[:pt]Entrevista João Almino, Brasília como espaço de ficção [:en]Interview João Almino, Brasília as fictional space[:es]Entrevista João Almino, Brasília como espacio de ficción[:fr]Entrevue João Almino, Brasília comme espace de fiction[:]

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[:pt]Caderno PENSAR, CORREIO BRAZILIENSE. Brasília, sábado, 8 de outubro de 2016.
João Almino fala da conexão com a capital modernista
Escritor potiguar é finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, com Enigmas da primavera

PENSAR, entrevista JOÃO ALMINO

Finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, com ENIGMAS DA PRIMAVERA, escritor potiguar fala da conexão com a capital modernista

BRASÍLIA COMO ESPAÇO DE FICÇÃO

SEVERINO FRANCISCO

Embora a vida de diplomata o empurre para destinos erráticos, Brasília é uma presença constante na ficção de João Almino, desde o primeiro livro, Ideias para onde passar o fim do mundo, passando por Cidade Livre, até o último, Enigmas da primavera, protagonizado por um jovem conectado com as redes sociais, com nostalgia dos tempos rebeldes vividos pelos avós. De Brasília, ele parte rumo à Espanha para viver aventuras e desventuras. Enigmas da primaveras é um dos 10 finalistas do Prêmio São Paulo de Literatura, finalista do Prêmio Rio e semifinalista do Prêmio Oceanos. Almino viveu em 14 cidades. Mossoró, no Rio Grande do Norte, onde nasceu, e Brasília são as cidades onde morou mais tempo. Mas é o caráter experimental, a dimensão mitológica, as contradições sociais e a riqueza humana que provocaram Almino a projetar as suas ficções no cenário modernista de Brasília. Almino está morando em Brasília desde o ano passado e um dos seus prazeres, na cidade de céu aberto, é fotografar o chão: “É algo lúdico e despretensioso, mas permite a descoberta e a reflexão”, enfatiza o escritor. Nesta entrevista, Almino fala sobre a ligação com Brasília, a conexão com as questões universais e contemporâneas, os enigmas da primavera árabe e as inquietações de ficcionista.

“Na época em que comecei a escrever ficção, achava que a literatura precisava se renovar. Situas a minha ficção em Brasília me daria mais liberdade para experimentar”.

“Em Brasília, convivem tendências de modernização e de desmodernização.”

Como é a sua relação com Brasília e por que ela está tão presente em sua ficção?
Na verdade, a cidade está presente em todos os meus romances, inclusive no mais recente, Enigmas da primavera, mais da metade se passa em Brasília. Primeiro, é a cidade onde vivi por mais tempo, depois da minha cidade natal, Mossoró, onde morei durante 12 anos. Estou completando também 12 de Brasília. Fora essas duas, vivi sempre por tempos menores nas 14 outras cidades em que residi.

Mas, além do tempo, que outras razões pesam na escolha por Brasília para a ficção?
Eu achava que situando as histórias em Brasília não perderia nada e ganharia algumas coisas. Poderia situar no Nordeste, onde aproveitaria meu conhecimento de lá. Mas em Brasília, não perco nada disso, pois a cidade é o encontro de culturas brasileiras, eu posso trabalhar com o encontro dos vários brasis.

Como lida com o fato da cidade estar envolvida pela aura modernista?
É outro aspecto de Brasília que sempre me atraiu. A cidade tem uma dimensão simbólica muito forte e eu posso contrastar com a que vai surgindo espontaneamente. Brasília é um projeto moderno que precede a Independência do Brasil e continua vivo. É uma ideia de utopia e, por isso, é tão interesse o contraponto com a Brasília que surge dos arredores. É um plano quase que matemático, mas que se mistura e contrasta com o que desponta nas bordas.

Como surgiu a ideia de representar Brasília em sua ficção?
Na época em que comecei a escrever ficção achava que a literatura precisava se renovar. Nos anos de chumbo do regime militar, havia uma literatura da urgência, que, muitas vezes, substituía os jornais censurados. Na redemocratização, eu tinha de partir para algo de que eu não sabia qual seria o destino, que eu não sabia onde daria. Situar a minha ficção em Brasília me daria mais liberdade para experimentar. Se eu a situasse no Nordeste, haveria o risco de me encaixar em uma tradição literária muito forte, que admiro. Fui leitor de Graciliano Ramos muito jovem. Poderia também situar no Rio ou em São Paulo. Mas eu precisava escapar dessas armadilhas. Brasília, obviamente, já tinha alguma produção, mas era uma cidade nova.

