Entrevista a Paulo Paniago, “Pensar”, Correio BrazilienseEntrevista a Paulo Paniago, “Pensar”, Correio BrazilienseEntrevista a Paulo Paniago, “Pensar”, Correio BrazilienseEntrevista a Paulo Paniago, “Pensar”, Correio Braziliense

/

Paulo Paniago, Especial para o Correio

CORREIO BRAZILIENSE, PENSAR, SÁBADO, 21 de Junho de 2008

Brasília na minha literatura é também mito, ideia, projeto e metáfora de Brasil, um Brasil de muitos brasis

O personagem estava lá, secundário, em todos os livros anteriores de ficção de João Almino. Agora, em “O livro das emoções”, o fotógrafo Cadu vem ao primeiro plano para narrar a história de encontros — e principalmente de desencontos — mais uma vez passada em Brasília, cidade eleita pelo escritor e diplomata para cenário dos romances. O primeiro foi Ideias para onde passar o fim do mundo. “Imaginei que aquele romance seria uma espécie de introdução a vários outros, que viriam a ser narrados da perspectiva de cada um de seus principais personagens”, diz o Cônsul-Geral em Chicago em entrevista ao Correio. Aquele era o primeiro do que seria uma trilogia, completa com Samba-Enredo e As cinco estações do amor — este último foi lançado em março nos EUA pela Host Publications com o título de The five seasons of love. Entretanto, ao terminar a trilogia, e depois de tantos personagens femininos, Almino se viu estimulado “a trazer ao primeiro plano da narrativa um personagem masculino que estivera presente, como personagem secundário, em toda a trilogia”. Daí surgiu O livro das emoções, a respeito do qual concedeu a entrevista a seguir.

O fotógrafo sem visão mira a superfície das coisas e pessoas mais do que o interior, inclusive o próprio. Quanto há de verdade nisso? De onde veio a ideia para fazer o livro? Você também é fotógrafo, o que leva a especular em analogias…
É a partir da lembrança — e sobretudo da lembrança de imagens fotográficas — que o personagem compõe seu Livro das emoções. O entrecruzamento entre visualidade e memória pontua todo o texto e é a principal matéria de sua dimensão reflexiva. Para aquele personagem, de certa forma, viver era ver, e agora é lembrar. A reconstrução da visualidade pela lembrança é uma maneira de recuperação da vida. Mas o livro é sobretudo feito de elipses, de fotos não tiradas, imperfeitas, perdidas, desfocadas, mal enquadradas, que sempre apontam para outra imagem, que se torna mais visível no escuro, na cegueira. É nesta outra imagem, mais do que naquela que lhe serve de referência, que reside a emoção.

No processo de composição deste livro, você tinha tudo planejado ou foi construindo à medida que escrevia?
Tenho trabalhado de duas formas aparentemente contraditórias: tenho um plano geral e estou sempre disposto a modificá-lo, radicalmente se for preciso, à medida que escrevo. Quando chego ao final do processo, às vezes terá sobrado pouco da ideia original. Levei sete anos para escrever O livro das emoções, por coincidência o mesmo tempo que levei para escrever cada um de meus outros romances.

De onde surgiu a ideia do personagem do fotógrafo cego a rememorar amores perdidos, mulheres-triângulos, imagens do passado?
A fotografia é para mim uma paixão antiga, e há muito pensava em enxertar numa obra de ficção uma reflexão sobre a fotografia, o contraste entre a cegueira e a imagem fotográfica me ajudando a criar camadas inusitadas de interpretação. Para isso, nada melhor do que escrever da perspectiva de um fotógrafo, personagem meu, que já estava relativamente bem desenvolvido nos livros anteriores. Ele foi o responsável pela imagem que dá origem a Ideias para onde pasar o fim do mundo. Sua personalidade e o tipo de relação que estabelece com as mulheres — várias delas personagens de livros anteriores, como Berenice, Joana e Ana Kauman — já estavam definidos também nos romances anteriores. Cabia reordenar esse material, mudar os tempos da narrativa e arquitetar o romance como se fosse um álbum de retratos, o que exigiu de mim um paciente trabalho artesanal.

