Espaço dos homens estilhaçados – sobre O Livro das Emoções, de João Almino. Caderno 2, O Estado de S. Paulo

/

O Estado de S. Paulo – Caderno2
Domingo, 08 de Fevereiro de 2009

O Livro das Emoções, de João Almino, é romance futurista narrado por um ex-fotógrafo cego e setentão

Eustáquio Gomes

Programado como trilogia, o ciclo de romances que João Almino vem construindo desde 1987, com Ideias para Onde Passar o Fim do Mundo, passando por Samba-Enredo (1994) e As Cinco Estações do Amor (2001), chega ao estado de quarteto com O Livro das Emoções (2008), encerrando (?) com apuro de linguagem e densidade narrativa o primeiro grande painel romanesco fixado no cenário da capital federal.

O cenário brasiliense não é aliás tão relevante em Almino como foi, por exemplo, a paisagem humana do Rio de Janeiro para Marques Rebelo. Será um erro grave de caracterização se a obra de Almino vier a ser tomada no futuro, como já vem ocorrendo, por este aspecto empobrecedor que não faz justiça à universalidade de seus temas. Equivaleria a dizer que O Livro das Emoções é um romance futurista apenas porque o narrador – um ex-fotógrafo setentão cego – escreve suas memórias (intercaladas com o cotidiano factual) no ano 2022.

Assim como a Curitiba de Dalton Trevisan traduz mais que uma metrópole do Sul, uma geografia moral que pode ser encontrada em qualquer parte onde haja sedutores e seduzidos, a Brasília de Almino é o espaço dos desencontros, vazios e fragmentações do homem desterrado – não apenas de sua geografia, mas no interior de si mesmo -, do mesmo modo que a Europa das andanças de W.G. Sebald espelha mais propriamente a alma humana que os palcos de horrores ali tão minuciosamente descritos.

Que Almino tenha feito o “projeto de uma fundação escritural de Brasília”, como ressalta Alcir Pécora, isto é outra coisa. Restringindo-se tal “fundação” ao campo da ficção de cor local, é de justiça lembrar que a ficcionalização da capital já havia sido iniciada antes por Esdras do Nascimento, Herberto Sales e Alan Viggiano, encontrando hoje continuadores em novos ficcionistas como, por exemplo, Margarida Patriota.

Sebald foi aqui lembrado porque, como o Almino de O Livro das Emoções, usa a fotografia como parte integrante da narrativa. Em Sebald, as reproduções fotográficas são uma escora onírica para um texto tão descritivo e minudente quanto o de Flaubert, embora com um fundo metafísico implícito, enquanto em Almino a fotografia é o próprio assunto e inclusive define a estrutura do romance, ainda que permanecendo fora do texto. Tecnicamente, as fotografias servem de respiradouro ao texto compacto de Sebald; em Almino elas são o suporte invisível do texto, transformando-se, à medida que são convocadas, na linguagem da memória fragmentada e entroncando muito claramente na tradição machadiana do Memórias Póstumas, que são ácronas, e mais particularmente no Memorial de Aires, que é um diário cronológico.

O contraponto com um escritor já universal como Sebald não é disparatado porque, trabalhando ambos com os sedimentos da memória (e frequentemente com a desmemória), situam-se em domínios técnicos antípodas, os que ainda hoje predominam: de um lado, a forte tendência da narrativa inconsútil e compacta, de fundo proustiano, que encontrou seu elemento seminal em Thomas Bernhard nas décadas de 1970 e 1980, e que aqui tem seu representante mais notório em João Gilberto Noll; de outro, a escrita fragmentária e codificada que entre nós floresceu esplendidamente com Machado, Oswald de Andrade e mais recentemente com Flávio Moreira da Costa e Ivan Angelo. É uma escrita que prefere comportar-se como se fosse uma antologia de si mesma – como dizia Oswald – dando função aos espaços em branco e operando com transições bruscas capazes de refletir a aceleração do tempo e o despedaçamento do indivíduo na sociedade. Nada de tão novo: Petrônio praticou-a no Satiricon, um livro do início da era cristã.

O que há de novo em O Livro das Emoções é que, entre tantos puzzles perpetrados nos últimos tempos, o de Almino funciona e transcende sua contingência histórica graças a uma linguagem refinada, uma fabulação sempre engenhosa e um estilo que faz bem numa época de indigência da escrita entre nós, sobretudo no romance. Em plena maturidade técnica, ele ainda é bastante jovem para alçar voos em outras direções, talvez até mais altos. Depois do quarteto, o que virá?

