Uma declaração de princípios. João Cezar de Castro Rocha sobre O Livro das Emoções, de João Almino

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Jornal do Brasil, “Idéias & Livros”, sábado, 4 de outubro de 2008

João Almino termina o ‘Quarteto de Brasília’ e elege a palavra narrada como a grande lição

João Cezar de Castro Rocha*

Com seu último romance, e bem ao contrário de certo narrador casmurro, João Almino ata as pontas de sua criação ficcional com rara felicidade. O Quarteto de Brasília iniciou-se com Idéias para onde passar o fim do mundo (1987), e, desde o princípio de sua arquitetura, as obsessões do autor foram apresentadas ao leitor. Em todos os romances destaca-se o projeto de estabelecer um diálogo criativo com as estratégias narrativas do Machado de Assis maduro; diálogo esse associado com uma aguda reflexão sobre a centralidade dos meios audiovisuais na cultura contemporânea. Isso para não mencionar o conteúdo filosófico que se dissemina nos quatro livros.

Mulher digital

No primeiro título do Quarteto, um escritor morto retorna para concluir o roteiro de seu filme e a ação é acionada por uma fotografia da posse do presidente Paulo Antônio Fernandes – figura de proporções míticas na Brasília de João Almino. Em Samba enredo: romance (1994), a trama é literalmente narrada (ou registrada) por um microcomputador, que trata o leitor com piparotes cibernéticos, enquanto descortina o cenário carnavalizado dos bastidores de um crime político, mesclado a escândalo sexual: o seqüestro do presidente negro, Paulo Antônio. Por sua vez, a narradora de As cinco estações do amor (2001), Ana Kaufman, “professora de filosofia e escritora frustrada”, como anunciava o romance anterior, tem ares de uma mescla explosiva. Imagine-se uma mulher da era digital com os dilemas de uma Emma Bovary, porém com o domínio da escrita de um Bento Santiago.

Chegamos, portanto, ao último momento: O livro das emoções. Aqui, as pontas se atam de modo complexo e sutil. Cadu, personagem cuja fotografia despertou a máquina do primeiro romance, agora se transforma no narrador do elo final. Um fotógrafo particularmente sensível à beleza das formas femininas, assume o ar de um narrador bifronte.

De um lado, trata-se de surpreendente reinvenção das Memórias Póstumas. Em 2022, Cadu decide compor um diário, recordando fatos fundamentais de sua vida, ocorridos 20 anos antes, justo no momento em que começou a perder tudo, inclusive a visão. Não seria essa uma maneira sutil de escrever memórias póstumas ainda em vida? De outro lado, a dicção do narrador fotógrafo, por vezes, recorda a voz do conselheiro Aires. Um exemplo apenas: “Encontrei um sentido concreto para a expressão ‘ou 8 ou 80’. É certo que Laura não tem 8 anos, nem Joana atingiu os 80. Somemos 8 e 80, façamos a média e devo me contentar em ficar lá no passado, com Aída e seus 44”. Puro Aires!

A combinação dos dois narradores mais entranhadamente associados ao instante final que a todos aguarda parece adequada para o romance que encerra o ciclo. Além disso, a condição de fotógrafo do narrador permite a Almino atar outras pontas. De um lado, recorde-se que o autor do Quarteto de Brasília também é fotógrafo. As inúmeras e instigantes reflexões sobre o ato de fotografar tanto são de Cadu quanto de Almino, e, pelo avesso, constituem uma declaração (de princípio) sobre a importância da escrita e da leitura: “Fotografar é ver com olho treinado” – assim como ler e escrever, claro está. “No fundo, para melhor ver uma fotografia é preciso fechar os olhos” – assim como, segundo a lição de Bento Santiago, os melhores livros são aqueles que nunca dizem tudo: é como se devêssemos lê-los com olhos fechados, a fim de concebermos o que não há.

De outro lado, a narrativa possui dois níveis que permitem articular uma preocupação constante de Almino. No caso, uma investigação em curso acerca do papel da literatura no mundo contemporâneo, dominado por meios audiovisuais. No primeiro nível, Cadu, em 2022, registra o processo que lhe permite recuperar o passado através de um documento insólito: “Há duas décadas, escrevi, durante pouco mais de um ano, um diário fotográfico”. Isso mesmo: sem palavra alguma, apenas os instantâneos: 62 emoções que mapeiam o término de sua grande paixão, Joana, o encontro com o amor maduro, Aída, e, por fim, a gradual perda da visão. Hegeliano às avessas, para Cadu o real não é racional, mas emocional.