Brasília continua sua referência. Entretanto, a cidade ocupa um espaço que parece ao mesmo tempo central e periférico: a trama poderia estar ambientada em Chicago ou São Paulo, a cidade parece apenas um detalhe. Ou não: o detalhe da cidade conforma e contorna os personagens. Como anda sua relação pessoal com Brasília?
Por causa de minha vida cigana, Brasília foi a cidade onde mais vivi depois de minha cidade natal, Mossoró, no Rio Grande do Norte. Da próxima vez que eu voltar a Brasília para morar, é provável que as duas empatem. Foram quatro as minhas passagens pela cidade, onde morei pela última vez entre 2001 e 2004. Essa poderia ser uma das razões para fazer de Brasília cenário e personagem de meus romances. Mas é verdade que, além de ser uma cidade onde vivi, Brasília na minha literatura é também mito, ideia, projeto e metáfora de Brasil, um Brasil de muitos brasis. E você tem razão: acredito no caráter universal da literatura e acho que podem ser mais próximas uma da outra histórias que se passam respectivamente em São Paulo e em Nova York, do que duas que se passam numa mesma cidade, seja ela São Paulo ou Nova York.Ou seja, uma cidade não é suficiente para definir uma literatura. Minhas histórias poderiam por certo se situar noutros lugares, mas Brasília lhes dá uma cor particular, me ajuda a fugir dos estereótipos e a tratar de temas que me são caros, como o novo, a pós-utopia e os processos de desmodernização.

Como você organizou os tempos da narrativa? Na orelha do livro, João Gilberto Noll fala em quebra-cabeças que remetem a uma melancolia, a vazios na trama que parecem indicar, de novo, os vazios de Brasília. É isso mesmo?
É uma observação pertinente e perspicaz de João Gilberto Noll. O tema do vazio — assim como o do instante — é recorrente em minha literatura e está presente no Livro das emoções. Brasília, seja como utopia não-realizada, seja como cidade de história recente, pode servir de referência para enriquecer esse tema. Quanto aos tempos da narrativa, cuidei sobretudo para que a sobreposição de um tempo presente, que se faz no futuro, ou seja, em 2022, a um tempo passado, que se faz no presente, ou seja, de 2001 à atualidade, não fosse percebida como complexa. Foi preciso trabalhar simultaneamente nos dois registros, adequando um ao outro, para encontrar a dicção certa de cada um e também para construir uma trama que despertasse curiosidade.

Será que O livro das emoções vai virar uma peça de quebra-cabeças num jogo de armar ainda mais demorado? Outros livros virão e o quarteto pode virar quinteto, ou sexteto…?
Há alguns personagens insistentes, que batem à minha porta de madrugada pedindo para regressarem à história. É possível que eu acabe cedendo. Confesso que tenho anotações para um quinto romance. Mas a distância entre elas e um livro pode ser de vários anos. Na verdade, se delas vai mesmo surgir um livro ainda não sei.

Paulo Paniago, Especial para o Correio

CORREIO BRAZILIENSE, PENSAR, SÁBADO, 21 de Junho de 2008

Brasília na minha literatura é também mito, ideia, projeto e metáfora de Brasil, um Brasil de muitos brasis