Eustáquio Gomes, escritor, é autor, entre outros, de A Febre Amorosa e O Mapa da Austrália

O Estado de S. Paulo – Caderno2
Domingo, 08 de Fevereiro de 2009

O Livro das Emoções, de João Almino, é romance futurista narrado por um ex-fotógrafo cego e setentão

Eustáquio Gomes

Programado como trilogia, o ciclo de romances que João Almino vem construindo desde 1987, com Ideias para Onde Passar o Fim do Mundo, passando por Samba-Enredo (1994) e As Cinco Estações do Amor (2001), chega ao estado de quarteto com O Livro das Emoções (2008), encerrando (?) com apuro de linguagem e densidade narrativa o primeiro grande painel romanesco fixado no cenário da capital federal.

O cenário brasiliense não é aliás tão relevante em Almino como foi, por exemplo, a paisagem humana do Rio de Janeiro para Marques Rebelo. Será um erro grave de caracterização se a obra de Almino vier a ser tomada no futuro, como já vem ocorrendo, por este aspecto empobrecedor que não faz justiça à universalidade de seus temas. Equivaleria a dizer que O Livro das Emoções é um romance futurista apenas porque o narrador – um ex-fotógrafo setentão cego – escreve suas memórias (intercaladas com o cotidiano factual) no ano 2022.

Assim como a Curitiba de Dalton Trevisan traduz mais que uma metrópole do Sul, uma geografia moral que pode ser encontrada em qualquer parte onde haja sedutores e seduzidos, a Brasília de Almino é o espaço dos desencontros, vazios e fragmentações do homem desterrado – não apenas de sua geografia, mas no interior de si mesmo -, do mesmo modo que a Europa das andanças de W.G. Sebald espelha mais propriamente a alma humana que os palcos de horrores ali tão minuciosamente descritos.

Que Almino tenha feito o “projeto de uma fundação escritural de Brasília”, como ressalta Alcir Pécora, isto é outra coisa. Restringindo-se tal “fundação” ao campo da ficção de cor local, é de justiça lembrar que a ficcionalização da capital já havia sido iniciada antes por Esdras do Nascimento, Herberto Sales e Alan Viggiano, encontrando hoje continuadores em novos ficcionistas como, por exemplo, Margarida Patriota.

Sebald foi aqui lembrado porque, como o Almino de O Livro das Emoções, usa a fotografia como parte integrante da narrativa. Em Sebald, as reproduções fotográficas são uma escora onírica para um texto tão descritivo e minudente quanto o de Flaubert, embora com um fundo metafísico implícito, enquanto em Almino a fotografia é o próprio assunto e inclusive define a estrutura do romance, ainda que permanecendo fora do texto. Tecnicamente, as fotografias servem de respiradouro ao texto compacto de Sebald; em Almino elas são o suporte invisível do texto, transformando-se, à medida que são convocadas, na linguagem da memória fragmentada e entroncando muito claramente na tradição machadiana do Memórias Póstumas, que são ácronas, e mais particularmente no Memorial de Aires, que é um diário cronológico.

O contraponto com um escritor já universal como Sebald não é disparatado porque, trabalhando ambos com os sedimentos da memória (e frequentemente com a desmemória), situam-se em domínios técnicos antípodas, os que ainda hoje predominam: de um lado, a forte tendência da narrativa inconsútil e compacta, de fundo proustiano, que encontrou seu elemento seminal em Thomas Bernhard nas décadas de 1970 e 1980, e que aqui tem seu representante mais notório em João Gilberto Noll; de outro, a escrita fragmentária e codificada que entre nós floresceu esplendidamente com Machado, Oswald de Andrade e mais recentemente com Flávio Moreira da Costa e Ivan Angelo. É uma escrita que prefere comportar-se como se fosse uma antologia de si mesma – como dizia Oswald – dando função aos espaços em branco e operando com transições bruscas capazes de refletir a aceleração do tempo e o despedaçamento do indivíduo na sociedade. Nada de tão novo: Petrônio praticou-a no Satiricon, um livro do início da era cristã.

O que há de novo em O Livro das Emoções é que, entre tantos puzzles perpetrados nos últimos tempos, o de Almino funciona e transcende sua contingência histórica graças a uma linguagem refinada, uma fabulação sempre engenhosa e um estilo que faz bem numa época de indigência da escrita entre nós, sobretudo no romance. Em plena maturidade técnica, ele ainda é bastante jovem para alçar voos em outras direções, talvez até mais altos. Depois do quarteto, o que virá?

