História de secura e esperança teimosa. Diário do Nordeste sobre Entre facas, algodão, de João Almino

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[:pt]Diário do Nordeste, Caderno 3, 22 de dezembro de 2017
História de secura e esperança teimosa
História de secura e esperança teimosa

O Brasil eminentemente contraditório é cenário e objeto do novo romance de João Almino, “Entre facas, algodão”.

João Almino deixa Brasília, seu território ficcional mais recorrente, e envereda numa trama carregada de memórias, que passa pelo sertão e pelo litoral do Nordeste.

por Vera Lúcia de Oliveira* – Especial para o Caderno 3

Dizem que não devemos voltar ao lugar onde um dia fomos felizes. Nem devemos olhar para trás, como nos adverte o episódio bíblico da mulher de Lot. Não foi, porém, o que aconteceu com o personagem-narrador de entre facas, algodão (Ed. Record, 2017), romance de João Almino, mestre da literatura brasiliense e brasileira que traz no DNA a escritura dos grandes autores nordestinos. Quem sai aos seus não degenera, diz o ditado.
Nesse romance de “secura e esperança teimosa”, como ele mesmo definiu, temos um continuador, no melhor dos sentidos, da prosa realista, enxuta e metonímica de Graciliano Ramos, do mundo de casas repartidas dos meninos de engenho de José Lins do Rego, e até da poesia descarnada de João Cabral de Melo Neto. Almino, natural de Mossoró, bebeu, com certeza, nessas fontes de águas límpidas e conseguiu criar a própria narrativa, singular, em que o desencanto está presente em cada página, mas disfarçando algo que se pode chamar de esperança, aquela verdinha que nos ajuda a viver e que morre por último. O enredo da narrativa nos mostra isso, pois, ao mesmo tempo em que busca vingança, o tal prato que se come frio, esse homem de pele escura que não diz o seu nome – mas que poderia ser José, João, Joaquim, Jurandir, etc. – uma vez que representa o brasileiro que luta bravamente por sua ascensão social – busca também um amor que ficou escondido no seu coração, preso simbolicamente por um fio de cabelo da amada, guardado numa caixa de fósforos. Um amor que só precisava de um sopro para virar chama. O passado que não é passado, pois está presente na vida e no desejo de resgatar o não vivido. A busca do tempo perdido, seguindo o fio de Ariadne. A busca de revanche: voltar para acertar contas. E honrar o nome do pai.

Mítico

Esse homem inteligente, advogado, morador de Taguatinga, marcado por lembranças, depois de desatar o nó do casamento, deixa o Distrito Federal e volta para o interior do Nordeste (de onde viera trazido pela ventania da vida) ao encontro do seu destino; vai desatar outros nós que amarram sua vida. E se surpreende. Isso aos setenta anos! Há algo de mítico nesse romance do embaixador e membro da Academia Brasileira de Letras, que deu maioridade a Brasília por ser seu ilustre morador e por ambientar na Capital da Esperança (como a chamou André Malraux) os seus premiados romances, a exemplo de Cidade Livre, e agora este recém-nascido entre facas, algodão cujo título é uma metáfora do estilo do livro, pois se num prato da balança há o árido do vocabulário do sertão de homens de estopim curto e faca amolada, há, no outro, e muito, a leveza, a poesia, a beleza e claridade do algodão, identificado nas personagens Clarice e Luzia, claridade e luz. O mundo de entre facas, vai da lamparina à internet, das ruas sem saneamento básico ao Facebook; do Brasil das carroças nas ruas ao dos aviões a jato cortando o país de norte a sul; do país que entrou para a modernidade sem vencer o atraso, da modernidade vertical, imposta de cima para baixo, em que o avanço dos meios de comunicação não eliminou o analfabetismo, a miséria espalhada como erva daninha por todas as cidades, grandes e pequenas. Um Brasil desordenado, violento, produto da desigualdade que só faz aumentar. Um desastre, como diz o narrador. Um país mudo, que só fala por mensagens via WhatsApp. É nesse país que vivem os personagens de Almino, é nesse país que vivemos todos nós, os brasileiros.
Nessa crítica à sociedade, essa nova sociedade que desabrocha em meio ao caos, com grandes avanços tecnológicos e retrocessos humanísticos, o engajamento de João Almino é moderno e contemporâneo. Sem a visão sociológica dos romancistas dos anos de 1930, sem a linguagem sensorial de um José Américo de Almeida, sem o idealismo romântico de Jorge Amado, sem militância política, entre facas, algodão deixa de lado as utopias e se nutre apenas de um fio de esperança, aquela verdinha que insiste em não morrer… Uma esperança teimosa.