O personagem estava lá, secundário, em todos os livros anteriores de ficção de João Almino. Agora, em “O livro das emoções”, o fotógrafo Cadu vem ao primeiro plano para narrar a história de encontros — e principalmente de desencontos — mais uma vez passada em Brasília, cidade eleita pelo escritor e diplomata para cenário dos romances. O primeiro foi Ideias para onde passar o fim do mundo. “Imaginei que aquele romance seria uma espécie de introdução a vários outros, que viriam a ser narrados da perspectiva de cada um de seus principais personagens”, diz o Cônsul-Geral em Chicago em entrevista ao Correio. Aquele era o primeiro do que seria uma trilogia, completa com Samba-Enredo e As cinco estações do amor — este último foi lançado em março nos EUA pela Host Publications com o título de The five seasons of love. Entretanto, ao terminar a trilogia, e depois de tantos personagens femininos, Almino se viu estimulado “a trazer ao primeiro plano da narrativa um personagem masculino que estivera presente, como personagem secundário, em toda a trilogia”. Daí surgiu O livro das emoções, a respeito do qual concedeu a entrevista a seguir.

O fotógrafo sem visão mira a superfície das coisas e pessoas mais do que o interior, inclusive o próprio. Quanto há de verdade nisso? De onde veio a ideia para fazer o livro? Você também é fotógrafo, o que leva a especular em analogias…
É a partir da lembrança — e sobretudo da lembrança de imagens fotográficas — que o personagem compõe seu Livro das emoções. O entrecruzamento entre visualidade e memória pontua todo o texto e é a principal matéria de sua dimensão reflexiva. Para aquele personagem, de certa forma, viver era ver, e agora é lembrar. A reconstrução da visualidade pela lembrança é uma maneira de recuperação da vida. Mas o livro é sobretudo feito de elipses, de fotos não tiradas, imperfeitas, perdidas, desfocadas, mal enquadradas, que sempre apontam para outra imagem, que se torna mais visível no escuro, na cegueira. É nesta outra imagem, mais do que naquela que lhe serve de referência, que reside a emoção.

No processo de composição deste livro, você tinha tudo planejado ou foi construindo à medida que escrevia?
Tenho trabalhado de duas formas aparentemente contraditórias: tenho um plano geral e estou sempre disposto a modificá-lo, radicalmente se for preciso, à medida que escrevo. Quando chego ao final do processo, às vezes terá sobrado pouco da ideia original. Levei sete anos para escrever O livro das emoções, por coincidência o mesmo tempo que levei para escrever cada um de meus outros romances.

De onde surgiu a ideia do personagem do fotógrafo cego a rememorar amores perdidos, mulheres-triângulos, imagens do passado?
A fotografia é para mim uma paixão antiga, e há muito pensava em enxertar numa obra de ficção uma reflexão sobre a fotografia, o contraste entre a cegueira e a imagem fotográfica me ajudando a criar camadas inusitadas de interpretação. Para isso, nada melhor do que escrever da perspectiva de um fotógrafo, personagem meu, que já estava relativamente bem desenvolvido nos livros anteriores. Ele foi o responsável pela imagem que dá origem a Ideias para onde pasar o fim do mundo. Sua personalidade e o tipo de relação que estabelece com as mulheres — várias delas personagens de livros anteriores, como Berenice, Joana e Ana Kauman — já estavam definidos também nos romances anteriores. Cabia reordenar esse material, mudar os tempos da narrativa e arquitetar o romance como se fosse um álbum de retratos, o que exigiu de mim um paciente trabalho artesanal.

Brasília continua sua referência. Entretanto, a cidade ocupa um espaço que parece ao mesmo tempo central e periférico: a trama poderia estar ambientada em Chicago ou São Paulo, a cidade parece apenas um detalhe. Ou não: o detalhe da cidade conforma e contorna os personagens. Como anda sua relação pessoal com Brasília?
Por causa de minha vida cigana, Brasília foi a cidade onde mais vivi depois de minha cidade natal, Mossoró, no Rio Grande do Norte. Da próxima vez que eu voltar a Brasília para morar, é provável que as duas empatem. Foram quatro as minhas passagens pela cidade, onde morei pela última vez entre 2001 e 2004. Essa poderia ser uma das razões para fazer de Brasília cenário e personagem de meus romances. Mas é verdade que, além de ser uma cidade onde vivi, Brasília na minha literatura é também mito, ideia, projeto e metáfora de Brasil, um Brasil de muitos brasis. E você tem razão: acredito no caráter universal da literatura e acho que podem ser mais próximas uma da outra histórias que se passam respectivamente em São Paulo e em Nova York, do que duas que se passam numa mesma cidade, seja ela São Paulo ou Nova York.Ou seja, uma cidade não é suficiente para definir uma literatura. Minhas histórias poderiam por certo se situar noutros lugares, mas Brasília lhes dá uma cor particular, me ajuda a fugir dos estereótipos e a tratar de temas que me são caros, como o novo, a pós-utopia e os processos de desmodernização.

