsito agressivo da antiga capital. Assim termina o mito na megalópole. Ela não consegue conhecer seu tempo, acompanha-lo, adiantar-se a ele, no sentido de Cassirer. E sucumbe às crendices e mentiras do passado para as quais é seduzida pela cartomante.

Mas como se apresenta, neste romance de Lispector, o mito da cidade do Rio de Janeiro? O Rio permanece para Macabéa um enigma. Um monstro que lhe tirará a vida, a megalópole que tudo devora. Mas o Rio, sujeito, personagem, está voltado para o passado como Macabéa. A violência do cangaceiro é substituída pela violência do motorista no trânsito. A cidade se comporta – depois da transferência da capital para Brasília – como uma mulher abandonada pelo marido que não consegue refazer a vida. A própria Rio de Janeiro não tem controle sobre a situação e sucumbe nos tempos da megalópole às suas próprias contradições. Por isso mesmo, o Rio é incapaz de amparar aqueles seres humanos que o procuram para, mudar de vida, vencer na luta. Macabéa não decifrou o enigma da cidade e a cidade se vinga, engolindo-a.

O mito do presente está condensado no romance de Almino, Samba-enredo. 0 presidente fictício, Paulo Antônio, que gostaria de ser um líder messiânico, nada mais é que um simples presidente, cidadão comum, como tantos outros antes (e possivelmente depois) dele. Seu valor é tão ínfimo que os seqüestradores, ao perceberem que ele é o presidente, nem se dão o trabalho de pedir o resgate, enterrando-o numa cova anônima do cerrado. Como em outros casos, antes dele, ele não chegará ao final de seu mandato, deixará o país na crise e com a ameaça de nova ditadura militar. Sua vocação messiânica não basta para dar o salto do profano para o sagrado, como sua liderança é fraca para projetar o país do presente para o futuro. Atémesmo Ana, sua amante, prefere abandonar o computador, a transformar o presidente morto em ídolo e mito para conquistar novos horizontes e vencer velhas dificuldades. As circunstâncias de sua morte são demasiadamente banais.

Nem mesmo Brasília, a cidade planejada e simbolizada em forma do avião, consegue reverter esse quadro da mediocridade do personagem central. A nova Capital procura sua identidade no presente, no carnaval, na farsa e no deboche da política do dia-a-dia. A cidade construída por urbanistas e arquitetos não tem, por si só, força para construir uma nova sociedade. O povo permanece supersticioso, ingênuo, crédulo e vulnerável a movimentos messiânicos, a sentimentos míticos. Está exposto à mídia niveladora, presa ao cotidiano, ao presente. Rádio, televisão, vídeo, cinema, telões, cartazes, telefones portáteis são tecnologias novas que veiculam ideologias velhas. Brasília, como a antiga capital, fornece o substrato urbano para a corrupção, os escândalos sexuais, os golpes que já pertenciam ao quotidiano da vida política e social carioca. O novo, prometido por Brasília, é roupagem diferente, fantasia carnavalesca para disfarçar o déjà vu, o velho, o sempre-o-mesmo.

O laptop conservava em seu disco rígido uma estória que, por sua repetição cansativa, se desfaz em farsa, não tem interesse. Ana percebe isso e abandona a máquina em que parou o tempo, jogando-a no lixo.

O mito do futuro é tematizado em Não verás país nenhum. Trata-se de um futuro sem perspectivas para Souza, o narrador e personagem mítico do romance. Seu triste fim está selado desde o início da narrativa. O mesmo vale para a megalópole que serve de base material e urbana para a trama. Souza, historiador, ainda tem lembranças de tempos melhores, mas vive na consciência do seu fim próximo, desesperado. Seu destino é indissociável do destino de São Paulo. Aqui o mito na megalópole se sobrepõe ao mito da megalápole. Os dois mitos se confundem, se mesclam em um. 0 destino de Souza é o destino de São Paulo e o que vai acontecer a São Paulo arrastará consigo todos os milhões de Souzas que povoam a cidade. São Paulo, em franca ascensão econômica, no início do século XIX e XX, é apresentada – no final do século XX – como uma cidade “terminal” que somente promete morte e esterilidade para todos os seus habitantes.

A economia de mercado globalizada, a ditadura militar, a falta de consciência ecológica, a indiferença e a ignorância da população não deixam perspectivas para o futuro. Uma geração nova, expatriada, é a única esperam que resta.

Nos três romances, os autores desconstroem a visão otimista da cidade como instância civilizadora, socializadora, de “civitas” no sentido que lhe atribuiu Sennett (1990). Longe de serem pontos de irradiação do progresso, espaços organizados para uma vida melhor, centrais racionais da organização da cidadania, da democracia e do “bem viver” aristotélico, as cidades tematizadas por Lispector, Loyola Brandão e João Almino não prometem vida melhor, não oferecem chances aos indivíduos de transcenderem os seus limites e seu tempo para construírem um novo mundo em novo espaço urbano. Essa visão, que caracterizava ainda certos romances de Hugo a Balzac, de Dickens e Dos Passos parece justificar-se somente para as “metrópoles” da virada do século XIX para o XX (cf. Caillois, 1966; Klotz, 1969). Aqui o espaço urbano ainda oferecia chances de realização individual aos personagens atrevidos e pouco escrupulosos. Na era da megalópole, neste final de século e milênio, os indivíduos já não têm vez. Como vimos, tanto Macabéa quanto Souza e Paulo Antônio estão condenados à morte, cada um à sua maneira e dentro das malhas que cada megalópole lhes teceu: o trânsito infernal do Rio, o desequilíbrio político e ecológico de São Paulo, o crime econômico e político organizado de Brasília. ..

Acreditando-se nos romancistas aqui analisados, as megalópoles não conseguem gerar personagens míticas novas, Zeitfiguren, no sentido de Cassirer, que rompam as algemas do profano, do agora e anunciem tempos melhores, “sagrados”, de uma vida digna no futuro das megalópoles. O que ainda parecia ser possível no contexto das metrópoles, se tomarmos a Paris de Balzac como paradigma, não acontece mais no contexto das megalópoles.

Em outras palavras, o mito na megalópole, representado pelos personagens de Macabéa, Souza e Paulo Antônio é devorado pelo mito da megalópole, o monstro ciclópico que destrói seus habitantes e acabará se devorando a si próprio.


4. Bibliografia

Almino, João (1994). Samba-enredo. São Paulo: Marco Zero.

Balzac, Honoré de (1966). Le père Goriot (1834). Em. Ibid. La Comédie Humaine (1966). Paris: Le Club Français du Livre, vol. 4 (pp. 19-323). Bonvicino, Regis (1994). “A carnavalização na obra de João Almino: escritor retoma a reflexão e ironia de Machado para tratar em seu romance do que há de banal e alienante na cultura nacional”, em: Jornal do Brasil/Idéias, 27.08.94, p. 3..

Brandão, Ignácio de Loyola (1981). Não verás país nenhum. Rio de Janeiro: Coderci.

Briesemeister, Dietrich/Feldmann, Helmut/Santiago, Silviano (eds.). Brasilianische Literatur der Zeit der Militãrherrschaft (1964-1984). Frankfurt/Main: Vervuert (Biblioteca Ibero-americana, 47).

Caillois, Roger (1966). “Balzac et le mythe de Paris”, Em: Balzac, H. de. La Comédie Humaine (1966), vol. 14: (pp. I – xvii).

Cassirer, Ernst (1987). Philosophie der symbolischen Formen, vol. 2: Das mythische Denken. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft.

Datis, Ronald (1997). Grossstädte Aussereuropas: Lebenslust und Menschenleid. Berlin: Ursula Opitz (Babylon Metropolis Studies, 3). Engler, Erhard (1992). “Von der Prähistorie in die Zukunft: die Herausforderung gilt”, em: Briesemeister/Feldmann/Santiago (1992: 129-149).

Freitag, Barbara (1997). “Civilização urbana e subculturas da cidade”, em: Ludemann, Marina (ed.): Brasmitte: urbane Interventionen. São Paulo, Pancrom, pp.110-114.

Klotz, Volker. (1969). Die erzählte Stadt. Ein Sujet als Herausforderung des Romans von Lesage bis Döblin. München: Carl Hanser Verlag.

Lispector, Clarice (1977). A hora da estrela. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 23′ edição (usada) 1995.

Machado de Assis (1957). “A cartomante”. Em: Ibid. Obras Completas de Machado de Assis. Editores W. M. Jackson Inc.. Rio, S.Paulo, P Alegre, vol. 14 (pp. 9-25).

Orsini, Elisabeth (1994). “Caso de amor com um computador”. Em: O Globo/Livros, 07.08.94, p. 6.

Osaskabe, Haquira (1994). “O romance carnavalesco de um narrador-computador”, em: Folha de São Paulo/Livros, 09.10.94, p. 6.

Spielmann, Ellen (1994). Brasilianische Fiktionen: Gegenwart als Pastiche. Frankfurt/M: Vervuert.

Vernant, Jean-Pierre (1996). Entre mythe et politique. Paris: Seuil.

Notas

1 Vide (na bibliografia trabalhos publicados por Briesemeister/Feldmann/ Santiago (1992); Spielmann (1994); Osakabe (1994); Bonvicino (1994); Orsini (1994) a respeito.

2 A filmagem deste romance, feita por Susana do Amaral, em 1986, transfere o cenário da vida e morte de Macabéa para São Paulo. A cineasta consegue, assim, radicalizar as diferenças da vida de Macabéa (no nordeste) e sua vida urbana,” nova” , na megalópole.

3 O leitor de Várias histórias, de Machado de Assis, fará a associação com Camilo, o personagem central de “A Cartomante” (M. de Assis, 1957: Obras Completas, vol. 14, pp. 9-25). Camilo ouvira da cartomante que nada lhe aconteceria, pois seu amigo Vilela ignorava a relação amorosa clandestina que ele, Camilo, mantinha com Rita, a mulher do amigo. “Pensando nas horas felizes de outrora e nas que haviam de vir”, vai à casa do Vilela que o mandara chamar. Ao entrar no apartamento, Vilela o mata com dois tiros.

4 Clarice Lispector fez um empréstimo aos escritos apócrifos dos Macabeus (em quatro volumes: I-IV) do judaísmo. Nesses escritos, encontram-se relatos das lutas dos judeus contra os sírios na época do Imperador romano, Calígula. Nesses relatos é dado destaque ao martírio dos judeus que representavam o protótipo do homem justo e sensato que luta contra impulsos irracionais. Esses escritos não foram reconhecidos nem pelos judeus, nem pelos protestantes. Contudo, os católicos, entre eles Tomás de Aquino, preservaram e retransmitiram-nos esses escritos por suas histórias de sofrimento e martírio.