Eustáquio Gomes, escritor, é autor, entre outros, de A Febre Amorosa e O Mapa da Austrália

O Estado de S. Paulo – Caderno2
Domingo, 08 de Fevereiro de 2009

O Livro das Emoções, de João Almino, é romance futurista narrado por um ex-fotógrafo cego e setentão

Eustáquio Gomes

Programado como trilogia, o ciclo de romances que João Almino vem construindo desde 1987, com Ideias para Onde Passar o Fim do Mundo, passando por Samba-Enredo (1994) e As Cinco Estações do Amor (2001), chega ao estado de quarteto com O Livro das Emoções (2008), encerrando (?) com apuro de linguagem e densidade narrativa o primeiro grande painel romanesco fixado no cenário da capital federal.

O cenário brasiliense não é aliás tão relevante em Almino como foi, por exemplo, a paisagem humana do Rio de Janeiro para Marques Rebelo. Será um erro grave de caracterização se a obra de Almino vier a ser tomada no futuro, como já vem ocorrendo, por este aspecto empobrecedor que não faz justiça à universalidade de seus temas. Equivaleria a dizer que O Livro das Emoções é um romance futurista apenas porque o narrador – um ex-fotógrafo setentão cego – escreve suas memórias (intercaladas com o cotidiano factual) no ano 2022.

Assim como a Curitiba de Dalton Trevisan traduz mais que uma metrópole do Sul, uma geografia moral que pode ser encontrada em qualquer parte onde haja sedutores e seduzidos, a Brasília de Almino é o espaço dos desencontros, vazios e fragmentações do homem desterrado – não apenas de sua geografia, mas no interior de si mesmo -, do mesmo modo que a Europa das andanças de W.G. Sebald espelha mais propriamente a alma humana que os palcos de horrores ali tão minuciosamente descritos.

Que Almino tenha feito o “projeto de uma fundação escritural de Brasília”, como ressalta Alcir Pécora, isto é outra coisa. Restringindo-se tal “fundação” ao campo da ficção de cor local, é de justiça lembrar que a ficcionalização da capital já havia sido iniciada antes por Esdras do Nascimento, Herberto Sales e Alan Viggiano, encontrando hoje continuadores em novos ficcionistas como, por exemplo, Margarida Patriota.

Sebald foi aqui lembrado porque, como o Almino de O Livro das Emoções, usa a fotografia como parte integrante da narrativa. Em Sebald, as reproduções fotográficas são uma escora onírica para um texto tão descritivo e minudente quanto o de Flaubert, embora com um fundo metafísico implícito, enquanto em Almino a fotografia é o próprio assunto e inclusive define a estrutura do romance, ainda que permanecendo fora do texto. Tecnicamente, as fotografias servem de respiradouro ao texto compacto de Sebald; em Almino elas são o suporte invisível do texto, transformando-se, à medida que são convocadas, na linguagem da memória fragmentada e entroncando muito claramente na tradição machadiana do Memórias Póstumas, que são ácronas, e mais particularmente no Memorial de Aires, que é um diário cronológico.

O contraponto com um escritor já universal como Sebald não é disparatado porque, trabalhando ambos com os sedimentos da memória (e frequentemente com a desmemória), situam-se em domínios técnicos antípodas, os que ainda hoje predominam: de um lado, a forte tendência da narrativa inconsútil e compacta, de fundo proustiano, que encontrou seu elemento seminal em Thomas Bernhard nas décadas de 1970 e 1980, e que aqui tem seu representante mais notório em João Gilberto Noll; de outro, a escrita fragmentária e codificada que entre nós floresceu esplendidamente com Machado, Oswald de Andrade e mais recentemente com Flávio Moreira da Costa e Ivan Angelo. É uma escrita que prefere comportar-se como se fosse uma antologia de si mesma – como dizia Oswald – dando função aos espaços em branco e operando com transições bruscas capazes de refletir a aceleração do tempo e o despedaçamento do indivíduo na sociedade. Nada de tão novo: Petrônio praticou-a no Satiricon, um livro do início da era cristã.

O que há de novo em O Livro das Emoções é que, entre tantos puzzles perpetrados nos últimos tempos, o de Almino funciona e transcende sua contingência histórica graças a uma linguagem refinada, uma fabulação sempre engenhosa e um estilo que faz bem numa época de indigência da escrita entre nós, sobretudo no romance. Em plena maturidade técnica, ele ainda é bastante jovem para alçar voos em outras direções, talvez até mais altos. Depois do quarteto, o que virá?