Como você organizou os tempos da narrativa? Na orelha do livro, João Gilberto Noll fala em quebra-cabeças que remetem a uma melancolia, a vazios na trama que parecem indicar, de novo, os vazios de Brasília. É isso mesmo?
É uma observação pertinente e perspicaz de João Gilberto Noll. O tema do vazio — assim como o do instante — é recorrente em minha literatura e está presente no Livro das emoções. Brasília, seja como utopia não-realizada, seja como cidade de história recente, pode servir de referência para enriquecer esse tema. Quanto aos tempos da narrativa, cuidei sobretudo para que a sobreposição de um tempo presente, que se faz no futuro, ou seja, em 2022, a um tempo passado, que se faz no presente, ou seja, de 2001 à atualidade, não fosse percebida como complexa. Foi preciso trabalhar simultaneamente nos dois registros, adequando um ao outro, para encontrar a dicção certa de cada um e também para construir uma trama que despertasse curiosidade.

Será que O livro das emoções vai virar uma peça de quebra-cabeças num jogo de armar ainda mais demorado? Outros livros virão e o quarteto pode virar quinteto, ou sexteto…?
Há alguns personagens insistentes, que batem à minha porta de madrugada pedindo para regressarem à história. É possível que eu acabe cedendo. Confesso que tenho anotações para um quinto romance. Mas a distância entre elas e um livro pode ser de vários anos. Na verdade, se delas vai mesmo surgir um livro ainda não sei.

Paulo Paniago, Especial para o Correio

CORREIO BRAZILIENSE, PENSAR, SÁBADO, 21 de Junho de 2008

Brasília na minha literatura é também mito, ideia, projeto e metáfora de Brasil, um Brasil de muitos brasis

O personagem estava lá, secundário, em todos os livros anteriores de ficção de João Almino. Agora, em “O livro das emoções”, o fotógrafo Cadu vem ao primeiro plano para narrar a história de encontros — e principalmente de desencontos — mais uma vez passada em Brasília, cidade eleita pelo escritor e diplomata para cenário dos romances. O primeiro foi Ideias para onde passar o fim do mundo. “Imaginei que aquele romance seria uma espécie de introdução a vários outros, que viriam a ser narrados da perspectiva de cada um de seus principais personagens”, diz o Cônsul-Geral em Chicago em entrevista ao Correio. Aquele era o primeiro do que seria uma trilogia, completa com Samba-Enredo e As cinco estações do amor — este último foi lançado em março nos EUA pela Host Publications com o título de The five seasons of love. Entretanto, ao terminar a trilogia, e depois de tantos personagens femininos, Almino se viu estimulado “a trazer ao primeiro plano da narrativa um personagem masculino que estivera presente, como personagem secundário, em toda a trilogia”. Daí surgiu O livro das emoções, a respeito do qual concedeu a entrevista a seguir.