O que move a sua ficção?
Não é só teatro ou o espaço, mas principalmente os personagens. Brasília tem esse lado simbólico; no entanto, ao mesmo tempo, é uma cidade como outra qualquer. O interessante de Brasília é que ela é singular como nenhuma outra e semelhante a qualquer outra. Traz em si os dramas humanos, amores e alegrias comuns a qualquer outra cidade. Eu diria que o mais importante é a construção dos personagens, suas emoções, seus conflitos. Independentemente de onde se situam, o importante é criar histórias que coloquem as pessoas em confronto umas com as outras. Neste sentido, não existe uma literatura de Brasília, de São Paulo ou do Rio de Janeiro. É possível haver literaturas semelhantes em Brasília e em Nova York.

E, neste contexto, como situar Enigmas da primavera?
O livro começou sendo construído em torno de um personagem jovem de 20 anos, um pouco perdido em um mundo de incertezas, ligado às redes sociais. Vem de uma família disfuncional. É uma pessoa antissocial, mas, curiosamente, muito ligado nas redes, sempre com um iphone ou Ipad. Foi criado por um avô paterno, em Brasília. O pai morreu por overdose. Este avô é ateu, foi engajado na luta contra a ditadura. O outro avô foi jornalista, cobriu a guerra do Líbano e, naquela altura, conheceu sua futura mulher, libanesa e muçulmana. Há um momento em que o personagem central se sente muito incomodado com a passividade dos jovens e com sua própria passividade. Tem nostalgia de um tempo que não viveu. Houve relatos de uma de suas avós sobre as revoltas de maio de 1968. Além do mais, não consegue se engajar em nada que seja importante. Uma parte da trama é amorosa, baseada em uma lenda árabe, que eu recrio livremente, para inventar uma história de amor impossível entre ele e uma mulher casada mais velha. O jovem é acusado de assassinar o marido.

Mas a trama tem uma dimensão transnacional, pois de Brasília se desloca para a Espanha e para o Islã…
A história do jovem permite trazer para o livro essas questões e resgatar uma história da Espanha centrada na ocupação árabe da península ibérica. O jovem sai do Brasil com destino à Espanha com duas amigas, uma delas muito católica, para participar em Madri da Jornada Mundial da Juventude. Porque a Espanha acrescenta algo ao romance. Ocorrem as manifestações dos indignados. E, neste período que o romance vai cobrir, explodem rebeliões na Espanha, no Chile e na Turquia. É tempo das primaveras árabes. Apesar de ser criado sem religião, quer ter alguma experiência religiosa e se interessa muito pelo Islã. Quer pesquisar a tradição da tolerância que vem do século 8. Uma das preocupações principais que deveríamos ter é com o surgimento de uma ideologia totalitária dentro de grupos do Islã. O nazismo no século 20 não é algo que interessa apenas à Alemanha. Essa nova ideologia totalitária deve interessar ao mundo todo.

Qual a conexão com as ideologias dos movimentos radicais fundamentados na cultura islâmica?
Os movimentos radicais fazem uma leitura equivocada dos livros do Islã, fora da melhor tradição e como se estivessem voltando às raízes. Só poderão ser vencidos quando no âmbito do próprio Islã perca a força essa ideologia. Não será no plano das armas ou da política… O que não é impossível, pois essa interpretação conflita com a tradição de tolerância do Islã e com a leitura do Corão. O Corão se referem quatro vezes a Jirad. E nenhuma das vezes está associada à guerra santa, mas sim à luta espiritual.

Brasília está presente na sua próxima ficção?
Como ocorre em ENIGMAS DA PRIMAVERA, a próxima ficção começa e termina em Brasília. Em ENIGMAS DA PRIMAVERA, Brasília ocupa mais de metade do livro. A maior parte da história do novo romance se passa no Nordeste do Brasil.