No segundo nível, as fotografias são descritas pelo narrador – agora, sim, com palavras, pois o leitor nunca vê as fotos e, por isso, deve imaginá-las. Ora, o rival maior de Cadu, Eduardo Kaufman, político corrupto, afirma sem nenhum constrangimento: “Hoje em dia a cultura é de imagem. O mundo inteiro se faz e se refaz em filmes e fotografias. E a televisão tem poder de encantamento; dá outro sentido até mesmo a uma conversa banal”.

Uma resposta

O Quarteto de Brasília, porém, é a resposta de Almino à situação contemporânea: a literatura torna-se indispensável precisamente porque a terra virou residência de gente como Eduardo Kaufman. Mesmo nas faculdades de letras apressados funcionários do contemporâneo discutem cinema, ciberespaço; em suma, rendem-se ao universo audiovisual. E a literatura? Como em Até o fim do mundo, de Wim Wenders, o que permite a Cadu articular sua visão perdida é a palavra, é a narrativa – ou seja, a literatura. Eis, talvez, a lição mais importante que João Almino oferece a seus leitores.

* Professor universitário e ensaísta. Organizador da coleção, em seis volumes, Contos de Machado de Assis (Record).

Jornal do Brasil, “Idéias & Livros”, sábado, 4 de outubro de 2008

João Almino termina o ‘Quarteto de Brasília’ e elege a palavra narrada como a grande lição

João Cezar de Castro Rocha*

Com seu último romance, e bem ao contrário de certo narrador casmurro, João Almino ata as pontas de sua criação ficcional com rara felicidade. O Quarteto de Brasília iniciou-se com Idéias para onde passar o fim do mundo (1987), e, desde o princípio de sua arquitetura, as obsessões do autor foram apresentadas ao leitor. Em todos os romances destaca-se o projeto de estabelecer um diálogo criativo com as estratégias narrativas do Machado de Assis maduro; diálogo esse associado com uma aguda reflexão sobre a centralidade dos meios audiovisuais na cultura contemporânea. Isso para não mencionar o conteúdo filosófico que se dissemina nos quatro livros.

Mulher digital

No primeiro título do Quarteto, um escritor morto retorna para concluir o roteiro de seu filme e a ação é acionada por uma fotografia da posse do presidente Paulo Antônio Fernandes – figura de proporções míticas na Brasília de João Almino. Em Samba enredo: romance (1994), a trama é literalmente narrada (ou registrada) por um microcomputador, que trata o leitor com piparotes cibernéticos, enquanto descortina o cenário carnavalizado dos bastidores de um crime político, mesclado a escândalo sexual: o seqüestro do presidente negro, Paulo Antônio. Por sua vez, a narradora de As cinco estações do amor (2001), Ana Kaufman, “professora de filosofia e escritora frustrada”, como anunciava o romance anterior, tem ares de uma mescla explosiva. Imagine-se uma mulher da era digital com os dilemas de uma Emma Bovary, porém com o domínio da escrita de um Bento Santiago.

Chegamos, portanto, ao último momento: O livro das emoções. Aqui, as pontas se atam de modo complexo e sutil. Cadu, personagem cuja fotografia despertou a máquina do primeiro romance, agora se transforma no narrador do elo final. Um fotógrafo particularmente sensível à beleza das formas femininas, assume o ar de um narrador bifronte.

De um lado, trata-se de surpreendente reinvenção das Memórias Póstumas. Em 2022, Cadu decide compor um diário, recordando fatos fundamentais de sua vida, ocorridos 20 anos antes, justo no momento em que começou a perder tudo, inclusive a visão. Não seria essa uma maneira sutil de escrever memórias póstumas ainda em vida? De outro lado, a dicção do narrador fotógrafo, por vezes, recorda a voz do conselheiro Aires. Um exemplo apenas: “Encontrei um sentido concreto para a expressão ‘ou 8 ou 80’. É certo que Laura não tem 8 anos, nem Joana atingiu os 80. Somemos 8 e 80, façamos a média e devo me contentar em ficar lá no passado, com Aída e seus 44”. Puro Aires!