O fotógrafo sem visão mira a superfície das coisas e pessoas mais do que o interior, inclusive o próprio. Quanto há de verdade nisso? De onde veio a ideia para fazer o livro? Você também é fotógrafo, o que leva a especular em analogias…
É a partir da lembrança — e sobretudo da lembrança de imagens fotográficas — que o personagem compõe seu Livro das emoções. O entrecruzamento entre visualidade e memória pontua todo o texto e é a principal matéria de sua dimensão reflexiva. Para aquele personagem, de certa forma, viver era ver, e agora é lembrar. A reconstrução da visualidade pela lembrança é uma maneira de recuperação da vida. Mas o livro é sobretudo feito de elipses, de fotos não tiradas, imperfeitas, perdidas, desfocadas, mal enquadradas, que sempre apontam para outra imagem, que se torna mais visível no escuro, na cegueira. É nesta outra imagem, mais do que naquela que lhe serve de referência, que reside a emoção.

No processo de composição deste livro, você tinha tudo planejado ou foi construindo à medida que escrevia?
Tenho trabalhado de duas formas aparentemente contraditórias: tenho um plano geral e estou sempre disposto a modificá-lo, radicalmente se for preciso, à medida que escrevo. Quando chego ao final do processo, às vezes terá sobrado pouco da ideia original. Levei sete anos para escrever O livro das emoções, por coincidência o mesmo tempo que levei para escrever cada um de meus outros romances.

De onde surgiu a ideia do personagem do fotógrafo cego a rememorar amores perdidos, mulheres-triângulos, imagens do passado?
A fotografia é para mim uma paixão antiga, e há muito pensava em enxertar numa obra de ficção uma reflexão sobre a fotografia, o contraste entre a cegueira e a imagem fotográfica me ajudando a criar camadas inusitadas de interpretação. Para isso, nada melhor do que escrever da perspectiva de um fotógrafo, personagem meu, que já estava relativamente bem desenvolvido nos livros anteriores. Ele foi o responsável pela imagem que dá origem a Ideias para onde pasar o fim do mundo. Sua personalidade e o tipo de relação que estabelece com as mulheres — várias delas personagens de livros anteriores, como Berenice, Joana e Ana Kauman — já estavam definidos também nos romances anteriores. Cabia reordenar esse material, mudar os tempos da narrativa e arquitetar o romance como se fosse um álbum de retratos, o que exigiu de mim um paciente trabalho artesanal.

Brasília continua sua referência. Entretanto, a cidade ocupa um espaço que parece ao mesmo tempo central e periférico: a trama poderia estar ambientada em Chicago ou São Paulo, a cidade parece apenas um detalhe. Ou não: o detalhe da cidade conforma e contorna os personagens. Como anda sua relação pessoal com Brasília?
Por causa de minha vida cigana, Brasília foi a cidade onde mais vivi depois de minha cidade natal, Mossoró, no Rio Grande do Norte. Da próxima vez que eu voltar a Brasília para morar, é provável que as duas empatem. Foram quatro as minhas passagens pela cidade, onde morei pela última vez entre 2001 e 2004. Essa poderia ser uma das razões para fazer de Brasília cenário e personagem de meus romances. Mas é verdade que, além de ser uma cidade onde vivi, Brasília na minha literatura é também mito, ideia, projeto e metáfora de Brasil, um Brasil de muitos brasis. E você tem razão: acredito no caráter universal da literatura e acho que podem ser mais próximas uma da outra histórias que se passam respectivamente em São Paulo e em Nova York, do que duas que se passam numa mesma cidade, seja ela São Paulo ou Nova York.Ou seja, uma cidade não é suficiente para definir uma literatura. Minhas histórias poderiam por certo se situar noutros lugares, mas Brasília lhes dá uma cor particular, me ajuda a fugir dos estereótipos e a tratar de temas que me são caros, como o novo, a pós-utopia e os processos de desmodernização.