Brasília é pouco representada na ficção. Os escritores ainda não perceberam que Brasília é o Brasil com todas as contradições sociais dramáticas?
Com o tempo será inevitável, a literatura também acompanha o movimento do país. Brasília é a terceira cidade do país. É o centro político, negativo ou não. A cidade é uma referência, e isso vai se refletir na literatura. A densidade, o encontro de todas as ondas de migrantes, as próprias cidades satélites terão as suas formas de expressão. Tudo isso é material para a literatura. E há o fato de já haver uma geração nascida em Brasília. Sempre achei curioso o espanto das pessoas fora de Brasília pelo fato de eu situar a minha ficção na capital do país. Se fosse no Rio ou em São Paulo, eles achariam isso normal. Eles perguntam se eu trato da podridão do poder. É tema válido, mas Brasília é muito mais do que isso.
[:en]Caderno PENSAR, CORREIO BRAZILIENSE. Brasília, sábado, 8 de outubro de 2016.
João Almino fala da conexão com a capital modernista
Escritor potiguar é finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, com Enigmas da primavera

PENSAR, entrevista JOÃO ALMINO

Finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, com ENIGMAS DA PRIMAVERA, escritor potiguar fala da conexão com a capital modernista

BRASÍLIA COMO ESPAÇO DE FICÇÃO

SEVERINO FRANCISCO

Embora a vida de diplomata o empurre para destinos erráticos, Brasília é uma presença constante na ficção de João Almino, desde o primeiro livro, Ideias para onde passar o fim do mundo, passando por Cidade Livre, até o último, Enigmas da primavera, protagonizado por um jovem conectado com as redes sociais, com nostalgia dos tempos rebeldes vividos pelos avós. De Brasília, ele parte rumo à Espanha para viver aventuras e desventuras. Enigmas da primaveras é um dos 10 finalistas do Prêmio São Paulo de Literatura, finalista do Prêmio Rio e semifinalista do Prêmio Oceanos. Almino viveu em 14 cidades. Mossoró, no Rio Grande do Norte, onde nasceu, e Brasília são as cidades onde morou mais tempo. Mas é o caráter experimental, a dimensão mitológica, as contradições sociais e a riqueza humana que provocaram Almino a projetar as suas ficções no cenário modernista de Brasília. Almino está morando em Brasília desde o ano passado e um dos seus prazeres, na cidade de céu aberto, é fotografar o chão: “É algo lúdico e despretensioso, mas permite a descoberta e a reflexão”, enfatiza o escritor. Nesta entrevista, Almino fala sobre a ligação com Brasília, a conexão com as questões universais e contemporâneas, os enigmas da primavera árabe e as inquietações de ficcionista.

“Na época em que comecei a escrever ficção, achava que a literatura precisava se renovar. Situas a minha ficção em Brasília me daria mais liberdade para experimentar”.

“Em Brasília, convivem tendências de modernização e de desmodernização.”

Como é a sua relação com Brasília e por que ela está tão presente em sua ficção?
Na verdade, a cidade está presente em todos os meus romances, inclusive no mais recente, Enigmas da primavera, mais da metade se passa em Brasília. Primeiro, é a cidade onde vivi por mais tempo, depois da minha cidade natal, Mossoró, onde morei durante 12 anos. Estou completando também 12 de Brasília. Fora essas duas, vivi sempre por tempos menores nas 14 outras cidades em que residi.

Mas, além do tempo, que outras razões pesam na escolha por Brasília para a ficção?
Eu achava que situando as histórias em Brasília não perderia nada e ganharia algumas coisas. Poderia situar no Nordeste, onde aproveitaria meu conhecimento de lá. Mas em Brasília, não perco nada disso, pois a cidade é o encontro de culturas brasileiras, eu posso trabalhar com o encontro dos vários brasis.

Como lida com o fato da cidade estar envolvida pela aura modernista?
É outro aspecto de Brasília que sempre me atraiu. A cidade tem uma dimensão simbólica muito forte e eu posso contrastar com a que vai surgindo espontaneamente. Brasília é um projeto moderno que precede a Independência do Brasil e continua vivo. É uma ideia de utopia e, por isso, é tão interesse o contraponto com a Brasília que surge dos arredores. É um plano quase que matemático, mas que se mistura e contrasta com o que desponta nas bordas.

Como surgiu a ideia de representar Brasília em sua ficção?
Na época em que comecei a escrever ficção achava que a literatura precisava se renovar. Nos anos de chumbo do regime militar, havia uma literatura da urgência, que, muitas vezes, substituía os jornais censurados. Na redemocratização, eu tinha de partir para algo de que eu não sabia qual seria o destino, que eu não sabia onde daria. Situar a minha ficção em Brasília me daria mais liberdade para experimentar. Se eu a situasse no Nordeste, haveria o risco de me encaixar em uma tradição literária muito forte, que admiro. Fui leitor de Graciliano Ramos muito jovem. Poderia também situar no Rio ou em São Paulo. Mas eu precisava escapar dessas armadilhas. Brasília, obviamente, já tinha alguma produção, mas era uma cidade nova.