A combinação dos dois narradores mais entranhadamente associados ao instante final que a todos aguarda parece adequada para o romance que encerra o ciclo. Além disso, a condição de fotógrafo do narrador permite a Almino atar outras pontas. De um lado, recorde-se que o autor do Quarteto de Brasília também é fotógrafo. As inúmeras e instigantes reflexões sobre o ato de fotografar tanto são de Cadu quanto de Almino, e, pelo avesso, constituem uma declaração (de princípio) sobre a importância da escrita e da leitura: “Fotografar é ver com olho treinado” – assim como ler e escrever, claro está. “No fundo, para melhor ver uma fotografia é preciso fechar os olhos” – assim como, segundo a lição de Bento Santiago, os melhores livros são aqueles que nunca dizem tudo: é como se devêssemos lê-los com olhos fechados, a fim de concebermos o que não há.

De outro lado, a narrativa possui dois níveis que permitem articular uma preocupação constante de Almino. No caso, uma investigação em curso acerca do papel da literatura no mundo contemporâneo, dominado por meios audiovisuais. No primeiro nível, Cadu, em 2022, registra o processo que lhe permite recuperar o passado através de um documento insólito: “Há duas décadas, escrevi, durante pouco mais de um ano, um diário fotográfico”. Isso mesmo: sem palavra alguma, apenas os instantâneos: 62 emoções que mapeiam o término de sua grande paixão, Joana, o encontro com o amor maduro, Aída, e, por fim, a gradual perda da visão. Hegeliano às avessas, para Cadu o real não é racional, mas emocional.

No segundo nível, as fotografias são descritas pelo narrador – agora, sim, com palavras, pois o leitor nunca vê as fotos e, por isso, deve imaginá-las. Ora, o rival maior de Cadu, Eduardo Kaufman, político corrupto, afirma sem nenhum constrangimento: “Hoje em dia a cultura é de imagem. O mundo inteiro se faz e se refaz em filmes e fotografias. E a televisão tem poder de encantamento; dá outro sentido até mesmo a uma conversa banal”.

Uma resposta

O Quarteto de Brasília, porém, é a resposta de Almino à situação contemporânea: a literatura torna-se indispensável precisamente porque a terra virou residência de gente como Eduardo Kaufman. Mesmo nas faculdades de letras apressados funcionários do contemporâneo discutem cinema, ciberespaço; em suma, rendem-se ao universo audiovisual. E a literatura? Como em Até o fim do mundo, de Wim Wenders, o que permite a Cadu articular sua visão perdida é a palavra, é a narrativa – ou seja, a literatura. Eis, talvez, a lição mais importante que João Almino oferece a seus leitores.

* Professor universitário e ensaísta. Organizador da coleção, em seis volumes, Contos de Machado de Assis (Record).

Jornal do Brasil, “Idéias & Livros”, sábado, 4 de outubro de 2008

João Almino termina o ‘Quarteto de Brasília’ e elege a palavra narrada como a grande lição

João Cezar de Castro Rocha*

Com seu último romance, e bem ao contrário de certo narrador casmurro, João Almino ata as pontas de sua criação ficcional com rara felicidade. O Quarteto de Brasília iniciou-se com Idéias para onde passar o fim do mundo (1987), e, desde o princípio de sua arquitetura, as obsessões do autor foram apresentadas ao leitor. Em todos os romances destaca-se o projeto de estabelecer um diálogo criativo com as estratégias narrativas do Machado de Assis maduro; diálogo esse associado com uma aguda reflexão sobre a centralidade dos meios audiovisuais na cultura contemporânea. Isso para não mencionar o conteúdo filosófico que se dissemina nos quatro livros.

Mulher digital

No primeiro título do Quarteto, um escritor morto retorna para concluir o roteiro de seu filme e a ação é acionada por uma fotografia da posse do presidente Paulo Antônio Fernandes – figura de proporções míticas na Brasília de João Almino. Em Samba enredo: romance (1994), a trama é literalmente narrada (ou registrada) por um microcomputador, que trata o leitor com piparotes cibernéticos, enquanto descortina o cenário carnavalizado dos bastidores de um crime político, mesclado a escândalo sexual: o seqüestro do presidente negro, Paulo Antônio. Por sua vez, a narradora de As cinco estações do amor (2001), Ana Kaufman, “professora de filosofia e escritora frustrada”, como anunciava o romance anterior, tem ares de uma mescla explosiva. Imagine-se uma mulher da era digital com os dilemas de uma Emma Bovary, porém com o domínio da escrita de um Bento Santiago.

Chegamos, portanto, ao último momento: O livro das emoções. Aqui, as pontas se atam de modo complexo e sutil. Cadu, personagem cuja fotografia despertou a máquina do primeiro romance, agora se transforma no narrador do elo final. Um fotógrafo particularmente sensível à beleza das formas femininas, assume o ar de um narrador bifronte.