Como você organizou os tempos da narrativa? Na orelha do livro, João Gilberto Noll fala em quebra-cabeças que remetem a uma melancolia, a vazios na trama que parecem indicar, de novo, os vazios de Brasília. É isso mesmo?
É uma observação pertinente e perspicaz de João Gilberto Noll. O tema do vazio — assim como o do instante — é recorrente em minha literatura e está presente no Livro das emoções. Brasília, seja como utopia não-realizada, seja como cidade de história recente, pode servir de referência para enriquecer esse tema. Quanto aos tempos da narrativa, cuidei sobretudo para que a sobreposição de um tempo presente, que se faz no futuro, ou seja, em 2022, a um tempo passado, que se faz no presente, ou seja, de 2001 à atualidade, não fosse percebida como complexa. Foi preciso trabalhar simultaneamente nos dois registros, adequando um ao outro, para encontrar a dicção certa de cada um e também para construir uma trama que despertasse curiosidade.

Será que O livro das emoções vai virar uma peça de quebra-cabeças num jogo de armar ainda mais demorado? Outros livros virão e o quarteto pode virar quinteto, ou sexteto…?
Há alguns personagens insistentes, que batem à minha porta de madrugada pedindo para regressarem à história. É possível que eu acabe cedendo. Confesso que tenho anotações para um quinto romance. Mas a distância entre elas e um livro pode ser de vários anos. Na verdade, se delas vai mesmo surgir um livro ainda não sei.

Paulo Paniago, Especial para o Correio

CORREIO BRAZILIENSE, PENSAR, SÁBADO, 21 de Junho de 2008

Brasília na minha literatura é também mito, ideia, projeto e metáfora de Brasil, um Brasil de muitos brasis

O personagem estava lá, secundário, em todos os livros anteriores de ficção de João Almino. Agora, em “O livro das emoções”, o fotógrafo Cadu vem ao primeiro plano para narrar a história de encontros — e principalmente de desencontos — mais uma vez passada em Brasília, cidade eleita pelo escritor e diplomata para cenário dos romances. O primeiro foi Ideias para onde passar o fim do mundo. “Imaginei que aquele romance seria uma espécie de introdução a vários outros, que viriam a ser narrados da perspectiva de cada um de seus principais personagens”, diz o Cônsul-Geral em Chicago em entrevista ao Correio. Aquele era o primeiro do que seria uma trilogia, completa com Samba-Enredo e As cinco estações do amor — este último foi lançado em março nos EUA pela Host Publications com o título de The five seasons of love. Entretanto, ao terminar a trilogia, e depois de tantos personagens femininos, Almino se viu estimulado “a trazer ao primeiro plano da narrativa um personagem masculino que estivera presente, como personagem secundário, em toda a trilogia”. Daí surgiu O livro das emoções, a respeito do qual concedeu a entrevista a seguir.

O fotógrafo sem visão mira a superfície das coisas e pessoas mais do que o interior, inclusive o próprio. Quanto há de verdade nisso? De onde veio a ideia para fazer o livro? Você também é fotógrafo, o que leva a especular em analogias…
É a partir da lembrança — e sobretudo da lembrança de imagens fotográficas — que o personagem compõe seu Livro das emoções. O entrecruzamento entre visualidade e memória pontua todo o texto e é a principal matéria de sua dimensão reflexiva. Para aquele personagem, de certa forma, viver era ver, e agora é lembrar. A reconstrução da visualidade pela lembrança é uma maneira de recuperação da vida. Mas o livro é sobretudo feito de elipses, de fotos não tiradas, imperfeitas, perdidas, desfocadas, mal enquadradas, que sempre apontam para outra imagem, que se torna mais visível no escuro, na cegueira. É nesta outra imagem, mais do que naquela que lhe serve de referência, que reside a emoção.

No processo de composição deste livro, você tinha tudo planejado ou foi construindo à medida que escrevia?
Tenho trabalhado de duas formas aparentemente contraditórias: tenho um plano geral e estou sempre disposto a modificá-lo, radicalmente se for preciso, à medida que escrevo. Quando chego ao final do processo, às vezes terá sobrado pouco da ideia original. Levei sete anos para escrever O livro das emoções, por coincidência o mesmo tempo que levei para escrever cada um de meus outros romances.