O que move a sua ficção?
Não é só teatro ou o espaço, mas principalmente os personagens. Brasília tem esse lado simbólico; no entanto, ao mesmo tempo, é uma cidade como outra qualquer. O interessante de Brasília é que ela é singular como nenhuma outra e semelhante a qualquer outra. Traz em si os dramas humanos, amores e alegrias comuns a qualquer outra cidade. Eu diria que o mais importante é a construção dos personagens, suas emoções, seus conflitos. Independentemente de onde se situam, o importante é criar histórias que coloquem as pessoas em confronto umas com as outras. Neste sentido, não existe uma literatura de Brasília, de São Paulo ou do Rio de Janeiro. É possível haver literaturas semelhantes em Brasília e em Nova York.

E, neste contexto, como situar Enigmas da primavera?
O livro começou sendo construído em torno de um personagem jovem de 20 anos, um pouco perdido em um mundo de incertezas, ligado às redes sociais. Vem de uma família disfuncional. É uma pessoa antissocial, mas, curiosamente, muito ligado nas redes, sempre com um iphone ou Ipad. Foi criado por um avô paterno, em Brasília. O pai morreu por overdose. Este avô é ateu, foi engajado na luta contra a ditadura. O outro avô foi jornalista, cobriu a guerra do Líbano e, naquela altura, conheceu sua futura mulher, libanesa e muçulmana. Há um momento em que o personagem central se sente muito incomodado com a passividade dos jovens e com sua própria passividade. Tem nostalgia de um tempo que não viveu. Houve relatos de uma de suas avós sobre as revoltas de maio de 1968. Além do mais, não consegue se engajar em nada que seja importante. Uma parte da trama é amorosa, baseada em uma lenda árabe, que eu recrio livremente, para inventar uma história de amor impossível entre ele e uma mulher casada mais velha. O jovem é acusado de assassinar o marido.

Mas a trama tem uma dimensão transnacional, pois de Brasília se desloca para a Espanha e para o Islã…
A história do jovem permite trazer para o livro essas questões e resgatar uma história da Espanha centrada na ocupação árabe da península ibérica. O jovem sai do Brasil com destino à Espanha com duas amigas, uma delas muito católica, para participar em Madri da Jornada Mundial da Juventude. Porque a Espanha acrescenta algo ao romance. Ocorrem as manifestações dos indignados. E, neste período que o romance vai cobrir, explodem rebeliões na Espanha, no Chile e na Turquia. É tempo das primaveras árabes. Apesar de ser criado sem religião, quer ter alguma experiência religiosa e se interessa muito pelo Islã. Quer pesquisar a tradição da tolerância que vem do século 8. Uma das preocupações principais que deveríamos ter é com o surgimento de uma ideologia totalitária dentro de grupos do Islã. O nazismo no século 20 não é algo que interessa apenas à Alemanha. Essa nova ideologia totalitária deve interessar ao mundo todo.

Qual a conexão com as ideologias dos movimentos radicais fundamentados na cultura islâmica?
Os movimentos radicais fazem uma leitura equivocada dos livros do Islã, fora da melhor tradição e como se estivessem voltando às raízes. Só poderão ser vencidos quando no âmbito do próprio Islã perca a força essa ideologia. Não será no plano das armas ou da política… O que não é impossível, pois essa interpretação conflita com a tradição de tolerância do Islã e com a leitura do Corão. O Corão se referem quatro vezes a Jirad. E nenhuma das vezes está associada à guerra santa, mas sim à luta espiritual.

Brasília está presente na sua próxima ficção?
Como ocorre em ENIGMAS DA PRIMAVERA, a próxima ficção começa e termina em Brasília. Em ENIGMAS DA PRIMAVERA, Brasília ocupa mais de metade do livro. A maior parte da história do novo romance se passa no Nordeste do Brasil.

Brasília é pouco representada na ficção. Os escritores ainda não perceberam que Brasília é o Brasil com todas as contradições sociais dramáticas?
Com o tempo será inevitável, a literatura também acompanha o movimento do país. Brasília é a terceira cidade do país. É o centro político, negativo ou não. A cidade é uma referência, e isso vai se refletir na literatura. A densidade, o encontro de todas as ondas de migrantes, as próprias cidades satélites terão as suas formas de expressão. Tudo isso é material para a literatura. E há o fato de já haver uma geração nascida em Brasília. Sempre achei curioso o espanto das pessoas fora de Brasília pelo fato de eu situar a minha ficção na capital do país. Se fosse no Rio ou em São Paulo, eles achariam isso normal. Eles perguntam se eu trato da podridão do poder. É tema válido, mas Brasília é muito mais do que isso.[:es]Caderno PENSAR, CORREIO BRAZILIENSE. Brasília, sábado, 8 de outubro de 2016.
João Almino fala da conexão com a capital modernista
Escritor potiguar é finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, com Enigmas da primavera