*Professora de literatura e escritora, radicada em Brasília. É autora de livros como “O beijo da mãe e outros ensaios de literatura & psicanálise” e “O músculo amargo do mundo”.[:en]Diário do Nordeste, Caderno 3, 22 de dezembro de 2017
História de secura e esperança teimosa
História de secura e esperança teimosa

O Brasil eminentemente contraditório é cenário e objeto do novo romance de João Almino, “Entre facas, algodão”.

João Almino deixa Brasília, seu território ficcional mais recorrente, e envereda numa trama carregada de memórias, que passa pelo sertão e pelo litoral do Nordeste.

por Vera Lúcia de Oliveira* – Especial para o Caderno 3

Dizem que não devemos voltar ao lugar onde um dia fomos felizes. Nem devemos olhar para trás, como nos adverte o episódio bíblico da mulher de Lot. Não foi, porém, o que aconteceu com o personagem-narrador de entre facas, algodão (Ed. Record, 2017), romance de João Almino, mestre da literatura brasiliense e brasileira que traz no DNA a escritura dos grandes autores nordestinos. Quem sai aos seus não degenera, diz o ditado.
Nesse romance de “secura e esperança teimosa”, como ele mesmo definiu, temos um continuador, no melhor dos sentidos, da prosa realista, enxuta e metonímica de Graciliano Ramos, do mundo de casas repartidas dos meninos de engenho de José Lins do Rego, e até da poesia descarnada de João Cabral de Melo Neto. Almino, natural de Mossoró, bebeu, com certeza, nessas fontes de águas límpidas e conseguiu criar a própria narrativa, singular, em que o desencanto está presente em cada página, mas disfarçando algo que se pode chamar de esperança, aquela verdinha que nos ajuda a viver e que morre por último. O enredo da narrativa nos mostra isso, pois, ao mesmo tempo em que busca vingança, o tal prato que se come frio, esse homem de pele escura que não diz o seu nome – mas que poderia ser José, João, Joaquim, Jurandir, etc. – uma vez que representa o brasileiro que luta bravamente por sua ascensão social – busca também um amor que ficou escondido no seu coração, preso simbolicamente por um fio de cabelo da amada, guardado numa caixa de fósforos. Um amor que só precisava de um sopro para virar chama. O passado que não é passado, pois está presente na vida e no desejo de resgatar o não vivido. A busca do tempo perdido, seguindo o fio de Ariadne. A busca de revanche: voltar para acertar contas. E honrar o nome do pai.

Mítico

Esse homem inteligente, advogado, morador de Taguatinga, marcado por lembranças, depois de desatar o nó do casamento, deixa o Distrito Federal e volta para o interior do Nordeste (de onde viera trazido pela ventania da vida) ao encontro do seu destino; vai desatar outros nós que amarram sua vida. E se surpreende. Isso aos setenta anos! Há algo de mítico nesse romance do embaixador e membro da Academia Brasileira de Letras, que deu maioridade a Brasília por ser seu ilustre morador e por ambientar na Capital da Esperança (como a chamou André Malraux) os seus premiados romances, a exemplo de Cidade Livre, e agora este recém-nascido entre facas, algodão cujo título é uma metáfora do estilo do livro, pois se num prato da balança há o árido do vocabulário do sertão de homens de estopim curto e faca amolada, há, no outro, e muito, a leveza, a poesia, a beleza e claridade do algodão, identificado nas personagens Clarice e Luzia, claridade e luz. O mundo de entre facas, vai da lamparina à internet, das ruas sem saneamento básico ao Facebook; do Brasil das carroças nas ruas ao dos aviões a jato cortando o país de norte a sul; do país que entrou para a modernidade sem vencer o atraso, da modernidade vertical, imposta de cima para baixo, em que o avanço dos meios de comunicação não eliminou o analfabetismo, a miséria espalhada como erva daninha por todas as cidades, grandes e pequenas. Um Brasil desordenado, violento, produto da desigualdade que só faz aumentar. Um desastre, como diz o narrador. Um país mudo, que só fala por mensagens via WhatsApp. É nesse país que vivem os personagens de Almino, é nesse país que vivemos todos nós, os brasileiros.
Nessa crítica à sociedade, essa nova sociedade que desabrocha em meio ao caos, com grandes avanços tecnológicos e retrocessos humanísticos, o engajamento de João Almino é moderno e contemporâneo. Sem a visão sociológica dos romancistas dos anos de 1930, sem a linguagem sensorial de um José Américo de Almeida, sem o idealismo romântico de Jorge Amado, sem militância política, entre facas, algodão deixa de lado as utopias e se nutre apenas de um fio de esperança, aquela verdinha que insiste em não morrer… Uma esperança teimosa.

*Professora de literatura e escritora, radicada em Brasília. É autora de livros como “O beijo da mãe e outros ensaios de literatura & psicanálise” e “O músculo amargo do mundo”.