De onde surgiu a ideia do personagem do fotógrafo cego a rememorar amores perdidos, mulheres-triângulos, imagens do passado?
A fotografia é para mim uma paixão antiga, e há muito pensava em enxertar numa obra de ficção uma reflexão sobre a fotografia, o contraste entre a cegueira e a imagem fotográfica me ajudando a criar camadas inusitadas de interpretação. Para isso, nada melhor do que escrever da perspectiva de um fotógrafo, personagem meu, que já estava relativamente bem desenvolvido nos livros anteriores. Ele foi o responsável pela imagem que dá origem a Ideias para onde pasar o fim do mundo. Sua personalidade e o tipo de relação que estabelece com as mulheres — várias delas personagens de livros anteriores, como Berenice, Joana e Ana Kauman — já estavam definidos também nos romances anteriores. Cabia reordenar esse material, mudar os tempos da narrativa e arquitetar o romance como se fosse um álbum de retratos, o que exigiu de mim um paciente trabalho artesanal.

Brasília continua sua referência. Entretanto, a cidade ocupa um espaço que parece ao mesmo tempo central e periférico: a trama poderia estar ambientada em Chicago ou São Paulo, a cidade parece apenas um detalhe. Ou não: o detalhe da cidade conforma e contorna os personagens. Como anda sua relação pessoal com Brasília?
Por causa de minha vida cigana, Brasília foi a cidade onde mais vivi depois de minha cidade natal, Mossoró, no Rio Grande do Norte. Da próxima vez que eu voltar a Brasília para morar, é provável que as duas empatem. Foram quatro as minhas passagens pela cidade, onde morei pela última vez entre 2001 e 2004. Essa poderia ser uma das razões para fazer de Brasília cenário e personagem de meus romances. Mas é verdade que, além de ser uma cidade onde vivi, Brasília na minha literatura é também mito, ideia, projeto e metáfora de Brasil, um Brasil de muitos brasis. E você tem razão: acredito no caráter universal da literatura e acho que podem ser mais próximas uma da outra histórias que se passam respectivamente em São Paulo e em Nova York, do que duas que se passam numa mesma cidade, seja ela São Paulo ou Nova York.Ou seja, uma cidade não é suficiente para definir uma literatura. Minhas histórias poderiam por certo se situar noutros lugares, mas Brasília lhes dá uma cor particular, me ajuda a fugir dos estereótipos e a tratar de temas que me são caros, como o novo, a pós-utopia e os processos de desmodernização.

Como você organizou os tempos da narrativa? Na orelha do livro, João Gilberto Noll fala em quebra-cabeças que remetem a uma melancolia, a vazios na trama que parecem indicar, de novo, os vazios de Brasília. É isso mesmo?
É uma observação pertinente e perspicaz de João Gilberto Noll. O tema do vazio — assim como o do instante — é recorrente em minha literatura e está presente no Livro das emoções. Brasília, seja como utopia não-realizada, seja como cidade de história recente, pode servir de referência para enriquecer esse tema. Quanto aos tempos da narrativa, cuidei sobretudo para que a sobreposição de um tempo presente, que se faz no futuro, ou seja, em 2022, a um tempo passado, que se faz no presente, ou seja, de 2001 à atualidade, não fosse percebida como complexa. Foi preciso trabalhar simultaneamente nos dois registros, adequando um ao outro, para encontrar a dicção certa de cada um e também para construir uma trama que despertasse curiosidade.

Será que O livro das emoções vai virar uma peça de quebra-cabeças num jogo de armar ainda mais demorado? Outros livros virão e o quarteto pode virar quinteto, ou sexteto…?
Há alguns personagens insistentes, que batem à minha porta de madrugada pedindo para regressarem à história. É possível que eu acabe cedendo. Confesso que tenho anotações para um quinto romance. Mas a distância entre elas e um livro pode ser de vários anos. Na verdade, se delas vai mesmo surgir um livro ainda não sei.