PENSAR, entrevista JOÃO ALMINO

Finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, com ENIGMAS DA PRIMAVERA, escritor potiguar fala da conexão com a capital modernista

BRASÍLIA COMO ESPAÇO DE FICÇÃO

SEVERINO FRANCISCO

Embora a vida de diplomata o empurre para destinos erráticos, Brasília é uma presença constante na ficção de João Almino, desde o primeiro livro, Ideias para onde passar o fim do mundo, passando por Cidade Livre, até o último, Enigmas da primavera, protagonizado por um jovem conectado com as redes sociais, com nostalgia dos tempos rebeldes vividos pelos avós. De Brasília, ele parte rumo à Espanha para viver aventuras e desventuras. Enigmas da primaveras é um dos 10 finalistas do Prêmio São Paulo de Literatura, finalista do Prêmio Rio e semifinalista do Prêmio Oceanos. Almino viveu em 14 cidades. Mossoró, no Rio Grande do Norte, onde nasceu, e Brasília são as cidades onde morou mais tempo. Mas é o caráter experimental, a dimensão mitológica, as contradições sociais e a riqueza humana que provocaram Almino a projetar as suas ficções no cenário modernista de Brasília. Almino está morando em Brasília desde o ano passado e um dos seus prazeres, na cidade de céu aberto, é fotografar o chão: “É algo lúdico e despretensioso, mas permite a descoberta e a reflexão”, enfatiza o escritor. Nesta entrevista, Almino fala sobre a ligação com Brasília, a conexão com as questões universais e contemporâneas, os enigmas da primavera árabe e as inquietações de ficcionista.

“Na época em que comecei a escrever ficção, achava que a literatura precisava se renovar. Situas a minha ficção em Brasília me daria mais liberdade para experimentar”.

“Em Brasília, convivem tendências de modernização e de desmodernização.”

Como é a sua relação com Brasília e por que ela está tão presente em sua ficção?
Na verdade, a cidade está presente em todos os meus romances, inclusive no mais recente, Enigmas da primavera, mais da metade se passa em Brasília. Primeiro, é a cidade onde vivi por mais tempo, depois da minha cidade natal, Mossoró, onde morei durante 12 anos. Estou completando também 12 de Brasília. Fora essas duas, vivi sempre por tempos menores nas 14 outras cidades em que residi.

Mas, além do tempo, que outras razões pesam na escolha por Brasília para a ficção?
Eu achava que situando as histórias em Brasília não perderia nada e ganharia algumas coisas. Poderia situar no Nordeste, onde aproveitaria meu conhecimento de lá. Mas em Brasília, não perco nada disso, pois a cidade é o encontro de culturas brasileiras, eu posso trabalhar com o encontro dos vários brasis.

Como lida com o fato da cidade estar envolvida pela aura modernista?
É outro aspecto de Brasília que sempre me atraiu. A cidade tem uma dimensão simbólica muito forte e eu posso contrastar com a que vai surgindo espontaneamente. Brasília é um projeto moderno que precede a Independência do Brasil e continua vivo. É uma ideia de utopia e, por isso, é tão interesse o contraponto com a Brasília que surge dos arredores. É um plano quase que matemático, mas que se mistura e contrasta com o que desponta nas bordas.

Como surgiu a ideia de representar Brasília em sua ficção?
Na época em que comecei a escrever ficção achava que a literatura precisava se renovar. Nos anos de chumbo do regime militar, havia uma literatura da urgência, que, muitas vezes, substituía os jornais censurados. Na redemocratização, eu tinha de partir para algo de que eu não sabia qual seria o destino, que eu não sabia onde daria. Situar a minha ficção em Brasília me daria mais liberdade para experimentar. Se eu a situasse no Nordeste, haveria o risco de me encaixar em uma tradição literária muito forte, que admiro. Fui leitor de Graciliano Ramos muito jovem. Poderia também situar no Rio ou em São Paulo. Mas eu precisava escapar dessas armadilhas. Brasília, obviamente, já tinha alguma produção, mas era uma cidade nova.