5 Em Balzac et le mythe de Paris (1957), Roger Caillois mostra que Balzac, apoiado em Baudelaire, procurava refletir em sua Comédie Humaine exatamente essa noção do mito moderno. Seus heróis simbolizam superação de dificuldades, saltos no tempo, passagens de uma episteme a outra (p. ex., do romantismo para o realismo). “Certes le roman n’est pas le mythe. Cependant ses héros, comme les héros mythiques, apportent à l’individu les répondants dont il a besoin pour oser agir, quelquefois même pour seulement imaginer sa conduite future.” (p. xvii). Em Balzac, Honoré de. (1966, vol.4, pp. I-xvi)

6 Essa distinção* pode facilmente ser ilustrada no final do romance de Balzac Le père Goriot (1834; 1966), no diálogo de Rastignac, o jovem herói vindo do campo, disposto a enfrentar os desafios da grande cidade, da metrópole de Paris. Rastignac, que testemunhara o sacrifício do pai pelas filhas e a indiferença dessas na hora da morte do velho, conscientiza-se, durante o enterro, que Paris é o personagem que destrói todas as sensibilidades; e écontra ela que Rastignac lançará seu grito de revolta: “À nous deux maintenant!” (Balzac, vo1.4: p. 322). Através da Comédie Humaine este “herói” não se deixará intimidar e ensinará a outros jovens, como “vencer” na vida, em Paris. Enquanto Rastignac incorpora o mito na cidade, Paris representa o mito da cidade. Aqui, os dois personagens ainda estão em pé de igualdade; um desafia o outro, um é a condição de existência e sobrevivência do outro. Na megalópole essa equação será zerada.

7. Le mythe de Paris annonce d’étranges pouvoirs de Ia littérature. […111 entend traduire une réalité ephémère et changeante, qu’il cherche à modifier en donnant conscience au lecteur des problèmes de l’époque, en l’obligeant à les examiner, en lui suggérant l’attitude qu’il doit prendre, en lui proposant l’exemple d’une décision prestigíeuse. Balzac est à l’origine d’un pareil mode d’emploi du roman.” (Caillois, 1957: xvii).

Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 132: 143-158, jan.-mar., 1998

por Barbara Freitag

1. Metrópole e megalópole

Em um pequeno ensaio Civilização urbana e subculturas da cidade (Freitag 1997: 111), fiz uma distinção conceitual entre “metrópole” e “megalópole”. O termo “megalópole” não se refere somente à dimensão quantitativa da vida urbana, mas também a uma dimensão qualitativa, ou seja, a uma forma específica da vida societária em cidades gigantescas, típica para este final do século XX. As características essenciais da “megalópole” contemporânea podem ser resumidas de forma típico-ideal como segue:

1. trata-se de cidades gigantes, com uma população que oscila em torno de 10 milhões ou mais de habitantes;

2. esse crescimento urbano vertiginoso aconteceu nas últimas três décadas, portanto nos anos 70, 80 e 90 (do século XX), período em que o número de habitantes triplicou ou quadruplicou-se;

3. essa verdadeira explosão demográfica não se deveu tanto a um crescimento vegetativo da população urbana, mas sim à confluência maciça de populações das mais variadas origens;

4. a imigração mais ou menos descontrolada dos migrantes das mais variadas regiões do território nacional e mesmo do exterior, do campo, de aldeias e de pequenas cidades gera uma civilização multicultural;

5. essa civilização urbana compõe-se de “.subculturas” em si homogêneas, mas entre si divergentes; tomando-se como critérios de distinção a nacionalidade, a classe social, a etnia, convicções religiosas, grupos etários, o gênero e os hábitos sexuais dos habitantes da megalópole;

6. por isso mesmo, a megalópole caracteriza-se por contrastes radicais que se refletem no tecido urbano, nos materiais dos prédios, nos estilos arquitetônicos: ao lado de arranha-céus de aço e vidro fumé, encontram-se favelas, cortiços, “barriadas” que ocupam as áreas vazias entre os prédios e bairros, e as zonas periféricas. Os barracos de papelão e lata, madeira e bambu vão se multiplicando à beira dos rios e das auto-estradas, embaixo de pontes de concreto e aço e em estacas sobre lagunas, como em tempos pré-históricos. Eles convivem com enormes centros comerciais (shopping centers), parques de diversão, complexos empresariais, conglomerados bancários de alto luxo dos tempos pós-modernos;

7. as megalópoles de hoje são os pilares e os pontos de cristalização da economia mundial globalizada; elas são os sustentáculos da pós-modernidade.

8. Praticamente quatro quintos das megalópoles do mundo contemporâneo encontram-se no hemisfério sul, o que equivale a dizer que pertencem aos países subdesenvolvidos ou em franco desenvolvimento.

Essa lista de características permitiria novos acréscimos. Entretanto, o conceito de “megalópole” se torna mais nítido se o confrontarmos ao conceito de “metrópole”.

Quando se fala em “metrópole” também se tem em mente uma cidade grande. Mas ao contrário da megalópole, a metrópole não chega a 10 milhões de habitantes e não acusa um crescimento populacional sensível nas últimas três ou quatro décadas. Ao contrário, na maior parte das metrópoles do mundo registra-se, hoje, um decréscimo da população, devido a taxas de natalidade baixíssimas e um controle rigoroso das imigrações.

O termo “metrópole” denota uma cidade histórica, de tradição centenária. Especialmente as metrópoles européias transformaramse no final do século XIX e começo do século XX em capitais de nações desenvolvidas, centros da industrialização moderna e arquivos da cultura mundial, que passaram a determinar os estilos de vida dentro e fora da Europa. Um exame do mapa mundial revela que a maioria das metrópoles encontra-se no hemisfério norte. Elas foram e continuam sendo os pontos de irradiação da modernidade.

As enormes riquezas materiais e simbólicas compiladas nas metrópoles, transformaram-nas em lugares de atração turística sem par. Anualmente, milhões de turistas batem às suas portas, invadem seus museus, suas galerias de arte, hotéis e restaurantes para admirar as curiosidades e consumir os bens materiais e simbólicos aqui armazenados. Depois da “temporada”, voltam aos seus países de origem. As metrópoles européias demonstraram uma extraordinária habilidade em explorar o turismo. Graças à preservação e proteção de suas riquezas culturais, ao controle dos refugiados emigrantes, às suas instituições de assistência social, aos seus sistemas viários e de transportes aéreos, onde se registram os movimentos de passageiros e os fluxos de turistas e refugiados, as metrópoles de hoje ainda conseguem preservar a paz intramuros e oferecer uma alta qualidade de vida a seus cidadãos. Tensões sociais; conflitos étnicos e religiosos em outras partes do mundo são ignorados ou harmonizados por instituições competentes extra-muros. Por quanto tempo ainda?

Ronald Daus fala da “terceiromundialização” das metrópoles européias (Daus: 1997: 222). De minha parte, dou preferência ao termo “megalopolização” . Na essência, os dois termos se referem à mesma coisa. Ambos procuram dar conta dos radicais processos de transformação da vida humana no globo terrestre, que se refletem nos modernos espaços urbanos. As tendências da megalopolização são, pois, mais nítidas nas cidades gigantescas do hemisfério sul, ou seja, nas megalópoles, mas podem manifestar-se, de forma atenuada, nas metrópoles do hemisfério norte. Nesse processo de megalopolização, as fronteiras nacionais estão sendo gradativamente dissolvidas, os Estados Nacionais tornam-se cada vez mais permeáveis, diluindo-se suas formas de legitimação e seu alcance jurídico. Haverá uma condensação cada vez maior de pessoas nos grandes conglomerados urbanos. Comunidades campestres; cidades de pequeno e ‘ médio porte possivelmente desaparecerão do mapa no início do terceiro milênio, diluindo-se também as instituições sociais nas quais se apoiavam (família, cooperativas, corporações, municipalidades). Sua sobrevivência ficará condicionada à proximidade ou não de uma grande megalópole.

A forma de institucionalização da sociedade moderna passa pela urbanização crescente, em outras palavras, pela “metropolização” e “megalopolização” .

No Brasil, essa tendência já se concretizou. Enquanto hoje em dia 50% da população mundial vive no campo, no Brasil dos anos noventa, a população rural já se reduziu a 25% da população total. Isso significa que 120 milhões dos 160 milhões de brasileiros vivem em cidades, a maior parte em conglomerados urbanos no sul e sudeste do país, ou seja, no Eixo Rio-São Paulo, i. é., em duas megalópoles, na definição acima.

Em quase todas as partes do mundo artistas, cineastas, escritores e poetas detectaram esse fenômeno da megalopolização. Com sua maior sensibilidade às novas formas de sociabilidade que as megalópoles fazem emergir, eles traduziram esses fenômenos em seus filmes, romances, peças de teatro ou poemas. Filósofos, sociólogos, políticos, economistas e demógrafos assumiram até agora o papel do mocho de Minerva: somente foram alertados para os fatos novos depois do clamor dos profissionais da criatividade e buscaram, a posteriori, explicações ou conceptualizações para o que vem acontecendo.

2. A megalópole na literatura brasileira contemporânea

Para compreender melhor esse papel “sismográfico” da arte, selecionei, a título de exemplo, três romances brasileiros, escritos nas últimas três décadas, e que se passam em três megalópoles brasileiras: o Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília:

-A hora da estrela (1977), de Clarice Lispector;

– Não verás país nenhum (1981), de Ignácio de Loyola Brandão;

– Samba-enredo (1994), de João Almino.

Os critérios para essa seleção foram fornecidos pela própria definição de “megalopolização” e pela distinção feita entre metrópole e megalópole.

O Rio de Janeiro dos anos setenta, ex-capital federal, fornece a moldura urbana para o romance A hora da estrela, de Clarice Lispector. Trata-se do Rio de Janeiro que ainda apresenta certas feições da metrópole que ela já não é mais, em conseqüência da “megalopolização” a que esteve submetida nas últimas décadas.

A São Paulo da década de oitenta, a maior megalópole da América do Sul, constitui a arena que Ignácio de Loyola Brandão escolheu para desenvolver suas visões apocalípticas da sociedade brasileira e da capital paulista no ano 2020.

E, finalmente, a Brasília da década de 90, que ainda não é “megalópole”, no sentido estrito da palavra, mas que se encontra em franco processo de “megalopolização”, fornece o palco para a ação do romance de João Almino.

Outros critérios foram fornecidos por teóricos e críticos literários mas também tradutores (do português para o alemão) da literatura ficcional brasileira.

Em suas narrativas, esses romances traduzem percepções bem peculiares da cidade: os seus ruídos e cheiros, suas cores, as luzes e sombras, os espaços estruturados e delimitados. Implícita ou explicitamente, seus autores apontam para as características “típicas” de uma megalópole. Essa forma do romance urbano representa um salto qualitativo com relação aos romances urbanos clássicos que descreviam a metrópole européia. (Vide os estudos detalhados feitos por Volker Klotz , 1969).

