UMA TRILOGIA PARA BRASÍLIA. Eloisa Pereira Barroso, Tese, UnB

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Eloísa Pereira Barroso (*)

A linguagem literária, de certa forma, procura associar-se ao signo da cidade. Os textos mostram-se como palco por onde figura a corrosão da metrópole modernista. O escritor desnuda o encantamento, e os mitos que cercam a cidade capital e dá contornos nítidos à dimensão social de uma cidade que abdica de seus monumentos.

Assim é que a relação entre literatura e cidade na trilogia de João Almino composta pelos títulos “Idéias para onde passar o fim do mundo”, “Samba enredo” e “As cinco estações do amor” se dá pela busca da reflexão e da compreensão de questões que permeiam as experiências humanas vividas na cidade. Com um olhar voltado para aspectos referentes aos conflitos pessoais do sujeito moderno, Almino busca na narrativa uma possibilidade de expor e desenvolver uma cidade que está além dos monumentos de Niemeyer.

Nesse sentido, sua trilogia tem como pano de fundo Brasília, a capital do país, um lugar onde as personagens se encontram em situações de desilusão e desprovidas de sonho pois, Brasília não pertence aos meus personagens e nunca lhes vai pertencer. Mas é nesta cidade, com história e futuro ainda abertos, que está para surgir, vestido de fada ou de bruxa, um mito antigo, finalmente real: toda a novidade do mundo. (ALMINO, 2002: 18-19)

As cidades adquirem o ar dos tempos porque passam. Brasília, que tinha sido a promessa do socialismo e, para mim pessoalmente, de liberdade, não usava mais disfarce. A solação de suas cidades-satélites já as asfixiava. (ALMINO, 2001: 21)

Como sujeito inserido no contexto da cidade, o narrador pretendeu não somente expor aos olhos do leitor a sociedade brasileira, nem tão pouco pretendeu realizar uma reflexão impessoal acerca dela, mas acima de tudo, procurou refletir o homem dentro do universo de conflitos e desestabilidades gerados pelas contradições contidas nessa racionalidade moderna de um projeto e de um processo de megalopolização que se anuncia numa Brasília de políticos, de manifestações e de festas, de lugar dos imigrantes desiludidos…

TUDO em Brasília se dá à vista de imediato. Nos céus limpos e na luz generosa, os olhos alcançam longe, não somente o horizonte, também o limite entre a cidade e o campo. Traçados previsíveis, curvas esperadas. Porém, por trás desta luz escancarada e da evidência do que está delineado, persiste um mistério. (ALMINO, 2001: 61)

As reflexões propostas por Almino em sua trilogia, levam a crer que a ficção literária foi para esse autor, não só um lugar de conhecimento deste mistério da cidade, mas também de reconhecimento de uma sociedade que se move entre a justiça e a corrupção, entre sedutores e seduzidos.

À medida que a trilogia se desenrola, há a percepção de que junto a isso os valores éticos humanos vão gradativamente se perdendo, cedendo espaço para outros, em especial, aqueles impostos pela metrópole em degradação.

Tinha que conseguir dinheiro para o barraco, para ir embora ou mesmo para viver. Sentia vergonha de só agora pensar em procurar dona Eva, e para lhe pedir dinheiro. Foi quando lhe ocorreu um plano diabólico e salvador.

Nem tinha por que se vingar de Cadu. Ele não fora o culpado por sua gravidez. O filho era de Zé Maria. O que acontecera com Cadu tinha sido culpa dela. Pelo jeito como ele sorria para o sorriso dela, ela percebera a atração que despertava nele. Ele até lhe dera alegrias; a fizera esquecer, por algum tempo, dos perigos do mundo.

Contudo, a tentação era forte, e ela estava, de fato, precisando de dinheiro. Tivera a idéia assistindo a um filme de espionagem na televisão. Era fácil envolver Cadu. Fazia cinco meses que tinham se encontrado. Telefonou-lhe, então, para anunciar que estava grávida dele. Prometia guardar segredo, mas pedia dinheiro para os gastos.

Essa era a vantagem da cidade grande. (…) ali, ninguém a conhecia. Cidade grande era assim, tudo era permitido. (ALMINO, 2002: 71-72)

Ao interagir com as dinâmicas da cidade Almino cria uma narrativa experimental, que ora é atravessada por visões míticas, ora comporta um computador humanizado pela paixão, ora retrata estórias frustradas da geração remanescente de 68. As narrativas vão exigindo do leitor um processo imaginativo constante para entrecruzar todos os fragmentos anunciados na trilogia e compor a “fisiognomia” de Brasília. Almino não só parece brincarcom todos esses elementos existentes na narrativa, ele também se permite à criação de vários outros os quais marcam o cotidiano da cidade, afinal como ele próprio diz, é um anti-romancista.

Nessas primeiras anotações, nenhum personagem é apenas ele próprio. Num certo sentido, a verdadeira história foi outra, que deve ser restabelecida por mim. “Por que essa obsessão pela verdade?” você pode querer me perguntar. Já está no Banquete que importa mais a verossimilhança que a verdade. Mas é que quero deixar claro aqui meu papel de anti-romancista. (ALMINO, 2002: 214)

Na escrita da trilogia, o autor embriaga-se pela cidade. Põe em fulcro uma percepção de Brasília, infinitamente complexa.