O que move a sua ficção?
Não é só teatro ou o espaço, mas principalmente os personagens. Brasília tem esse lado simbólico; no entanto, ao mesmo tempo, é uma cidade como outra qualquer. O interessante de Brasília é que ela é singular como nenhuma outra e semelhante a qualquer outra. Traz em si os dramas humanos, amores e alegrias comuns a qualquer outra cidade. Eu diria que o mais importante é a construção dos personagens, suas emoções, seus conflitos. Independentemente de onde se situam, o importante é criar histórias que coloquem as pessoas em confronto umas com as outras. Neste sentido, não existe uma literatura de Brasília, de São Paulo ou do Rio de Janeiro. É possível haver literaturas semelhantes em Brasília e em Nova York.

E, neste contexto, como situar Enigmas da primavera?
O livro começou sendo construído em torno de um personagem jovem de 20 anos, um pouco perdido em um mundo de incertezas, ligado às redes sociais. Vem de uma família disfuncional. É uma pessoa antissocial, mas, curiosamente, muito ligado nas redes, sempre com um iphone ou Ipad. Foi criado por um avô paterno, em Brasília. O pai morreu por overdose. Este avô é ateu, foi engajado na luta contra a ditadura. O outro avô foi jornalista, cobriu a guerra do Líbano e, naquela altura, conheceu sua futura mulher, libanesa e muçulmana. Há um momento em que o personagem central se sente muito incomodado com a passividade dos jovens e com sua própria passividade. Tem nostalgia de um tempo que não viveu. Houve relatos de uma de suas avós sobre as revoltas de maio de 1968. Além do mais, não consegue se engajar em nada que seja importante. Uma parte da trama é amorosa, baseada em uma lenda árabe, que eu recrio livremente, para inventar uma história de amor impossível entre ele e uma mulher casada mais velha. O jovem é acusado de assassinar o marido.

Mas a trama tem uma dimensão transnacional, pois de Brasília se desloca para a Espanha e para o Islã…
A história do jovem permite trazer para o livro essas questões e resgatar uma história da Espanha centrada na ocupação árabe da península ibérica. O jovem sai do Brasil com destino à Espanha com duas amigas, uma delas muito católica, para participar em Madri da Jornada Mundial da Juventude. Porque a Espanha acrescenta algo ao romance. Ocorrem as manifestações dos indignados. E, neste período que o romance vai cobrir, explodem rebeliões na Espanha, no Chile e na Turquia. É tempo das primaveras árabes. Apesar de ser criado sem religião, quer ter alguma experiência religiosa e se interessa muito pelo Islã. Quer pesquisar a tradição da tolerância que vem do século 8. Uma das preocupações principais que deveríamos ter é com o surgimento de uma ideologia totalitária dentro de grupos do Islã. O nazismo no século 20 não é algo que interessa apenas à Alemanha. Essa nova ideologia totalitária deve interessar ao mundo todo.

Qual a conexão com as ideologias dos movimentos radicais fundamentados na cultura islâmica?
Os movimentos radicais fazem uma leitura equivocada dos livros do Islã, fora da melhor tradição e como se estivessem voltando às raízes. Só poderão ser vencidos quando no âmbito do próprio Islã perca a força essa ideologia. Não será no plano das armas ou da política… O que não é impossível, pois essa interpretação conflita com a tradição de tolerância do Islã e com a leitura do Corão. O Corão se referem quatro vezes a Jirad. E nenhuma das vezes está associada à guerra santa, mas sim à luta espiritual.

Brasília está presente na sua próxima ficção?
Como ocorre em ENIGMAS DA PRIMAVERA, a próxima ficção começa e termina em Brasília. Em ENIGMAS DA PRIMAVERA, Brasília ocupa mais de metade do livro. A maior parte da história do novo romance se passa no Nordeste do Brasil.

Brasília é pouco representada na ficção. Os escritores ainda não perceberam que Brasília é o Brasil com todas as contradições sociais dramáticas?
Com o tempo será inevitável, a literatura também acompanha o movimento do país. Brasília é a terceira cidade do país. É o centro político, negativo ou não. A cidade é uma referência, e isso vai se refletir na literatura. A densidade, o encontro de todas as ondas de migrantes, as próprias cidades satélites terão as suas formas de expressão. Tudo isso é material para a literatura. E há o fato de já haver uma geração nascida em Brasília. Sempre achei curioso o espanto das pessoas fora de Brasília pelo fato de eu situar a minha ficção na capital do país. Se fosse no Rio ou em São Paulo, eles achariam isso normal. Eles perguntam se eu trato da podridão do poder. É tema válido, mas Brasília é muito mais do que isso.[:fr]Caderno PENSAR, CORREIO BRAZILIENSE. Brasília, sábado, 8 de outubro de 2016.
João Almino fala da conexão com a capital modernista
Escritor potiguar é finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, com Enigmas da primavera