Metaforicamente, poder-se-ia dizer que as características da megalópole, inicialmente destacadas, assumem a função de filtro ou rede, capazes de detectar, nos próprios romances, os processos de institucionalização das sociedades globalizadas.

2.1. O Rio no romance “A hora da estrela”

Como já foi dito, a ação deste último romance de Clarice Lispector (1925-1977) desenrola-se no Rio. Considerando-se que não pretendo fazer crítica literária, permito-me colocar em parênteses a sofisticada construção do romance, em especial a intrincada relação entre narrador e leitor, idealizada pela escritora, voltando-me diretamente para a trama do romance. Esta é surpreendentemente simples, quase banal.

Macabéa, a personagem central do romance, muda-se, depois da morte de sua tia, de Alagoas, onde nascera, para o Rio. Ela mora na rua do Acre, na zona portuária já decadente, dividindo o quarto com três outras moças em uma pequena pensão. Macabéa trabalha como datilógrafa em um escritório, onde – por sua mediocridade e insignificância – émaltratada pelo chefe. Ela é virgem, pequena e franzina, quase feia, em todo caso, inexpressiva. Por isso mesmo, até surpreende que arranje um namorado, Olímpio, que mais tarde a deixará por Glória, uma de suas companheiras de quarto. Macabéa, que aceita esse fato novo com certa naturalidade, também aceita o conselho de Glória: procurar uma cartomante. Ao “ler” o futuro implacável da moça nas cartas, até mesmo a cartomante se compadece. Não ousa revelar a verdade a Macabéa e resolve mentir. A cartomante inventa uma pequena história e fala de uma mudança radical em sua vida: o encontro com um jovem rico, loiro, de olhos azuis, e de nome Hans. Alegre com essa boa nova, Macabéa sai da casa da cartomante. Ao pôr o pé na calçada é atropelada por uma Mercedes, cuja estrela na capota da frente do carro ainda percebe ao tombar na rua. O motorista loiro foge em seu carro. Com um sorriso nos lábios, Macabéa morre no local, convencida de que essa era a sua hora da estrela.

Macabéa representa milhares de “nordestinas” que, ansiosas por deixarem a vida miserável que vivem no nordeste, tentam sua sorte na grande cidade, onde na maioria das vezes acabam sendo trituradas e engolidas. Macabéa é uma dessas mártires inumeráveis, com sua morte anunciada já no próprio nome.

2.2. São Paulo em “Não verás país nenhum”

O autor deste romance, nascido no interior de São Paulo, em 1936, escolhe a capital paulista no ano 2020 para desenvolver sua trama da sociedade brasileira vitimada pelo regime militar e pelo desequilíbrio ecológico. Como já foi destacado por outros autores (Engler, 1992; Spielmann, 1994), Ignácio de Loyola Brandão fez da megalópole São Paulo seu personagem principal. O futuro próximo dessa cidade é apresentado numa visão de horror e apocalipse em Não verás país nenhum parafraseando o conhecido poema de Olavo Bilac.

Souza; ao mesmo tempo narrador e personagem central do romance, vivencia as diferentes etapas da destruição da cidade, que coincidem com as etapas da destruição da sociedade brasileira. Como antigo professor de história, prematuramente aposentado, Souza procura relembrar-se de passagens relevantes de sua vida, especialmente os momentos que lhe teriam possibilitado interferir nos processos societários em curso para tentar evitar o pior.

O governo militar havia entregue a firmas nacionais e multinacionais concessões para a exploração de vastas regiões do território nacional, especialmente na Amazônia. Com a derrubada da última árvore da antiga selva amazônica, a seca no nordeste se agravara, deslanchando um movimento migratório sem paralelo, em direção ao sul. Em pânico, a população nordestina buscara salvar-se em São Paulo, mas fora apanhada em sua fuga por enormes ondas e buracos de calor que os haviam torrado e reduzido a pó e cinzas. A maior parte dos fugitivos morrera, pois, no caminho. Uma pequena parte procurou voltar e buscar abrigo nos antigos sítios. Somente um grupo menor alcançara a megalópole São Paulo, onde passara a viver “no isolamento”, na periferia pauperizada da cidade. Aqui há falta de tudo. A comida insípida tem consistência de borracha. Somente variam as cores e os cheiros, sem que os alimentos, uma vez ingeridos, saciem os famintos. Em toda

cidade há falta crônica de água. Até mesmo a urina é reciclada. Para a racionalização e o controle do uso da água, são distribuídos “tíquetes” que muitos usam como moeda de barganha. Do mesmo modo, existem tíquetes de alimentação e de “circulação” que autorizam (ou não) os habitantes a se locomoverem de um bairro a outro. Há controles em toda parte para capturar os infratores. Os controladores são subornáveis, mas são, ao mesmo tempo, espiões e delatores que reportam irregularidades aos superiores e dirigentes políticos.

A poluição do ar submerge São Paulo sob uma enorme nuvem marrom-cinzenta. O sol somente é perceptível pelo imenso calor que irradia e que fica armazenado entre os prédios cinzentos e as ruas estreitas; barulhentas e malcheirosas. O centro da cidade parece morto, triste e deserto. Envolve-o um cinturão de áreas habitadas, onde vivem certos privilegiados que procuram defender-se como podem. Mas ninguém sabe exatamente como vivem e o que acontece atrás das muralhas de proteção erguidas contra os habitantes menos privilegiados e os fugitivos do nordeste. Sabe-se que este cinturão está habitado pelos conformistas que vivem com medo do estado policial, mas o apóiam para defender-se de outros medos. No “Isolamento”, o círculo periférico, as multidões se atropelam, se agridem e se matam. Cadáveres e moribundos amontoam-se por toda parte, são esmagados e pisoteados por aqueles que aind a lutam pela sobrevivência. E preciso fugir do sol, de seus raios, de seu calor, antes que eles abafem, sufoquem tudo e todos. O único lugar de abrigo existente são as enormes marquises que o governo mandou instalar. Um passo em falso, um empurrão para a área exposta aos raios e a morte é certa. Cai-se no abismo, no nada, no calor tórrido do inferno.

O romance termina com Souza, o personagem central, à beira do abismo. Ele ainda está vivo mas sem esperanças. Lembra-se, remo-tamente, de que no desespero extremo ele, como outros pais, havia levado os seus filhos para um navio em Santos, enviando-os para além-mar. Somente o retorno dessa geração mais nova poderia trazer alguma forma de salvação.

2.3 Brasília no Romance “Samba-enredo”

O narrador sem corpo mas não imaterial deste romance é uma máquina, mais especificamente um computador portátil, um laptop, jogado no lixo. No seu disco rígido, encontram-se anotações de Ana, escritora e amante do presidente.

GG ou “Gigi”, como se autodenomina o computador sem dono, começa a decodificar os textos cifrados que guarda em sua memória. Nesse processo, traz à tona os textos com os quais havia sido alimentado por Ana, antes de ser jogado fora. Eram anotações feitas durante as festividades de carnaval em Brasília, nos anos noventa. Originalmente, Ana pensara transformar essas anotações em um romance, depois desistira dessa idéia. Em seu esforço de rememorização, o disco rígido consegue restabelecer os ruídos e as batucadas do pano de fundo, que vão se avolumando. O programa de computador submete-os, então, a uma filtragem para discriminar a gritaria da música, os diálogos do barulho das cigarras, para finalmente selecionar o que julga relevante. Reconstitui, em seguida, os jogos de luz com o céu estrelado, os cartazes iluminados de Conjunto Nacional, os holofotes perto do teatro Martins Pena e da Rodoviária. Finalmente, reconfigura a ação, tudo aquilo que aconteceu em uma noite morna de carnaval no Plano Piloto da cidade, antes de Ana desfazer-se da máquina.

João Almino (1950- ), o autor do romance, atribui ao computador a competência para retrieve, de fragmento em fragmento, a trama do que aconteceu ao personagem central. Paulo Antônio Fernandes, o primeiro presidente negro do Brasil, acredita ser um novo messias, capaz de ajudar o seu povo. Ele assiste à folia carnavalesca sentado em sua tribuna, erguida ao longo do Eixão e aproveita a ocasião para dirigir algumas palavras à multidão. Depois do discurso, ao entrar em seu carro, é cercado por um grupo de pessoas contrariadas. Com olhares raivosos, gritando palavrões, jogam pedras e dão vazão ao seu descontentamento com o governo. O grupo rebelde é disperso pelos simpatizantes, pelos seguranças, policiais e militares que estão por perto. O carro se afasta, mas permanece o mal-estar. Antes que o veículo atinja a garagem do Palácio do Planalto, já correm boatos de que o presidente teria sido seqüestrado. Ouvem-se afirmações de que estaria morto, que um novo golpe militar teria tido êxito. Como o vice-presidente não se encontrava no país, o exército já teria cercado a Praça dos Três Poderes.

Enquanto a boataria progride, uma tempestade desaba sobre o Plano Piloto, encharcando os foliões e os espectadores. A festa vira pesadelo. A multidão tensa e silenciosa aguarda um milagre. Velas são acesas e, por causa da chuva, também lanternas e lampeões. Ouvem-se murmúrios e preces.

Em verdade, o presidente não tinha tomado rumo ao Palácio, mas estava a caminho da fazenda de sua irmã, Eva. Na estrada deserta seu carro é assaltado por homens mascarados que o seqüestram e levam para o meio do cerrado. Aí o obrigam a escrever uma carta, na qual informa o valor do resgate exigido. Junto com a carta dirigida ao povo brasileiro, Paulo Antônio envia um bilhete para sua mulher e sua filha. Está convencido de que o seqüestro tem razões políticas e aposta em sua libertação para, finalmente, dar início às obras de reformas das quais a sociedade brasileira tanto necessita. Caso seja sacrificado, pede em lugar de choro e vela que o homenageiem com um bom “samba-enredo”.

A chuva forte continua caindo sobre o telhado do barraco em que o presidente está preso. Seus raptores parecem tê-lo abandonado ali. O silêncio é total. O presidente recluso decide fugir pelo telhado. A alguns passos da cabana um tiro o colhe pela nuca. Sua morte éinstantânea. Um dos seqüestradores, acordado pela barulheira, briga com o atirador. Adeus dinheiro para o resgate! “Esse negócio com presidente não vale a pena”, argumenta o assassino, “o valor do resgate de um presidente é muito baixo.”

O cadáver é enterrado, ali mesmo, no anonimato do cerrado. Os seqüestradores haviam assaltado o carro errado, o plano era capturar um empresário rico.

3. Sobre o mito nos três romances.

“O que é um mito?” pergunta-se Jean-Pierre Vernant (1996) em sua coletânea mais recente: Entre mythe et politique. E sua resposta é inequívoca: “O mito não existe. O mito é um conceito que os antropólogos tomaram de empréstimo à tradição ocidental, como se isso fosse tão fácil! Seu significado não éuniversal, seu sentido não é unívoco, não há realidade que lhe corresponda. Stricto sensu essa palavra não diz nada.” (Vernant 1966: 353).