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Diário do Nordeste, Caderno 3, 22 de dezembro de 2017
História de secura e esperança teimosa
História de secura e esperança teimosa

O Brasil eminentemente contraditório é cenário e objeto do novo romance de João Almino, “Entre facas, algodão”.

João Almino deixa Brasília, seu território ficcional mais recorrente, e envereda numa trama carregada de memórias, que passa pelo sertão e pelo litoral do Nordeste.

por Vera Lúcia de Oliveira* – Especial para o Caderno 3

Dizem que não devemos voltar ao lugar onde um dia fomos felizes. Nem devemos olhar para trás, como nos adverte o episódio bíblico da mulher de Lot. Não foi, porém, o que aconteceu com o personagem-narrador de entre facas, algodão (Ed. Record, 2017), romance de João Almino, mestre da literatura brasiliense e brasileira que traz no DNA a escritura dos grandes autores nordestinos. Quem sai aos seus não degenera, diz o ditado.
Nesse romance de “secura e esperança teimosa”, como ele mesmo definiu, temos um continuador, no melhor dos sentidos, da prosa realista, enxuta e metonímica de Graciliano Ramos, do mundo de casas repartidas dos meninos de engenho de José Lins do Rego, e até da poesia descarnada de João Cabral de Melo Neto. Almino, natural de Mossoró, bebeu, com certeza, nessas fontes de águas límpidas e conseguiu criar a própria narrativa, singular, em que o desencanto está presente em cada página, mas disfarçando algo que se pode chamar de esperança, aquela verdinha que nos ajuda a viver e que morre por último. O enredo da narrativa nos mostra isso, pois, ao mesmo tempo em que busca vingança, o tal prato que se come frio, esse homem de pele escura que não diz o seu nome – mas que poderia ser José, João, Joaquim, Jurandir, etc. – uma vez que representa o brasileiro que luta bravamente por sua ascensão social – busca também um amor que ficou escondido no seu coração, preso simbolicamente por um fio de cabelo da amada, guardado numa caixa de fósforos. Um amor que só precisava de um sopro para virar chama. O passado que não é passado, pois está presente na vida e no desejo de resgatar o não vivido. A busca do tempo perdido, seguindo o fio de Ariadne. A busca de revanche: voltar para acertar contas. E honrar o nome do pai.

Mítico

Esse homem inteligente, advogado, morador de Taguatinga, marcado por lembranças, depois de desatar o nó do casamento, deixa o Distrito Federal e volta para o interior do Nordeste (de onde viera trazido pela ventania da vida) ao encontro do seu destino; vai desatar outros nós que amarram sua vida. E se surpreende. Isso aos setenta anos! Há algo de mítico nesse romance do embaixador e membro da Academia Brasileira de Letras, que deu maioridade a Brasília por ser seu ilustre morador e por ambientar na Capital da Esperança (como a chamou André Malraux) os seus premiados romances, a exemplo de Cidade Livre, e agora este recém-nascido entre facas, algodão cujo título é uma metáfora do estilo do livro, pois se num prato da balança há o árido do vocabulário do sertão de homens de estopim curto e faca amolada, há, no outro, e muito, a leveza, a poesia, a beleza e claridade do algodão, identificado nas personagens Clarice e Luzia, claridade e luz. O mundo de entre facas, vai da lamparina à internet, das ruas sem saneamento básico ao Facebook; do Brasil das carroças nas ruas ao dos aviões a jato cortando o país de norte a sul; do país que entrou para a modernidade sem vencer o atraso, da modernidade vertical, imposta de cima para baixo, em que o avanço dos meios de comunicação não eliminou o analfabetismo, a miséria espalhada como erva daninha por todas as cidades, grandes e pequenas. Um Brasil desordenado, violento, produto da desigualdade que só faz aumentar. Um desastre, como diz o narrador. Um país mudo, que só fala por mensagens via WhatsApp. É nesse país que vivem os personagens de Almino, é nesse país que vivemos todos nós, os brasileiros.
Nessa crítica à sociedade, essa nova sociedade que desabrocha em meio ao caos, com grandes avanços tecnológicos e retrocessos humanísticos, o engajamento de João Almino é moderno e contemporâneo. Sem a visão sociológica dos romancistas dos anos de 1930, sem a linguagem sensorial de um José Américo de Almeida, sem o idealismo romântico de Jorge Amado, sem militância política, entre facas, algodão deixa de lado as utopias e se nutre apenas de um fio de esperança, aquela verdinha que insiste em não morrer… Uma esperança teimosa.

*Professora de literatura e escritora, radicada em Brasília. É autora de livros como “O beijo da mãe e outros ensaios de literatura & psicanálise” e “O músculo amargo do mundo”.