PENSAR, entrevista JOÃO ALMINO

Finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, com ENIGMAS DA PRIMAVERA, escritor potiguar fala da conexão com a capital modernista

BRASÍLIA COMO ESPAÇO DE FICÇÃO

SEVERINO FRANCISCO

Embora a vida de diplomata o empurre para destinos erráticos, Brasília é uma presença constante na ficção de João Almino, desde o primeiro livro, Ideias para onde passar o fim do mundo, passando por Cidade Livre, até o último, Enigmas da primavera, protagonizado por um jovem conectado com as redes sociais, com nostalgia dos tempos rebeldes vividos pelos avós. De Brasília, ele parte rumo à Espanha para viver aventuras e desventuras. Enigmas da primaveras é um dos 10 finalistas do Prêmio São Paulo de Literatura, finalista do Prêmio Rio e semifinalista do Prêmio Oceanos. Almino viveu em 14 cidades. Mossoró, no Rio Grande do Norte, onde nasceu, e Brasília são as cidades onde morou mais tempo. Mas é o caráter experimental, a dimensão mitológica, as contradições sociais e a riqueza humana que provocaram Almino a projetar as suas ficções no cenário modernista de Brasília. Almino está morando em Brasília desde o ano passado e um dos seus prazeres, na cidade de céu aberto, é fotografar o chão: “É algo lúdico e despretensioso, mas permite a descoberta e a reflexão”, enfatiza o escritor. Nesta entrevista, Almino fala sobre a ligação com Brasília, a conexão com as questões universais e contemporâneas, os enigmas da primavera árabe e as inquietações de ficcionista.

“Na época em que comecei a escrever ficção, achava que a literatura precisava se renovar. Situas a minha ficção em Brasília me daria mais liberdade para experimentar”.

“Em Brasília, convivem tendências de modernização e de desmodernização.”

Como é a sua relação com Brasília e por que ela está tão presente em sua ficção?
Na verdade, a cidade está presente em todos os meus romances, inclusive no mais recente, Enigmas da primavera, mais da metade se passa em Brasília. Primeiro, é a cidade onde vivi por mais tempo, depois da minha cidade natal, Mossoró, onde morei durante 12 anos. Estou completando também 12 de Brasília. Fora essas duas, vivi sempre por tempos menores nas 14 outras cidades em que residi.

Mas, além do tempo, que outras razões pesam na escolha por Brasília para a ficção?
Eu achava que situando as histórias em Brasília não perderia nada e ganharia algumas coisas. Poderia situar no Nordeste, onde aproveitaria meu conhecimento de lá. Mas em Brasília, não perco nada disso, pois a cidade é o encontro de culturas brasileiras, eu posso trabalhar com o encontro dos vários brasis.

Como lida com o fato da cidade estar envolvida pela aura modernista?
É outro aspecto de Brasília que sempre me atraiu. A cidade tem uma dimensão simbólica muito forte e eu posso contrastar com a que vai surgindo espontaneamente. Brasília é um projeto moderno que precede a Independência do Brasil e continua vivo. É uma ideia de utopia e, por isso, é tão interesse o contraponto com a Brasília que surge dos arredores. É um plano quase que matemático, mas que se mistura e contrasta com o que desponta nas bordas.

Como surgiu a ideia de representar Brasília em sua ficção?
Na época em que comecei a escrever ficção achava que a literatura precisava se renovar. Nos anos de chumbo do regime militar, havia uma literatura da urgência, que, muitas vezes, substituía os jornais censurados. Na redemocratização, eu tinha de partir para algo de que eu não sabia qual seria o destino, que eu não sabia onde daria. Situar a minha ficção em Brasília me daria mais liberdade para experimentar. Se eu a situasse no Nordeste, haveria o risco de me encaixar em uma tradição literária muito forte, que admiro. Fui leitor de Graciliano Ramos muito jovem. Poderia também situar no Rio ou em São Paulo. Mas eu precisava escapar dessas armadilhas. Brasília, obviamente, já tinha alguma produção, mas era uma cidade nova.