Vernant admite, entretanto, que ao conceito de “mito” sempre se contrapôs o conceito de “logos”, o que permite ver o mito como sendo o lado avesso, o outro, do discurso verdadeiro. “Assim, o mito conquista seu direito de existência, no mundo grego, não pelo que ele propriamente é mas pelo que ele – por uma razão ou outra – exclui ou denega.” (Vernant 1996: 355). Assim sendo, o mito estabelece uma certa distância com relação ao que ele próprio tematiza. Nesta acepção, o conceito pode ‘transcender os limites da cultura grega clássica. Neste sentido lato sensu, a referência ao “mito” simplesmente exprime o fato de que, no caso do tratamento literário de um tema, não está sendo representada a realidade como tal; o texto literário ou o discurso permanecem no âmbito da “ficção”.

É nestes termos que procuro usar o conceito de mito na interpretação do meu tema.

Em sua Filosofia das formas simbólicas (1987), como é sabido, Ernst Cassirer refletiu sobre o “pensamento mítico”. Segundo o filósofo alemão, o mito estaria voltado essencialmente para a configuração, a estruturação do tempo (Gestaltung), mais especificamente, para as formas temporais (Zeitgestalten).

“O verdadeiro mito não nasce simplesmente no momento em que a intuição do universo com suas partes e forças se configura em certas imagens e figuras de deuses e demônios, mas no momento em que se atribui a tais figuras uma emergência, um vir-a-ser, uma vida no tempo.” (Cassirer 1987: 129).

Esse conceito de tempo implícito no mito não deve ser confundido com o conceito de tempo usado na história, como um simples desenrolar de eventos e fatos que se comportam de maneira causal um com relação ao outro, mas de uma passagem no tempo – de um tempo original (Urzeit) para o tempo efetivo (eigendiche Zeit), ou deste para um tempo sagrado (heilige Zeit). Essa passagem corresponderia a um “rito de passagem” para uma nova qualidade de vida, em que é dado o salto qualitativo no tempo, do tempo profano para o tempo sagrado (ou não).

Ao indagar sobre o mito da megalópole na literatura brasileira contemporânea, interessa-me, pois, descobrir e ressaltar essas “figuras temporais” (Zeitgestalten) no sentido de Cassirer. Até que ponto os três romances urbanos aqui escolhidos tematizam este tipo de figuras? E como?

Ao aprofundar-me no tema, tornou-se necessário considerar uma outra diferenciação: de um lado, a questão do “mi to na megalópole” e, de outro, a questão do “mito da megalópole”. No primeiro caso, trata-se de estudar os personagens que se transformam em mitos na grande cidade. Nos romances aqui selecionados, as figuras míticas são encarnadas por Macabéa, Souza e o presidente Paulo Antônio. No segundo caso, o do mito da megalópole, a própria megalópole passa a ser um personagem principal, ou seja, sua “ação” e seu “desempenho” passam a assumir um caráter mítico. No sentido de Barthes, a própria cidade passa a ser considerada “texto”, produtora de textos. Nesta ótica, as cidades do Rio, de São Paulo e de Brasília estariam sendo tratadas como personagens míticos.

O “mito do passado” ganha destaque na Hora da estrela, de Lispector, pela maneira com que Macabéa se movimenta na cidade, presa às regras do jogo e padrões sociais de sua região de origem. Ela não consegue beneficiar-se das “ofertas” da megalópole por continuar vivendo no passado, no estilo de vida nordestino. Ela não consegue transformar a relação com Olímpio em um verdadeiro namoro por continuar presa aos preceitos morais tradicionais do nordeste. Jamais realizará seu sonho oculto de tornar-se atriz, por sua aparência insignificante e “tipicamente nordestina”. Macabéa também não pode comprar as mercadorias expostas nas vitrines de luxo de Copacabana por não possuir dinheiro. Pela mesma razão ela não pode ir a restaurantes. Alimenta-se de cachorro-quente, tem saudades da comida nordestina e continua subnutrida no Rio como já o era em Alagoas. Os navios que partem do porto e que gosta de observar calada, bem como os aviões que a sobrevoam são tão inatingíveis para a moça como as estrelas. Com sua mudança para o Rio, nada mudou para ela: Macabéa continua tão pobre, ignorante, explorada, infeliz e ameaçada de morte quanto esteve em sua terra natal. Ela não tem competência para viver na megalópole e paga essa incompetência com a morte. Será a vítima do trânsito agressivo da antiga capital. Assim termina o mito na megalópole. Ela não consegue conhecer seu tempo, acompanha-lo, adiantar-se a ele, no sentido de Cassirer. E sucumbe às crendices e mentiras do passado para as quais é seduzida pela cartomante.

Mas como se apresenta, neste romance de Lispector, o mito da cidade do Rio de Janeiro? O Rio permanece para Macabéa um enigma. Um monstro que lhe tirará a vida, a megalópole que tudo devora. Mas o Rio, sujeito, personagem, está voltado para o passado como Macabéa. A violência do cangaceiro é substituída pela violência do motorista no trânsito. A cidade se comporta – depois da transferência da capital para Brasília – como uma mulher abandonada pelo marido que não consegue refazer a vida. A própria Rio de Janeiro não tem controle sobre a situação e sucumbe nos tempos da megalópole às suas próprias contradições. Por isso mesmo, o Rio é incapaz de amparar aqueles seres humanos que o procuram para, mudar de vida, vencer na luta. Macabéa não decifrou o enigma da cidade e a cidade se vinga, engolindo-a.

O mito do presente está condensado no romance de Almino, Samba-enredo. 0 presidente fictício, Paulo Antônio, que gostaria de ser um líder messiânico, nada mais é que um simples presidente, cidadão comum, como tantos outros antes (e possivelmente depois) dele. Seu valor é tão ínfimo que os seqüestradores, ao perceberem que ele é o presidente, nem se dão o trabalho de pedir o resgate, enterrando-o numa cova anônima do cerrado. Como em outros casos, antes dele, ele não chegará ao final de seu mandato, deixará o país na crise e com a ameaça de nova ditadura militar. Sua vocação messiânica não basta para dar o salto do profano para o sagrado, como sua liderança é fraca para projetar o país do presente para o futuro. Atémesmo Ana, sua amante, prefere abandonar o computador, a transformar o presidente morto em ídolo e mito para conquistar novos horizontes e vencer velhas dificuldades. As circunstâncias de sua morte são demasiadamente banais.

Nem mesmo Brasília, a cidade planejada e simbolizada em forma do avião, consegue reverter esse quadro da mediocridade do personagem central. A nova Capital procura sua identidade no presente, no carnaval, na farsa e no deboche da política do dia-a-dia. A cidade construída por urbanistas e arquitetos não tem, por si só, força para construir uma nova sociedade. O povo permanece supersticioso, ingênuo, crédulo e vulnerável a movimentos messiânicos, a sentimentos míticos. Está exposto à mídia niveladora, presa ao cotidiano, ao presente. Rádio, televisão, vídeo, cinema, telões, cartazes, telefones portáteis são tecnologias novas que veiculam ideologias velhas. Brasília, como a antiga capital, fornece o substrato urbano para a corrupção, os escândalos sexuais, os golpes que já pertenciam ao quotidiano da vida política e social carioca. O novo, prometido por Brasília, é roupagem diferente, fantasia carnavalesca para disfarçar o déjà vu, o velho, o sempre-o-mesmo.

O laptop conservava em seu disco rígido uma estória que, por sua repetição cansativa, se desfaz em farsa, não tem interesse. Ana percebe isso e abandona a máquina em que parou o tempo, jogando-a no lixo.

O mito do futuro é tematizado em Não verás país nenhum. Trata-se de um futuro sem perspectivas para Souza, o narrador e personagem mítico do romance. Seu triste fim está selado desde o início da narrativa. O mesmo vale para a megalópole que serve de base material e urbana para a trama. Souza, historiador, ainda tem lembranças de tempos melhores, mas vive na consciência do seu fim próximo, desesperado. Seu destino é indissociável do destino de São Paulo. Aqui o mito na megalópole se sobrepõe ao mito da megalápole. Os dois mitos se confundem, se mesclam em um. 0 destino de Souza é o destino de São Paulo e o que vai acontecer a São Paulo arrastará consigo todos os milhões de Souzas que povoam a cidade. São Paulo, em franca ascensão econômica, no início do século XIX e XX, é apresentada – no final do século XX – como uma cidade “terminal” que somente promete morte e esterilidade para todos os seus habitantes.

A economia de mercado globalizada, a ditadura militar, a falta de consciência ecológica, a indiferença e a ignorância da população não deixam perspectivas para o futuro. Uma geração nova, expatriada, é a única esperam que resta.

Nos três romances, os autores desconstroem a visão otimista da cidade como instância civilizadora, socializadora, de “civitas” no sentido que lhe atribuiu Sennett (1990). Longe de serem pontos de irradiação do progresso, espaços organizados para uma vida melhor, centrais racionais da organização da cidadania, da democracia e do “bem viver” aristotélico, as cidades tematizadas por Lispector, Loyola Brandão e João Almino não prometem vida melhor, não oferecem chances aos indivíduos de transcenderem os seus limites e seu tempo para construírem um novo mundo em novo espaço urbano. Essa visão, que caracterizava ainda certos romances de Hugo a Balzac, de Dickens e Dos Passos parece justificar-se somente para as “metrópoles” da virada do século XIX para o XX (cf. Caillois, 1966; Klotz, 1969). Aqui o espaço urbano ainda oferecia chances de realização individual aos personagens atrevidos e pouco escrupulosos. Na era da megalópole, neste final de século e milênio, os indivíduos já não têm vez. Como vimos, tanto Macabéa quanto Souza e Paulo Antônio estão condenados à morte, cada um à sua maneira e dentro das malhas que cada megalópole lhes teceu: o trânsito infernal do Rio, o desequilíbrio político e ecológico de São Paulo, o crime econômico e político organizado de Brasília. ..

Acreditando-se nos romancistas aqui analisados, as megalópoles não conseguem gerar personagens míticas novas, Zeitfiguren, no sentido de Cassirer, que rompam as algemas do profano, do agora e anunciem tempos melhores, “sagrados”, de uma vida digna no futuro das megalópoles. O que ainda parecia ser possível no contexto das metrópoles, se tomarmos a Paris de Balzac como paradigma, não acontece mais no contexto das megalópoles.

Em outras palavras, o mito na megalópole, representado pelos personagens de Macabéa, Souza e Paulo Antônio é devorado pelo mito da megalópole, o monstro ciclópico que destrói seus habitantes e acabará se devorando a si próprio.


4. Bibliografia

Almino, João (1994). Samba-enredo. São Paulo: Marco Zero.