De um lado, trata-se de surpreendente reinvenção das Memórias Póstumas. Em 2022, Cadu decide compor um diário, recordando fatos fundamentais de sua vida, ocorridos 20 anos antes, justo no momento em que começou a perder tudo, inclusive a visão. Não seria essa uma maneira sutil de escrever memórias póstumas ainda em vida? De outro lado, a dicção do narrador fotógrafo, por vezes, recorda a voz do conselheiro Aires. Um exemplo apenas: “Encontrei um sentido concreto para a expressão ‘ou 8 ou 80’. É certo que Laura não tem 8 anos, nem Joana atingiu os 80. Somemos 8 e 80, façamos a média e devo me contentar em ficar lá no passado, com Aída e seus 44”. Puro Aires!

A combinação dos dois narradores mais entranhadamente associados ao instante final que a todos aguarda parece adequada para o romance que encerra o ciclo. Além disso, a condição de fotógrafo do narrador permite a Almino atar outras pontas. De um lado, recorde-se que o autor do Quarteto de Brasília também é fotógrafo. As inúmeras e instigantes reflexões sobre o ato de fotografar tanto são de Cadu quanto de Almino, e, pelo avesso, constituem uma declaração (de princípio) sobre a importância da escrita e da leitura: “Fotografar é ver com olho treinado” – assim como ler e escrever, claro está. “No fundo, para melhor ver uma fotografia é preciso fechar os olhos” – assim como, segundo a lição de Bento Santiago, os melhores livros são aqueles que nunca dizem tudo: é como se devêssemos lê-los com olhos fechados, a fim de concebermos o que não há.

De outro lado, a narrativa possui dois níveis que permitem articular uma preocupação constante de Almino. No caso, uma investigação em curso acerca do papel da literatura no mundo contemporâneo, dominado por meios audiovisuais. No primeiro nível, Cadu, em 2022, registra o processo que lhe permite recuperar o passado através de um documento insólito: “Há duas décadas, escrevi, durante pouco mais de um ano, um diário fotográfico”. Isso mesmo: sem palavra alguma, apenas os instantâneos: 62 emoções que mapeiam o término de sua grande paixão, Joana, o encontro com o amor maduro, Aída, e, por fim, a gradual perda da visão. Hegeliano às avessas, para Cadu o real não é racional, mas emocional.

No segundo nível, as fotografias são descritas pelo narrador – agora, sim, com palavras, pois o leitor nunca vê as fotos e, por isso, deve imaginá-las. Ora, o rival maior de Cadu, Eduardo Kaufman, político corrupto, afirma sem nenhum constrangimento: “Hoje em dia a cultura é de imagem. O mundo inteiro se faz e se refaz em filmes e fotografias. E a televisão tem poder de encantamento; dá outro sentido até mesmo a uma conversa banal”.

Uma resposta

O Quarteto de Brasília, porém, é a resposta de Almino à situação contemporânea: a literatura torna-se indispensável precisamente porque a terra virou residência de gente como Eduardo Kaufman. Mesmo nas faculdades de letras apressados funcionários do contemporâneo discutem cinema, ciberespaço; em suma, rendem-se ao universo audiovisual. E a literatura? Como em Até o fim do mundo, de Wim Wenders, o que permite a Cadu articular sua visão perdida é a palavra, é a narrativa – ou seja, a literatura. Eis, talvez, a lição mais importante que João Almino oferece a seus leitores.

* Professor universitário e ensaísta. Organizador da coleção, em seis volumes, Contos de Machado de Assis (Record).

Jornal do Brasil, “Idéias & Livros”, sábado, 4 de outubro de 2008

João Almino termina o ‘Quarteto de Brasília’ e elege a palavra narrada como a grande lição

João Cezar de Castro Rocha*

Com seu último romance, e bem ao contrário de certo narrador casmurro, João Almino ata as pontas de sua criação ficcional com rara felicidade. O Quarteto de Brasília iniciou-se com Idéias para onde passar o fim do mundo (1987), e, desde o princípio de sua arquitetura, as obsessões do autor foram apresentadas ao leitor. Em todos os romances destaca-se o projeto de estabelecer um diálogo criativo com as estratégias narrativas do Machado de Assis maduro; diálogo esse associado com uma aguda reflexão sobre a centralidade dos meios audiovisuais na cultura contemporânea. Isso para não mencionar o conteúdo filosófico que se dissemina nos quatro livros.