Eustáquio Gomes, escritor, é autor, entre outros, de A Febre Amorosa e O Mapa da Austrália

O Estado de S. Paulo – Caderno2
Domingo, 08 de Fevereiro de 2009

O Livro das Emoções, de João Almino, é romance futurista narrado por um ex-fotógrafo cego e setentão

Eustáquio Gomes

Programado como trilogia, o ciclo de romances que João Almino vem construindo desde 1987, com Ideias para Onde Passar o Fim do Mundo, passando por Samba-Enredo (1994) e As Cinco Estações do Amor (2001), chega ao estado de quarteto com O Livro das Emoções (2008), encerrando (?) com apuro de linguagem e densidade narrativa o primeiro grande painel romanesco fixado no cenário da capital federal.

O cenário brasiliense não é aliás tão relevante em Almino como foi, por exemplo, a paisagem humana do Rio de Janeiro para Marques Rebelo. Será um erro grave de caracterização se a obra de Almino vier a ser tomada no futuro, como já vem ocorrendo, por este aspecto empobrecedor que não faz justiça à universalidade de seus temas. Equivaleria a dizer que O Livro das Emoções é um romance futurista apenas porque o narrador – um ex-fotógrafo setentão cego – escreve suas memórias (intercaladas com o cotidiano factual) no ano 2022.

Assim como a Curitiba de Dalton Trevisan traduz mais que uma metrópole do Sul, uma geografia moral que pode ser encontrada em qualquer parte onde haja sedutores e seduzidos, a Brasília de Almino é o espaço dos desencontros, vazios e fragmentações do homem desterrado – não apenas de sua geografia, mas no interior de si mesmo -, do mesmo modo que a Europa das andanças de W.G. Sebald espelha mais propriamente a alma humana que os palcos de horrores ali tão minuciosamente descritos.

Que Almino tenha feito o “projeto de uma fundação escritural de Brasília”, como ressalta Alcir Pécora, isto é outra coisa. Restringindo-se tal “fundação” ao campo da ficção de cor local, é de justiça lembrar que a ficcionalização da capital já havia sido iniciada antes por Esdras do Nascimento, Herberto Sales e Alan Viggiano, encontrando hoje continuadores em novos ficcionistas como, por exemplo, Margarida Patriota.

Sebald foi aqui lembrado porque, como o Almino de O Livro das Emoções, usa a fotografia como parte integrante da narrativa. Em Sebald, as reproduções fotográficas são uma escora onírica para um texto tão descritivo e minudente quanto o de Flaubert, embora com um fundo metafísico implícito, enquanto em Almino a fotografia é o próprio assunto e inclusive define a estrutura do romance, ainda que permanecendo fora do texto. Tecnicamente, as fotografias servem de respiradouro ao texto compacto de Sebald; em Almino elas são o suporte invisível do texto, transformando-se, à medida que são convocadas, na linguagem da memória fragmentada e entroncando muito claramente na tradição machadiana do Memórias Póstumas, que são ácronas, e mais particularmente no Memorial de Aires, que é um diário cronológico.

O contraponto com um escritor já universal como Sebald não é disparatado porque, trabalhando ambos com os sedimentos da memória (e frequentemente com a desmemória), situam-se em domínios técnicos antípodas, os que ainda hoje predominam: de um lado, a forte tendência da narrativa inconsútil e compacta, de fundo proustiano, que encontrou seu elemento seminal em Thomas Bernhard nas décadas de 1970 e 1980, e que aqui tem seu representante mais notório em João Gilberto Noll; de outro, a escrita fragmentária e codificada que entre nós floresceu esplendidamente com Machado, Oswald de Andrade e mais recentemente com Flávio Moreira da Costa e Ivan Angelo. É uma escrita que prefere comportar-se como se fosse uma antologia de si mesma – como dizia Oswald – dando função aos espaços em branco e operando com transições bruscas capazes de refletir a aceleração do tempo e o despedaçamento do indivíduo na sociedade. Nada de tão novo: Petrônio praticou-a no Satiricon, um livro do início da era cristã.

O que há de novo em O Livro das Emoções é que, entre tantos puzzles perpetrados nos últimos tempos, o de Almino funciona e transcende sua contingência histórica graças a uma linguagem refinada, uma fabulação sempre engenhosa e um estilo que faz bem numa época de indigência da escrita entre nós, sobretudo no romance. Em plena maturidade técnica, ele ainda é bastante jovem para alçar voos em outras direções, talvez até mais altos. Depois do quarteto, o que virá?

Eustáquio Gomes, escritor, é autor, entre outros, de A Febre Amorosa e O Mapa da Austrália