Balzac, Honoré de (1966). Le père Goriot (1834). Em. Ibid. La Comédie Humaine (1966). Paris: Le Club Français du Livre, vol. 4 (pp. 19-323). Bonvicino, Regis (1994). “A carnavalização na obra de João Almino: escritor retoma a reflexão e ironia de Machado para tratar em seu romance do que há de banal e alienante na cultura nacional”, em: Jornal do Brasil/Idéias, 27.08.94, p. 3..

Brandão, Ignácio de Loyola (1981). Não verás país nenhum. Rio de Janeiro: Coderci.

Briesemeister, Dietrich/Feldmann, Helmut/Santiago, Silviano (eds.). Brasilianische Literatur der Zeit der Militãrherrschaft (1964-1984). Frankfurt/Main: Vervuert (Biblioteca Ibero-americana, 47).

Caillois, Roger (1966). “Balzac et le mythe de Paris”, Em: Balzac, H. de. La Comédie Humaine (1966), vol. 14: (pp. I – xvii).

Cassirer, Ernst (1987). Philosophie der symbolischen Formen, vol. 2: Das mythische Denken. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft.

Datis, Ronald (1997). Grossstädte Aussereuropas: Lebenslust und Menschenleid. Berlin: Ursula Opitz (Babylon Metropolis Studies, 3). Engler, Erhard (1992). “Von der Prähistorie in die Zukunft: die Herausforderung gilt”, em: Briesemeister/Feldmann/Santiago (1992: 129-149).

Freitag, Barbara (1997). “Civilização urbana e subculturas da cidade”, em: Ludemann, Marina (ed.): Brasmitte: urbane Interventionen. São Paulo, Pancrom, pp.110-114.

Klotz, Volker. (1969). Die erzählte Stadt. Ein Sujet als Herausforderung des Romans von Lesage bis Döblin. München: Carl Hanser Verlag.

Lispector, Clarice (1977). A hora da estrela. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 23′ edição (usada) 1995.

Machado de Assis (1957). “A cartomante”. Em: Ibid. Obras Completas de Machado de Assis. Editores W. M. Jackson Inc.. Rio, S.Paulo, P Alegre, vol. 14 (pp. 9-25).

Orsini, Elisabeth (1994). “Caso de amor com um computador”. Em: O Globo/Livros, 07.08.94, p. 6.

Osaskabe, Haquira (1994). “O romance carnavalesco de um narrador-computador”, em: Folha de São Paulo/Livros, 09.10.94, p. 6.

Spielmann, Ellen (1994). Brasilianische Fiktionen: Gegenwart als Pastiche. Frankfurt/M: Vervuert.

Vernant, Jean-Pierre (1996). Entre mythe et politique. Paris: Seuil.

Notas

1 Vide (na bibliografia trabalhos publicados por Briesemeister/Feldmann/ Santiago (1992); Spielmann (1994); Osakabe (1994); Bonvicino (1994); Orsini (1994) a respeito.

2 A filmagem deste romance, feita por Susana do Amaral, em 1986, transfere o cenário da vida e morte de Macabéa para São Paulo. A cineasta consegue, assim, radicalizar as diferenças da vida de Macabéa (no nordeste) e sua vida urbana,” nova” , na megalópole.

3 O leitor de Várias histórias, de Machado de Assis, fará a associação com Camilo, o personagem central de “A Cartomante” (M. de Assis, 1957: Obras Completas, vol. 14, pp. 9-25). Camilo ouvira da cartomante que nada lhe aconteceria, pois seu amigo Vilela ignorava a relação amorosa clandestina que ele, Camilo, mantinha com Rita, a mulher do amigo. “Pensando nas horas felizes de outrora e nas que haviam de vir”, vai à casa do Vilela que o mandara chamar. Ao entrar no apartamento, Vilela o mata com dois tiros.

4 Clarice Lispector fez um empréstimo aos escritos apócrifos dos Macabeus (em quatro volumes: I-IV) do judaísmo. Nesses escritos, encontram-se relatos das lutas dos judeus contra os sírios na época do Imperador romano, Calígula. Nesses relatos é dado destaque ao martírio dos judeus que representavam o protótipo do homem justo e sensato que luta contra impulsos irracionais. Esses escritos não foram reconhecidos nem pelos judeus, nem pelos protestantes. Contudo, os católicos, entre eles Tomás de Aquino, preservaram e retransmitiram-nos esses escritos por suas histórias de sofrimento e martírio.

5 Em Balzac et le mythe de Paris (1957), Roger Caillois mostra que Balzac, apoiado em Baudelaire, procurava refletir em sua Comédie Humaine exatamente essa noção do mito moderno. Seus heróis simbolizam superação de dificuldades, saltos no tempo, passagens de uma episteme a outra (p. ex., do romantismo para o realismo). “Certes le roman n’est pas le mythe. Cependant ses héros, comme les héros mythiques, apportent à l’individu les répondants dont il a besoin pour oser agir, quelquefois même pour seulement imaginer sa conduite future.” (p. xvii). Em Balzac, Honoré de. (1966, vol.4, pp. I-xvi)

6 Essa distinção* pode facilmente ser ilustrada no final do romance de Balzac Le père Goriot (1834; 1966), no diálogo de Rastignac, o jovem herói vindo do campo, disposto a enfrentar os desafios da grande cidade, da metrópole de Paris. Rastignac, que testemunhara o sacrifício do pai pelas filhas e a indiferença dessas na hora da morte do velho, conscientiza-se, durante o enterro, que Paris é o personagem que destrói todas as sensibilidades; e écontra ela que Rastignac lançará seu grito de revolta: “À nous deux maintenant!” (Balzac, vo1.4: p. 322). Através da Comédie Humaine este “herói” não se deixará intimidar e ensinará a outros jovens, como “vencer” na vida, em Paris. Enquanto Rastignac incorpora o mito na cidade, Paris representa o mito da cidade. Aqui, os dois personagens ainda estão em pé de igualdade; um desafia o outro, um é a condição de existência e sobrevivência do outro. Na megalópole essa equação será zerada.

7. Le mythe de Paris annonce d’étranges pouvoirs de Ia littérature. […111 entend traduire une réalité ephémère et changeante, qu’il cherche à modifier en donnant conscience au lecteur des problèmes de l’époque, en l’obligeant à les examiner, en lui suggérant l’attitude qu’il doit prendre, en lui proposant l’exemple d’une décision prestigíeuse. Balzac est à l’origine d’un pareil mode d’emploi du roman.” (Caillois, 1957: xvii).

Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 132: 143-158, jan.-mar., 1998

por Barbara Freitag

1. Metrópole e megalópole

Em um pequeno ensaio Civilização urbana e subculturas da cidade (Freitag 1997: 111), fiz uma distinção conceitual entre “metrópole” e “megalópole”. O termo “megalópole” não se refere somente à dimensão quantitativa da vida urbana, mas também a uma dimensão qualitativa, ou seja, a uma forma específica da vida societária em cidades gigantescas, típica para este final do século XX. As características essenciais da “megalópole” contemporânea podem ser resumidas de forma típico-ideal como segue:

1. trata-se de cidades gigantes, com uma população que oscila em torno de 10 milhões ou mais de habitantes;

2. esse crescimento urbano vertiginoso aconteceu nas últimas três décadas, portanto nos anos 70, 80 e 90 (do século XX), período em que o número de habitantes triplicou ou quadruplicou-se;

3. essa verdadeira explosão demográfica não se deveu tanto a um crescimento vegetativo da população urbana, mas sim à confluência maciça de populações das mais variadas origens;

4. a imigração mais ou menos descontrolada dos migrantes das mais variadas regiões do território nacional e mesmo do exterior, do campo, de aldeias e de pequenas cidades gera uma civilização multicultural;

5. essa civilização urbana compõe-se de “.subculturas” em si homogêneas, mas entre si divergentes; tomando-se como critérios de distinção a nacionalidade, a classe social, a etnia, convicções religiosas, grupos etários, o gênero e os hábitos sexuais dos habitantes da megalópole;

6. por isso mesmo, a megalópole caracteriza-se por contrastes radicais que se refletem no tecido urbano, nos materiais dos prédios, nos estilos arquitetônicos: ao lado de arranha-céus de aço e vidro fumé, encontram-se favelas, cortiços, “barriadas” que ocupam as áreas vazias entre os prédios e bairros, e as zonas periféricas. Os barracos de papelão e lata, madeira e bambu vão se multiplicando à beira dos rios e das auto-estradas, embaixo de pontes de concreto e aço e em estacas sobre lagunas, como em tempos pré-históricos. Eles convivem com enormes centros comerciais (shopping centers), parques de diversão, complexos empresariais, conglomerados bancários de alto luxo dos tempos pós-modernos;

7. as megalópoles de hoje são os pilares e os pontos de cristalização da economia mundial globalizada; elas são os sustentáculos da pós-modernidade.

8. Praticamente quatro quintos das megalópoles do mundo contemporâneo encontram-se no hemisfério sul, o que equivale a dizer que pertencem aos países subdesenvolvidos ou em franco desenvolvimento.

Essa lista de características permitiria novos acréscimos. Entretanto, o conceito de “megalópole” se torna mais nítido se o confrontarmos ao conceito de “metrópole”.

Quando se fala em “metrópole” também se tem em mente uma cidade grande. Mas ao contrário da megalópole, a metrópole não chega a 10 milhões de habitantes e não acusa um crescimento populacional sensível nas últimas três ou quatro décadas. Ao contrário, na maior parte das metrópoles do mundo registra-se, hoje, um decréscimo da população, devido a taxas de natalidade baixíssimas e um controle rigoroso das imigrações.

O termo “metrópole” denota uma cidade histórica, de tradição centenária. Especialmente as metrópoles européias transformaramse no final do século XIX e começo do século XX em capitais de nações desenvolvidas, centros da industrialização moderna e arquivos da cultura mundial, que passaram a determinar os estilos de vida dentro e fora da Europa. Um exame do mapa mundial revela que a maioria das metrópoles encontra-se no hemisfério norte. Elas foram e continuam sendo os pontos de irradiação da modernidade.

As enormes riquezas materiais e simbólicas compiladas nas metrópoles, transformaram-nas em lugares de atração turística sem par. Anualmente, milhões de turistas batem às suas portas, invadem seus museus, suas galerias de arte, hotéis e restaurantes para admirar as curiosidades e consumir os bens materiais e simbólicos aqui armazenados. Depois da “temporada”, voltam aos seus países de origem. As metrópoles européias demonstraram uma extraordinária habilidade em explorar o turismo. Graças à preservação e proteção de suas riquezas culturais, ao controle dos refugiados emigrantes, às suas instituições de assistência social, aos seus sistemas viários e de transportes aéreos, onde se registram os movimentos de passageiros e os fluxos de turistas e refugiados, as metrópoles de hoje ainda conseguem preservar a paz intramuros e oferecer uma alta qualidade de vida a seus cidadãos. Tensões sociais; conflitos étnicos e religiosos em outras partes do mundo são ignorados ou harmonizados por instituições competentes extra-muros. Por quanto tempo ainda?