[:fr]Diário do Nordeste, Caderno 3, 22 de dezembro de 2017
História de secura e esperança teimosa
História de secura e esperança teimosa

O Brasil eminentemente contraditório é cenário e objeto do novo romance de João Almino, “Entre facas, algodão”.

João Almino deixa Brasília, seu território ficcional mais recorrente, e envereda numa trama carregada de memórias, que passa pelo sertão e pelo litoral do Nordeste.

por Vera Lúcia de Oliveira* – Especial para o Caderno 3

Dizem que não devemos voltar ao lugar onde um dia fomos felizes. Nem devemos olhar para trás, como nos adverte o episódio bíblico da mulher de Lot. Não foi, porém, o que aconteceu com o personagem-narrador de entre facas, algodão (Ed. Record, 2017), romance de João Almino, mestre da literatura brasiliense e brasileira que traz no DNA a escritura dos grandes autores nordestinos. Quem sai aos seus não degenera, diz o ditado.
Nesse romance de “secura e esperança teimosa”, como ele mesmo definiu, temos um continuador, no melhor dos sentidos, da prosa realista, enxuta e metonímica de Graciliano Ramos, do mundo de casas repartidas dos meninos de engenho de José Lins do Rego, e até da poesia descarnada de João Cabral de Melo Neto. Almino, natural de Mossoró, bebeu, com certeza, nessas fontes de águas límpidas e conseguiu criar a própria narrativa, singular, em que o desencanto está presente em cada página, mas disfarçando algo que se pode chamar de esperança, aquela verdinha que nos ajuda a viver e que morre por último. O enredo da narrativa nos mostra isso, pois, ao mesmo tempo em que busca vingança, o tal prato que se come frio, esse homem de pele escura que não diz o seu nome – mas que poderia ser José, João, Joaquim, Jurandir, etc. – uma vez que representa o brasileiro que luta bravamente por sua ascensão social – busca também um amor que ficou escondido no seu coração, preso simbolicamente por um fio de cabelo da amada, guardado numa caixa de fósforos. Um amor que só precisava de um sopro para virar chama. O passado que não é passado, pois está presente na vida e no desejo de resgatar o não vivido. A busca do tempo perdido, seguindo o fio de Ariadne. A busca de revanche: voltar para acertar contas. E honrar o nome do pai.

Mítico

Esse homem inteligente, advogado, morador de Taguatinga, marcado por lembranças, depois de desatar o nó do casamento, deixa o Distrito Federal e volta para o interior do Nordeste (de onde viera trazido pela ventania da vida) ao encontro do seu destino; vai desatar outros nós que amarram sua vida. E se surpreende. Isso aos setenta anos! Há algo de mítico nesse romance do embaixador e membro da Academia Brasileira de Letras, que deu maioridade a Brasília por ser seu ilustre morador e por ambientar na Capital da Esperança (como a chamou André Malraux) os seus premiados romances, a exemplo de Cidade Livre, e agora este recém-nascido entre facas, algodão cujo título é uma metáfora do estilo do livro, pois se num prato da balança há o árido do vocabulário do sertão de homens de estopim curto e faca amolada, há, no outro, e muito, a leveza, a poesia, a beleza e claridade do algodão, identificado nas personagens Clarice e Luzia, claridade e luz. O mundo de entre facas, vai da lamparina à internet, das ruas sem saneamento básico ao Facebook; do Brasil das carroças nas ruas ao dos aviões a jato cortando o país de norte a sul; do país que entrou para a modernidade sem vencer o atraso, da modernidade vertical, imposta de cima para baixo, em que o avanço dos meios de comunicação não eliminou o analfabetismo, a miséria espalhada como erva daninha por todas as cidades, grandes e pequenas. Um Brasil desordenado, violento, produto da desigualdade que só faz aumentar. Um desastre, como diz o narrador. Um país mudo, que só fala por mensagens via WhatsApp. É nesse país que vivem os personagens de Almino, é nesse país que vivemos todos nós, os brasileiros.
Nessa crítica à sociedade, essa nova sociedade que desabrocha em meio ao caos, com grandes avanços tecnológicos e retrocessos humanísticos, o engajamento de João Almino é moderno e contemporâneo. Sem a visão sociológica dos romancistas dos anos de 1930, sem a linguagem sensorial de um José Américo de Almeida, sem o idealismo romântico de Jorge Amado, sem militância política, entre facas, algodão deixa de lado as utopias e se nutre apenas de um fio de esperança, aquela verdinha que insiste em não morrer… Uma esperança teimosa.

*Professora de literatura e escritora, radicada em Brasília. É autora de livros como “O beijo da mãe e outros ensaios de literatura & psicanálise” e “O músculo amargo do mundo”.
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