Mulher digital

No primeiro título do Quarteto, um escritor morto retorna para concluir o roteiro de seu filme e a ação é acionada por uma fotografia da posse do presidente Paulo Antônio Fernandes – figura de proporções míticas na Brasília de João Almino. Em Samba enredo: romance (1994), a trama é literalmente narrada (ou registrada) por um microcomputador, que trata o leitor com piparotes cibernéticos, enquanto descortina o cenário carnavalizado dos bastidores de um crime político, mesclado a escândalo sexual: o seqüestro do presidente negro, Paulo Antônio. Por sua vez, a narradora de As cinco estações do amor (2001), Ana Kaufman, “professora de filosofia e escritora frustrada”, como anunciava o romance anterior, tem ares de uma mescla explosiva. Imagine-se uma mulher da era digital com os dilemas de uma Emma Bovary, porém com o domínio da escrita de um Bento Santiago.

Chegamos, portanto, ao último momento: O livro das emoções. Aqui, as pontas se atam de modo complexo e sutil. Cadu, personagem cuja fotografia despertou a máquina do primeiro romance, agora se transforma no narrador do elo final. Um fotógrafo particularmente sensível à beleza das formas femininas, assume o ar de um narrador bifronte.

De um lado, trata-se de surpreendente reinvenção das Memórias Póstumas. Em 2022, Cadu decide compor um diário, recordando fatos fundamentais de sua vida, ocorridos 20 anos antes, justo no momento em que começou a perder tudo, inclusive a visão. Não seria essa uma maneira sutil de escrever memórias póstumas ainda em vida? De outro lado, a dicção do narrador fotógrafo, por vezes, recorda a voz do conselheiro Aires. Um exemplo apenas: “Encontrei um sentido concreto para a expressão ‘ou 8 ou 80’. É certo que Laura não tem 8 anos, nem Joana atingiu os 80. Somemos 8 e 80, façamos a média e devo me contentar em ficar lá no passado, com Aída e seus 44”. Puro Aires!

A combinação dos dois narradores mais entranhadamente associados ao instante final que a todos aguarda parece adequada para o romance que encerra o ciclo. Além disso, a condição de fotógrafo do narrador permite a Almino atar outras pontas. De um lado, recorde-se que o autor do Quarteto de Brasília também é fotógrafo. As inúmeras e instigantes reflexões sobre o ato de fotografar tanto são de Cadu quanto de Almino, e, pelo avesso, constituem uma declaração (de princípio) sobre a importância da escrita e da leitura: “Fotografar é ver com olho treinado” – assim como ler e escrever, claro está. “No fundo, para melhor ver uma fotografia é preciso fechar os olhos” – assim como, segundo a lição de Bento Santiago, os melhores livros são aqueles que nunca dizem tudo: é como se devêssemos lê-los com olhos fechados, a fim de concebermos o que não há.

De outro lado, a narrativa possui dois níveis que permitem articular uma preocupação constante de Almino. No caso, uma investigação em curso acerca do papel da literatura no mundo contemporâneo, dominado por meios audiovisuais. No primeiro nível, Cadu, em 2022, registra o processo que lhe permite recuperar o passado através de um documento insólito: “Há duas décadas, escrevi, durante pouco mais de um ano, um diário fotográfico”. Isso mesmo: sem palavra alguma, apenas os instantâneos: 62 emoções que mapeiam o término de sua grande paixão, Joana, o encontro com o amor maduro, Aída, e, por fim, a gradual perda da visão. Hegeliano às avessas, para Cadu o real não é racional, mas emocional.

No segundo nível, as fotografias são descritas pelo narrador – agora, sim, com palavras, pois o leitor nunca vê as fotos e, por isso, deve imaginá-las. Ora, o rival maior de Cadu, Eduardo Kaufman, político corrupto, afirma sem nenhum constrangimento: “Hoje em dia a cultura é de imagem. O mundo inteiro se faz e se refaz em filmes e fotografias. E a televisão tem poder de encantamento; dá outro sentido até mesmo a uma conversa banal”.

Uma resposta

O Quarteto de Brasília, porém, é a resposta de Almino à situação contemporânea: a literatura torna-se indispensável precisamente porque a terra virou residência de gente como Eduardo Kaufman. Mesmo nas faculdades de letras apressados funcionários do contemporâneo discutem cinema, ciberespaço; em suma, rendem-se ao universo audiovisual. E a literatura? Como em Até o fim do mundo, de Wim Wenders, o que permite a Cadu articular sua visão perdida é a palavra, é a narrativa – ou seja, a literatura. Eis, talvez, a lição mais importante que João Almino oferece a seus leitores.