Ronald Daus fala da “terceiromundialização” das metrópoles européias (Daus: 1997: 222). De minha parte, dou preferência ao termo “megalopolização” . Na essência, os dois termos se referem à mesma coisa. Ambos procuram dar conta dos radicais processos de transformação da vida humana no globo terrestre, que se refletem nos modernos espaços urbanos. As tendências da megalopolização são, pois, mais nítidas nas cidades gigantescas do hemisfério sul, ou seja, nas megalópoles, mas podem manifestar-se, de forma atenuada, nas metrópoles do hemisfério norte. Nesse processo de megalopolização, as fronteiras nacionais estão sendo gradativamente dissolvidas, os Estados Nacionais tornam-se cada vez mais permeáveis, diluindo-se suas formas de legitimação e seu alcance jurídico. Haverá uma condensação cada vez maior de pessoas nos grandes conglomerados urbanos. Comunidades campestres; cidades de pequeno e ‘ médio porte possivelmente desaparecerão do mapa no início do terceiro milênio, diluindo-se também as instituições sociais nas quais se apoiavam (família, cooperativas, corporações, municipalidades). Sua sobrevivência ficará condicionada à proximidade ou não de uma grande megalópole.

A forma de institucionalização da sociedade moderna passa pela urbanização crescente, em outras palavras, pela “metropolização” e “megalopolização” .

No Brasil, essa tendência já se concretizou. Enquanto hoje em dia 50% da população mundial vive no campo, no Brasil dos anos noventa, a população rural já se reduziu a 25% da população total. Isso significa que 120 milhões dos 160 milhões de brasileiros vivem em cidades, a maior parte em conglomerados urbanos no sul e sudeste do país, ou seja, no Eixo Rio-São Paulo, i. é., em duas megalópoles, na definição acima.

Em quase todas as partes do mundo artistas, cineastas, escritores e poetas detectaram esse fenômeno da megalopolização. Com sua maior sensibilidade às novas formas de sociabilidade que as megalópoles fazem emergir, eles traduziram esses fenômenos em seus filmes, romances, peças de teatro ou poemas. Filósofos, sociólogos, políticos, economistas e demógrafos assumiram até agora o papel do mocho de Minerva: somente foram alertados para os fatos novos depois do clamor dos profissionais da criatividade e buscaram, a posteriori, explicações ou conceptualizações para o que vem acontecendo.

2. A megalópole na literatura brasileira contemporânea

Para compreender melhor esse papel “sismográfico” da arte, selecionei, a título de exemplo, três romances brasileiros, escritos nas últimas três décadas, e que se passam em três megalópoles brasileiras: o Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília:

-A hora da estrela (1977), de Clarice Lispector;

– Não verás país nenhum (1981), de Ignácio de Loyola Brandão;

– Samba-enredo (1994), de João Almino.

Os critérios para essa seleção foram fornecidos pela própria definição de “megalopolização” e pela distinção feita entre metrópole e megalópole.

O Rio de Janeiro dos anos setenta, ex-capital federal, fornece a moldura urbana para o romance A hora da estrela, de Clarice Lispector. Trata-se do Rio de Janeiro que ainda apresenta certas feições da metrópole que ela já não é mais, em conseqüência da “megalopolização” a que esteve submetida nas últimas décadas.

A São Paulo da década de oitenta, a maior megalópole da América do Sul, constitui a arena que Ignácio de Loyola Brandão escolheu para desenvolver suas visões apocalípticas da sociedade brasileira e da capital paulista no ano 2020.

E, finalmente, a Brasília da década de 90, que ainda não é “megalópole”, no sentido estrito da palavra, mas que se encontra em franco processo de “megalopolização”, fornece o palco para a ação do romance de João Almino.

Outros critérios foram fornecidos por teóricos e críticos literários mas também tradutores (do português para o alemão) da literatura ficcional brasileira.

Em suas narrativas, esses romances traduzem percepções bem peculiares da cidade: os seus ruídos e cheiros, suas cores, as luzes e sombras, os espaços estruturados e delimitados. Implícita ou explicitamente, seus autores apontam para as características “típicas” de uma megalópole. Essa forma do romance urbano representa um salto qualitativo com relação aos romances urbanos clássicos que descreviam a metrópole européia. (Vide os estudos detalhados feitos por Volker Klotz , 1969).

Metaforicamente, poder-se-ia dizer que as características da megalópole, inicialmente destacadas, assumem a função de filtro ou rede, capazes de detectar, nos próprios romances, os processos de institucionalização das sociedades globalizadas.

2.1. O Rio no romance “A hora da estrela”

Como já foi dito, a ação deste último romance de Clarice Lispector (1925-1977) desenrola-se no Rio. Considerando-se que não pretendo fazer crítica literária, permito-me colocar em parênteses a sofisticada construção do romance, em especial a intrincada relação entre narrador e leitor, idealizada pela escritora, voltando-me diretamente para a trama do romance. Esta é surpreendentemente simples, quase banal.

Macabéa, a personagem central do romance, muda-se, depois da morte de sua tia, de Alagoas, onde nascera, para o Rio. Ela mora na rua do Acre, na zona portuária já decadente, dividindo o quarto com três outras moças em uma pequena pensão. Macabéa trabalha como datilógrafa em um escritório, onde – por sua mediocridade e insignificância – émaltratada pelo chefe. Ela é virgem, pequena e franzina, quase feia, em todo caso, inexpressiva. Por isso mesmo, até surpreende que arranje um namorado, Olímpio, que mais tarde a deixará por Glória, uma de suas companheiras de quarto. Macabéa, que aceita esse fato novo com certa naturalidade, também aceita o conselho de Glória: procurar uma cartomante. Ao “ler” o futuro implacável da moça nas cartas, até mesmo a cartomante se compadece. Não ousa revelar a verdade a Macabéa e resolve mentir. A cartomante inventa uma pequena história e fala de uma mudança radical em sua vida: o encontro com um jovem rico, loiro, de olhos azuis, e de nome Hans. Alegre com essa boa nova, Macabéa sai da casa da cartomante. Ao pôr o pé na calçada é atropelada por uma Mercedes, cuja estrela na capota da frente do carro ainda percebe ao tombar na rua. O motorista loiro foge em seu carro. Com um sorriso nos lábios, Macabéa morre no local, convencida de que essa era a sua hora da estrela.

Macabéa representa milhares de “nordestinas” que, ansiosas por deixarem a vida miserável que vivem no nordeste, tentam sua sorte na grande cidade, onde na maioria das vezes acabam sendo trituradas e engolidas. Macabéa é uma dessas mártires inumeráveis, com sua morte anunciada já no próprio nome.

2.2. São Paulo em “Não verás país nenhum”

O autor deste romance, nascido no interior de São Paulo, em 1936, escolhe a capital paulista no ano 2020 para desenvolver sua trama da sociedade brasileira vitimada pelo regime militar e pelo desequilíbrio ecológico. Como já foi destacado por outros autores (Engler, 1992; Spielmann, 1994), Ignácio de Loyola Brandão fez da megalópole São Paulo seu personagem principal. O futuro próximo dessa cidade é apresentado numa visão de horror e apocalipse em Não verás país nenhum parafraseando o conhecido poema de Olavo Bilac.

Souza; ao mesmo tempo narrador e personagem central do romance, vivencia as diferentes etapas da destruição da cidade, que coincidem com as etapas da destruição da sociedade brasileira. Como antigo professor de história, prematuramente aposentado, Souza procura relembrar-se de passagens relevantes de sua vida, especialmente os momentos que lhe teriam possibilitado interferir nos processos societários em curso para tentar evitar o pior.

O governo militar havia entregue a firmas nacionais e multinacionais concessões para a exploração de vastas regiões do território nacional, especialmente na Amazônia. Com a derrubada da última árvore da antiga selva amazônica, a seca no nordeste se agravara, deslanchando um movimento migratório sem paralelo, em direção ao sul. Em pânico, a população nordestina buscara salvar-se em São Paulo, mas fora apanhada em sua fuga por enormes ondas e buracos de calor que os haviam torrado e reduzido a pó e cinzas. A maior parte dos fugitivos morrera, pois, no caminho. Uma pequena parte procurou voltar e buscar abrigo nos antigos sítios. Somente um grupo menor alcançara a megalópole São Paulo, onde passara a viver “no isolamento”, na periferia pauperizada da cidade. Aqui há falta de tudo. A comida insípida tem consistência de borracha. Somente variam as cores e os cheiros, sem que os alimentos, uma vez ingeridos, saciem os famintos. Em toda

cidade há falta crônica de água. Até mesmo a urina é reciclada. Para a racionalização e o controle do uso da água, são distribuídos “tíquetes” que muitos usam como moeda de barganha. Do mesmo modo, existem tíquetes de alimentação e de “circulação” que autorizam (ou não) os habitantes a se locomoverem de um bairro a outro. Há controles em toda parte para capturar os infratores. Os controladores são subornáveis, mas são, ao mesmo tempo, espiões e delatores que reportam irregularidades aos superiores e dirigentes políticos.

A poluição do ar submerge São Paulo sob uma enorme nuvem marrom-cinzenta. O sol somente é perceptível pelo imenso calor que irradia e que fica armazenado entre os prédios cinzentos e as ruas estreitas; barulhentas e malcheirosas. O centro da cidade parece morto, triste e deserto. Envolve-o um cinturão de áreas habitadas, onde vivem certos privilegiados que procuram defender-se como podem. Mas ninguém sabe exatamente como vivem e o que acontece atrás das muralhas de proteção erguidas contra os habitantes menos privilegiados e os fugitivos do nordeste. Sabe-se que este cinturão está habitado pelos conformistas que vivem com medo do estado policial, mas o apóiam para defender-se de outros medos. No “Isolamento”, o círculo periférico, as multidões se atropelam, se agridem e se matam. Cadáveres e moribundos amontoam-se por toda parte, são esmagados e pisoteados por aqueles que aind a lutam pela sobrevivência. E preciso fugir do sol, de seus raios, de seu calor, antes que eles abafem, sufoquem tudo e todos. O único lugar de abrigo existente são as enormes marquises que o governo mandou instalar. Um passo em falso, um empurrão para a área exposta aos raios e a morte é certa. Cai-se no abismo, no nada, no calor tórrido do inferno.

O romance termina com Souza, o personagem central, à beira do abismo. Ele ainda está vivo mas sem esperanças. Lembra-se, remo-tamente, de que no desespero extremo ele, como outros pais, havia levado os seus filhos para um navio em Santos, enviando-os para além-mar. Somente o retorno dessa geração mais nova poderia trazer alguma forma de salvação.