O que move a sua ficção?
Não é só teatro ou o espaço, mas principalmente os personagens. Brasília tem esse lado simbólico; no entanto, ao mesmo tempo, é uma cidade como outra qualquer. O interessante de Brasília é que ela é singular como nenhuma outra e semelhante a qualquer outra. Traz em si os dramas humanos, amores e alegrias comuns a qualquer outra cidade. Eu diria que o mais importante é a construção dos personagens, suas emoções, seus conflitos. Independentemente de onde se situam, o importante é criar histórias que coloquem as pessoas em confronto umas com as outras. Neste sentido, não existe uma literatura de Brasília, de São Paulo ou do Rio de Janeiro. É possível haver literaturas semelhantes em Brasília e em Nova York.

E, neste contexto, como situar Enigmas da primavera?
O livro começou sendo construído em torno de um personagem jovem de 20 anos, um pouco perdido em um mundo de incertezas, ligado às redes sociais. Vem de uma família disfuncional. É uma pessoa antissocial, mas, curiosamente, muito ligado nas redes, sempre com um iphone ou Ipad. Foi criado por um avô paterno, em Brasília. O pai morreu por overdose. Este avô é ateu, foi engajado na luta contra a ditadura. O outro avô foi jornalista, cobriu a guerra do Líbano e, naquela altura, conheceu sua futura mulher, libanesa e muçulmana. Há um momento em que o personagem central se sente muito incomodado com a passividade dos jovens e com sua própria passividade. Tem nostalgia de um tempo que não viveu. Houve relatos de uma de suas avós sobre as revoltas de maio de 1968. Além do mais, não consegue se engajar em nada que seja importante. Uma parte da trama é amorosa, baseada em uma lenda árabe, que eu recrio livremente, para inventar uma história de amor impossível entre ele e uma mulher casada mais velha. O jovem é acusado de assassinar o marido.

Mas a trama tem uma dimensão transnacional, pois de Brasília se desloca para a Espanha e para o Islã…
A história do jovem permite trazer para o livro essas questões e resgatar uma história da Espanha centrada na ocupação árabe da península ibérica. O jovem sai do Brasil com destino à Espanha com duas amigas, uma delas muito católica, para participar em Madri da Jornada Mundial da Juventude. Porque a Espanha acrescenta algo ao romance. Ocorrem as manifestações dos indignados. E, neste período que o romance vai cobrir, explodem rebeliões na Espanha, no Chile e na Turquia. É tempo das primaveras árabes. Apesar de ser criado sem religião, quer ter alguma experiência religiosa e se interessa muito pelo Islã. Quer pesquisar a tradição da tolerância que vem do século 8. Uma das preocupações principais que deveríamos ter é com o surgimento de uma ideologia totalitária dentro de grupos do Islã. O nazismo no século 20 não é algo que interessa apenas à Alemanha. Essa nova ideologia totalitária deve interessar ao mundo todo.

Qual a conexão com as ideologias dos movimentos radicais fundamentados na cultura islâmica?
Os movimentos radicais fazem uma leitura equivocada dos livros do Islã, fora da melhor tradição e como se estivessem voltando às raízes. Só poderão ser vencidos quando no âmbito do próprio Islã perca a força essa ideologia. Não será no plano das armas ou da política… O que não é impossível, pois essa interpretação conflita com a tradição de tolerância do Islã e com a leitura do Corão. O Corão se referem quatro vezes a Jirad. E nenhuma das vezes está associada à guerra santa, mas sim à luta espiritual.

Brasília está presente na sua próxima ficção?
Como ocorre em ENIGMAS DA PRIMAVERA, a próxima ficção começa e termina em Brasília. Em ENIGMAS DA PRIMAVERA, Brasília ocupa mais de metade do livro. A maior parte da história do novo romance se passa no Nordeste do Brasil.

Brasília é pouco representada na ficção. Os escritores ainda não perceberam que Brasília é o Brasil com todas as contradições sociais dramáticas?
Com o tempo será inevitável, a literatura também acompanha o movimento do país. Brasília é a terceira cidade do país. É o centro político, negativo ou não. A cidade é uma referência, e isso vai se refletir na literatura. A densidade, o encontro de todas as ondas de migrantes, as próprias cidades satélites terão as suas formas de expressão. Tudo isso é material para a literatura. E há o fato de já haver uma geração nascida em Brasília. Sempre achei curioso o espanto das pessoas fora de Brasília pelo fato de eu situar a minha ficção na capital do país. Se fosse no Rio ou em São Paulo, eles achariam isso normal. Eles perguntam se eu trato da podridão do poder. É tema válido, mas Brasília é muito mais do que isso.[:]