2.3 Brasília no Romance “Samba-enredo”

O narrador sem corpo mas não imaterial deste romance é uma máquina, mais especificamente um computador portátil, um laptop, jogado no lixo. No seu disco rígido, encontram-se anotações de Ana, escritora e amante do presidente.

GG ou “Gigi”, como se autodenomina o computador sem dono, começa a decodificar os textos cifrados que guarda em sua memória. Nesse processo, traz à tona os textos com os quais havia sido alimentado por Ana, antes de ser jogado fora. Eram anotações feitas durante as festividades de carnaval em Brasília, nos anos noventa. Originalmente, Ana pensara transformar essas anotações em um romance, depois desistira dessa idéia. Em seu esforço de rememorização, o disco rígido consegue restabelecer os ruídos e as batucadas do pano de fundo, que vão se avolumando. O programa de computador submete-os, então, a uma filtragem para discriminar a gritaria da música, os diálogos do barulho das cigarras, para finalmente selecionar o que julga relevante. Reconstitui, em seguida, os jogos de luz com o céu estrelado, os cartazes iluminados de Conjunto Nacional, os holofotes perto do teatro Martins Pena e da Rodoviária. Finalmente, reconfigura a ação, tudo aquilo que aconteceu em uma noite morna de carnaval no Plano Piloto da cidade, antes de Ana desfazer-se da máquina.

João Almino (1950- ), o autor do romance, atribui ao computador a competência para retrieve, de fragmento em fragmento, a trama do que aconteceu ao personagem central. Paulo Antônio Fernandes, o primeiro presidente negro do Brasil, acredita ser um novo messias, capaz de ajudar o seu povo. Ele assiste à folia carnavalesca sentado em sua tribuna, erguida ao longo do Eixão e aproveita a ocasião para dirigir algumas palavras à multidão. Depois do discurso, ao entrar em seu carro, é cercado por um grupo de pessoas contrariadas. Com olhares raivosos, gritando palavrões, jogam pedras e dão vazão ao seu descontentamento com o governo. O grupo rebelde é disperso pelos simpatizantes, pelos seguranças, policiais e militares que estão por perto. O carro se afasta, mas permanece o mal-estar. Antes que o veículo atinja a garagem do Palácio do Planalto, já correm boatos de que o presidente teria sido seqüestrado. Ouvem-se afirmações de que estaria morto, que um novo golpe militar teria tido êxito. Como o vice-presidente não se encontrava no país, o exército já teria cercado a Praça dos Três Poderes.

Enquanto a boataria progride, uma tempestade desaba sobre o Plano Piloto, encharcando os foliões e os espectadores. A festa vira pesadelo. A multidão tensa e silenciosa aguarda um milagre. Velas são acesas e, por causa da chuva, também lanternas e lampeões. Ouvem-se murmúrios e preces.

Em verdade, o presidente não tinha tomado rumo ao Palácio, mas estava a caminho da fazenda de sua irmã, Eva. Na estrada deserta seu carro é assaltado por homens mascarados que o seqüestram e levam para o meio do cerrado. Aí o obrigam a escrever uma carta, na qual informa o valor do resgate exigido. Junto com a carta dirigida ao povo brasileiro, Paulo Antônio envia um bilhete para sua mulher e sua filha. Está convencido de que o seqüestro tem razões políticas e aposta em sua libertação para, finalmente, dar início às obras de reformas das quais a sociedade brasileira tanto necessita. Caso seja sacrificado, pede em lugar de choro e vela que o homenageiem com um bom “samba-enredo”.

A chuva forte continua caindo sobre o telhado do barraco em que o presidente está preso. Seus raptores parecem tê-lo abandonado ali. O silêncio é total. O presidente recluso decide fugir pelo telhado. A alguns passos da cabana um tiro o colhe pela nuca. Sua morte éinstantânea. Um dos seqüestradores, acordado pela barulheira, briga com o atirador. Adeus dinheiro para o resgate! “Esse negócio com presidente não vale a pena”, argumenta o assassino, “o valor do resgate de um presidente é muito baixo.”

O cadáver é enterrado, ali mesmo, no anonimato do cerrado. Os seqüestradores haviam assaltado o carro errado, o plano era capturar um empresário rico.

3. Sobre o mito nos três romances.

“O que é um mito?” pergunta-se Jean-Pierre Vernant (1996) em sua coletânea mais recente: Entre mythe et politique. E sua resposta é inequívoca: “O mito não existe. O mito é um conceito que os antropólogos tomaram de empréstimo à tradição ocidental, como se isso fosse tão fácil! Seu significado não éuniversal, seu sentido não é unívoco, não há realidade que lhe corresponda. Stricto sensu essa palavra não diz nada.” (Vernant 1966: 353).

Vernant admite, entretanto, que ao conceito de “mito” sempre se contrapôs o conceito de “logos”, o que permite ver o mito como sendo o lado avesso, o outro, do discurso verdadeiro. “Assim, o mito conquista seu direito de existência, no mundo grego, não pelo que ele propriamente é mas pelo que ele – por uma razão ou outra – exclui ou denega.” (Vernant 1996: 355). Assim sendo, o mito estabelece uma certa distância com relação ao que ele próprio tematiza. Nesta acepção, o conceito pode ‘transcender os limites da cultura grega clássica. Neste sentido lato sensu, a referência ao “mito” simplesmente exprime o fato de que, no caso do tratamento literário de um tema, não está sendo representada a realidade como tal; o texto literário ou o discurso permanecem no âmbito da “ficção”.

É nestes termos que procuro usar o conceito de mito na interpretação do meu tema.

Em sua Filosofia das formas simbólicas (1987), como é sabido, Ernst Cassirer refletiu sobre o “pensamento mítico”. Segundo o filósofo alemão, o mito estaria voltado essencialmente para a configuração, a estruturação do tempo (Gestaltung), mais especificamente, para as formas temporais (Zeitgestalten).

“O verdadeiro mito não nasce simplesmente no momento em que a intuição do universo com suas partes e forças se configura em certas imagens e figuras de deuses e demônios, mas no momento em que se atribui a tais figuras uma emergência, um vir-a-ser, uma vida no tempo.” (Cassirer 1987: 129).

Esse conceito de tempo implícito no mito não deve ser confundido com o conceito de tempo usado na história, como um simples desenrolar de eventos e fatos que se comportam de maneira causal um com relação ao outro, mas de uma passagem no tempo – de um tempo original (Urzeit) para o tempo efetivo (eigendiche Zeit), ou deste para um tempo sagrado (heilige Zeit). Essa passagem corresponderia a um “rito de passagem” para uma nova qualidade de vida, em que é dado o salto qualitativo no tempo, do tempo profano para o tempo sagrado (ou não).

Ao indagar sobre o mito da megalópole na literatura brasileira contemporânea, interessa-me, pois, descobrir e ressaltar essas “figuras temporais” (Zeitgestalten) no sentido de Cassirer. Até que ponto os três romances urbanos aqui escolhidos tematizam este tipo de figuras? E como?

Ao aprofundar-me no tema, tornou-se necessário considerar uma outra diferenciação: de um lado, a questão do “mi to na megalópole” e, de outro, a questão do “mito da megalópole”. No primeiro caso, trata-se de estudar os personagens que se transformam em mitos na grande cidade. Nos romances aqui selecionados, as figuras míticas são encarnadas por Macabéa, Souza e o presidente Paulo Antônio. No segundo caso, o do mito da megalópole, a própria megalópole passa a ser um personagem principal, ou seja, sua “ação” e seu “desempenho” passam a assumir um caráter mítico. No sentido de Barthes, a própria cidade passa a ser considerada “texto”, produtora de textos. Nesta ótica, as cidades do Rio, de São Paulo e de Brasília estariam sendo tratadas como personagens míticos.

O “mito do passado” ganha destaque na Hora da estrela, de Lispector, pela maneira com que Macabéa se movimenta na cidade, presa às regras do jogo e padrões sociais de sua região de origem. Ela não consegue beneficiar-se das “ofertas” da megalópole por continuar vivendo no passado, no estilo de vida nordestino. Ela não consegue transformar a relação com Olímpio em um verdadeiro namoro por continuar presa aos preceitos morais tradicionais do nordeste. Jamais realizará seu sonho oculto de tornar-se atriz, por sua aparência insignificante e “tipicamente nordestina”. Macabéa também não pode comprar as mercadorias expostas nas vitrines de luxo de Copacabana por não possuir dinheiro. Pela mesma razão ela não pode ir a restaurantes. Alimenta-se de cachorro-quente, tem saudades da comida nordestina e continua subnutrida no Rio como já o era em Alagoas. Os navios que partem do porto e que gosta de observar calada, bem como os aviões que a sobrevoam são tão inatingíveis para a moça como as estrelas. Com sua mudança para o Rio, nada mudou para ela: Macabéa continua tão pobre, ignorante, explorada, infeliz e ameaçada de morte quanto esteve em sua terra natal. Ela não tem competência para viver na megalópole e paga essa incompetência com a morte. Será a vítima do trânsito agressivo da antiga capital. Assim termina o mito na megalópole. Ela não consegue conhecer seu tempo, acompanha-lo, adiantar-se a ele, no sentido de Cassirer. E sucumbe às crendices e mentiras do passado para as quais é seduzida pela cartomante.

Mas como se apresenta, neste romance de Lispector, o mito da cidade do Rio de Janeiro? O Rio permanece para Macabéa um enigma. Um monstro que lhe tirará a vida, a megalópole que tudo devora. Mas o Rio, sujeito, personagem, está voltado para o passado como Macabéa. A violência do cangaceiro é substituída pela violência do motorista no trânsito. A cidade se comporta – depois da transferência da capital para Brasília – como uma mulher abandonada pelo marido que não consegue refazer a vida. A própria Rio de Janeiro não tem controle sobre a situação e sucumbe nos tempos da megalópole às suas próprias contradições. Por isso mesmo, o Rio é incapaz de amparar aqueles seres humanos que o procuram para, mudar de vida, vencer na luta. Macabéa não decifrou o enigma da cidade e a cidade se vinga, engolindo-a.

O mito do presente está condensado no romance de Almino, Samba-enredo. 0 presidente fictício, Paulo Antônio, que gostaria de ser um líder messiânico, nada mais é que um simples presidente, cidadão comum, como tantos outros antes (e possivelmente depois) dele. Seu valor é tão ínfimo que os seqüestradores, ao perceberem que ele é o presidente, nem se dão o trabalho de pedir o resgate, enterrando-o numa cova anônima do cerrado. Como em outros casos, antes dele, ele não chegará ao final de seu mandato, deixará o país na crise e com a ameaça de nova ditadura militar. Sua vocação messiânica não basta para dar o salto do profano para o sagrado, como sua liderança é fraca para projetar o país do presente para o futuro. Atémesmo Ana, sua amante, prefere abandonar o computador, a transformar o presidente morto em ídolo e mito para conquistar novos horizontes e vencer velhas dificuldades. As circunstâncias de sua morte são demasiadamente banais.

Nem mesmo Brasília, a cidade planejada e simbolizada em forma do avião, consegue reverter esse quadro da mediocridade do personagem central. A nova Capital procura sua identidade no presente, no carnaval, na farsa e no deboche da política do dia-a-dia. A cidade construída por urbanistas e arquitetos não tem, por si só, força para construir uma nova sociedade. O povo permanece supersticioso, ingênuo, crédulo e vulnerável a movimentos messiânicos, a sentimentos míticos. Está exposto à mídia niveladora, presa ao cotidiano, ao presente. Rádio, televisão, vídeo, cinema, telões, cartazes, telefones portáteis são tecnologias novas que veiculam ideologias velhas. Brasília, como a antiga capital, fornece o substrato urbano para a corrupção, os escândalos sexuais, os golpes que já pertenciam ao quotidiano da vida política e social carioca. O novo, prometido por Brasília, é roupagem diferente, fantasia carnavalesca para disfarçar o déjà vu, o velho, o sempre-o-mesmo.

O laptop conservava em seu disco rígido uma estória que, por sua repetição cansativa, se desfaz em farsa, não tem interesse. Ana percebe isso e abandona a máquina em que parou o tempo, jogando-a no lixo.

O mito do futuro é tematizado em Não verás país nenhum. Trata-se de um futuro sem perspectivas para Souza, o narrador e personagem mítico do romance. Seu triste fim está selado desde o início da narrativa. O mesmo vale para a megalópole que serve de base material e urbana para a trama. Souza, historiador, ainda tem lembranças de tempos melhores, mas vive na consciência do seu fim próximo, desesperado. Seu destino é indissociável do destino de São Paulo. Aqui o mito na megalópole se sobrepõe ao mito da megalápole. Os dois mitos se confundem, se mesclam em um. 0 destino de Souza é o destino de São Paulo e o que vai acontecer a São Paulo arrastará consigo todos os milhões de Souzas que povoam a cidade. São Paulo, em franca ascensão econômica, no início do século XIX e XX, é apresentada – no final do século XX – como uma cidade “terminal” que somente promete morte e esterilidade para todos os seus habitantes.

A economia de mercado globalizada, a ditadura militar, a falta de consciência ecológica, a indiferença e a ignorância da população não deixam perspectivas para o futuro. Uma geração nova, expatriada, é a única esperam que resta.

Nos três romances, os autores desconstroem a visão otimista da cidade como instância civilizadora, socializadora, de “civitas” no sentido que lhe atribuiu Sennett (1990). Longe de serem pontos de irradiação do progresso, espaços organizados para uma vida melhor, centrais racionais da organização da cidadania, da democracia e do “bem viver” aristotélico, as cidades tematizadas por Lispector, Loyola Brandão e João Almino não prometem vida melhor, não oferecem chances aos indivíduos de transcenderem os seus limites e seu tempo para construírem um novo mundo em novo espaço urbano. Essa visão, que caracterizava ainda certos romances de Hugo a Balzac, de Dickens e Dos Passos parece justificar-se somente para as “metrópoles” da virada do século XIX para o XX (cf. Caillois, 1966; Klotz, 1969). Aqui o espaço urbano ainda oferecia chances de realização individual aos personagens atrevidos e pouco escrupulosos. Na era da megalópole, neste final de século e milênio, os indivíduos já não têm vez. Como vimos, tanto Macabéa quanto Souza e Paulo Antônio estão condenados à morte, cada um à sua maneira e dentro das malhas que cada megalópole lhes teceu: o trânsito infernal do Rio, o desequilíbrio político e ecológico de São Paulo, o crime econômico e político organizado de Brasília. ..

Acreditando-se nos romancistas aqui analisados, as megalópoles não conseguem gerar personagens míticas novas, Zeitfiguren, no sentido de Cassirer, que rompam as algemas do profano, do agora e anunciem tempos melhores, “sagrados”, de uma vida digna no futuro das megalópoles. O que ainda parecia ser possível no contexto das metrópoles, se tomarmos a Paris de Balzac como paradigma, não acontece mais no contexto das megalópoles.

Em outras palavras, o mito na megalópole, representado pelos personagens de Macabéa, Souza e Paulo Antônio é devorado pelo mito da megalópole, o monstro ciclópico que destrói seus habitantes e acabará se devorando a si próprio.


4. Bibliografia

Almino, João (1994). Samba-enredo. São Paulo: Marco Zero.

Balzac, Honoré de (1966). Le père Goriot (1834). Em. Ibid. La Comédie Humaine (1966). Paris: Le Club Français du Livre, vol. 4 (pp. 19-323). Bonvicino, Regis (1994). “A carnavalização na obra de João Almino: escritor retoma a reflexão e ironia de Machado para tratar em seu romance do que há de banal e alienante na cultura nacional”, em: Jornal do Brasil/Idéias, 27.08.94, p. 3..

Brandão, Ignácio de Loyola (1981). Não verás país nenhum. Rio de Janeiro: Coderci.

Briesemeister, Dietrich/Feldmann, Helmut/Santiago, Silviano (eds.). Brasilianische Literatur der Zeit der Militãrherrschaft (1964-1984). Frankfurt/Main: Vervuert (Biblioteca Ibero-americana, 47).

Caillois, Roger (1966). “Balzac et le mythe de Paris”, Em: Balzac, H. de. La Comédie Humaine (1966), vol. 14: (pp. I – xvii).

Cassirer, Ernst (1987). Philosophie der symbolischen Formen, vol. 2: Das mythische Denken. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft.

Datis, Ronald (1997). Grossstädte Aussereuropas: Lebenslust und Menschenleid. Berlin: Ursula Opitz (Babylon Metropolis Studies, 3). Engler, Erhard (1992). “Von der Prähistorie in die Zukunft: die Herausforderung gilt”, em: Briesemeister/Feldmann/Santiago (1992: 129-149).

Freitag, Barbara (1997). “Civilização urbana e subculturas da cidade”, em: Ludemann, Marina (ed.): Brasmitte: urbane Interventionen. São Paulo, Pancrom, pp.110-114.

Klotz, Volker. (1969). Die erzählte Stadt. Ein Sujet als Herausforderung des Romans von Lesage bis Döblin. München: Carl Hanser Verlag.

Lispector, Clarice (1977). A hora da estrela. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 23′ edição (usada) 1995.

Machado de Assis (1957). “A cartomante”. Em: Ibid. Obras Completas de Machado de Assis. Editores W. M. Jackson Inc.. Rio, S.Paulo, P Alegre, vol. 14 (pp. 9-25).

Orsini, Elisabeth (1994). “Caso de amor com um computador”. Em: O Globo/Livros, 07.08.94, p. 6.

Osaskabe, Haquira (1994). “O romance carnavalesco de um narrador-computador”, em: Folha de São Paulo/Livros, 09.10.94, p. 6.

Spielmann, Ellen (1994). Brasilianische Fiktionen: Gegenwart als Pastiche. Frankfurt/M: Vervuert.

Vernant, Jean-Pierre (1996). Entre mythe et politique. Paris: Seuil.

Notas

1 Vide (na bibliografia trabalhos publicados por Briesemeister/Feldmann/ Santiago (1992); Spielmann (1994); Osakabe (1994); Bonvicino (1994); Orsini (1994) a respeito.

2 A filmagem deste romance, feita por Susana do Amaral, em 1986, transfere o cenário da vida e morte de Macabéa para São Paulo. A cineasta consegue, assim, radicalizar as diferenças da vida de Macabéa (no nordeste) e sua vida urbana,” nova” , na megalópole.

3 O leitor de Várias histórias, de Machado de Assis, fará a associação com Camilo, o personagem central de “A Cartomante” (M. de Assis, 1957: Obras Completas, vol. 14, pp. 9-25). Camilo ouvira da cartomante que nada lhe aconteceria, pois seu amigo Vilela ignorava a relação amorosa clandestina que ele, Camilo, mantinha com Rita, a mulher do amigo. “Pensando nas horas felizes de outrora e nas que haviam de vir”, vai à casa do Vilela que o mandara chamar. Ao entrar no apartamento, Vilela o mata com dois tiros.

4 Clarice Lispector fez um empréstimo aos escritos apócrifos dos Macabeus (em quatro volumes: I-IV) do judaísmo. Nesses escritos, encontram-se relatos das lutas dos judeus contra os sírios na época do Imperador romano, Calígula. Nesses relatos é dado destaque ao martírio dos judeus que representavam o protótipo do homem justo e sensato que luta contra impulsos irracionais. Esses escritos não foram reconhecidos nem pelos judeus, nem pelos protestantes. Contudo, os católicos, entre eles Tomás de Aquino, preservaram e retransmitiram-nos esses escritos por suas histórias de sofrimento e martírio.

5 Em Balzac et le mythe de Paris (1957), Roger Caillois mostra que Balzac, apoiado em Baudelaire, procurava refletir em sua Comédie Humaine exatamente essa noção do mito moderno. Seus heróis simbolizam superação de dificuldades, saltos no tempo, passagens de uma episteme a outra (p. ex., do romantismo para o realismo). “Certes le roman n’est pas le mythe. Cependant ses héros, comme les héros mythiques, apportent à l’individu les répondants dont il a besoin pour oser agir, quelquefois même pour seulement imaginer sa conduite future.” (p. xvii). Em Balzac, Honoré de. (1966, vol.4, pp. I-xvi)

6 Essa distinção* pode facilmente ser ilustrada no final do romance de Balzac Le père Goriot (1834; 1966), no diálogo de Rastignac, o jovem herói vindo do campo, disposto a enfrentar os desafios da grande cidade, da metrópole de Paris. Rastignac, que testemunhara o sacrifício do pai pelas filhas e a indiferença dessas na hora da morte do velho, conscientiza-se, durante o enterro, que Paris é o personagem que destrói todas as sensibilidades; e écontra ela que Rastignac lançará seu grito de revolta: “À nous deux maintenant!” (Balzac, vo1.4: p. 322). Através da Comédie Humaine este “herói” não se deixará intimidar e ensinará a outros jovens, como “vencer” na vida, em Paris. Enquanto Rastignac incorpora o mito na cidade, Paris representa o mito da cidade. Aqui, os dois personagens ainda estão em pé de igualdade; um desafia o outro, um é a condição de existência e sobrevivência do outro. Na megalópole essa equação será zerada.

7. Le mythe de Paris annonce d’étranges pouvoirs de Ia littérature. […111 entend traduire une réalité ephémère et changeante, qu’il cherche à modifier en donnant conscience au lecteur des problèmes de l’époque, en l’obligeant à les examiner, en lui suggérant l’attitude qu’il doit prendre, en lui proposant l’exemple d’une décision prestigíeuse. Balzac est à l’origine d’un pareil mode d’emploi du roman.” (Caillois, 1957: xvii).