Assim é que, tanto tempo depois de ter sido utopicamente jogada no futuro, agora nesse começo do ano 1 do governo de Paulo Antônio, tudo o que restava a Brasília e seus habitantes era contemplar seu passado de sonhos.

A cidade pertencia cada vez mais a um Brasil sem sonhos e desiludido. Já aceitava sua condição de pobre e o sacrifício de carregar aquela enorme cruz, seu próprio corpo, sangue, alma; cruz que inspiraria sua forma e conteúdo, à qual agora se reduzia.

Do socialismo futuro, restaram apenas a burocracia desencantada e o espaço totalitário, o Estado-senhor ocupando o Eixo Monumental.

A cidade, prevista para ser o coração do país, estava fora do Brasil. Era como um castelo medieval, isolado e auto-suficiente, nutrindo-se do seu feudo e imune aos arredores.

O Brasil havia, porém, crescido à sua volta, nas cidades satélites, da cidade livre –o Núcleo Bandeirante – a Taguatinga, do Gama ao Guará. (ALMINO, 2002: 23-24)

Ao reconstituir o espaço o autor não se importa em dilacerá-lo, o romancista apreende as vozes de todos os segmentos que compõem a cidade, aparecem no texto o poder público, as vozes dos políticos, das empregadas domésticas, dos caseiros… Enfim, para o autor não há distinção, a Brasília de todos os dias faz conviver as diferenças sociais tanto no Palácio da Alvorada, quanto em um barraco do Gama. Almino cria em sua obra a metáfora do corpo biológico que permite uma leitura da cidade ligada à tradição do corpo citadino, nesse sentido a cidade apreensível aos olhos não se distancia do indivíduo. Na trilogia o campo mimético adquire concretude cultural na qual aparece ligada ao universo social cuja política e economia se revelam pelas tradições e pelas ações das personagens. (Gomes, 1994).

Ao humanizar a cidade e torná-la lugar por onde transitam as personagens nas suas ações cotidianas, Almino possibilita a descrição e a reconstituição da imagem de Brasília. Uma imagem carregada de tensões sociais em que o povo disputa no e com o espaço urbano a sobrevivência cotidiana. Assim é o exemplo de Berenice.

Brasília e seus arredores haviam se tornado inabitáveis. Ela não sabia onde cair morta. A história do país era outra, sua própria história era outra, seu destino seguia um rumo inesperado. (ALMINO, 2002: 73)

“Idéias para onde passar o fim do mundo”, o primeiro volume da trilogia, pode ser definido como sendo o fio condutor de uma longa e angustiante caminhada na trilha da cidade de carne e osso empreendida pelo autor.

Nele, as personagens surgem enquanto representações da discussão pretendida por Almino a respeito do que acontece com os valores humanos a partir das transformações geradas quando os valores da tradição vão, gradualmente, perdendo espaço para o pensamento e ações modernas.

As personagens do romance parecem perdidas no seu tempo, angustiadas, tristes e melancólicas, não conseguem conduzir suas vidas de modo claro, pois não conseguem enxergar com nitidez as mudanças porque passa o mundo, cada vez mais inserido no processo racional e mercantilista. Assim é que Eva Ousava ser ela mesma e, portanto, estar infeliz. De repente, naquele momento, era como se todo o seu passado tivesse sido muito triste. A tristeza e a insatisfação eram os traços comuns da sua vida. Sempre tivera uma dificuldade intransponível de escolher o que devia ser, fazer, aonde devia chegar. Sempre duvidava do que a deixaria feliz. Quando achava que podia ser o que quisesse, era difícil demais saber o que queria ser. Por que ainda tinha de se perguntar essas coisas? Cada decisão que tomava, anos depois continuava achando que era a única possível, mas percebia também que essa decisão já tinha perdido significado para ela. Descobria sempre que hoje, insatisfeita e triste, sua felicidade futura e definitiva dependia de outra decisão. A sua tristeza agora era sempre, e, sobretudo, a tristeza de não ser. (ALMINO, 2002: 122)

“Samba – Enredo” parece continuar as inquietações de “Idéias para onde passar o fim do mundo”. Do mesmo modo que falta essa compreensão da realidade moderna no primeiro volume da trilogia, ela se repete neste segundo livro. As personagens não se permitem desapegar das tradições e convenções sociais, mantidas pela classe social a que pertence.

Se no plano social as personagens convivem com mundos distintos, modernidade versus tradição; no plano pessoal a dualidade mais uma vez se faz presente. Os sentimentos de apego às tradições, de inércia, de medo de romper com as tradições, se confrontam em vários momentos com pequenas transgressões colocadas na narrativa por meio de uma linguagem alegórica em que a festa carnavalesca torna-se pano de fundo para a narrativa insurgir.

Como tentativa de clarear o debate em torno dessas questões surge o computador quase humano, que exerce o papel narrador dessa história.

É difícil escrever histórias sobre homens. Mais difícil ainda é contar a história de um homem como se isso fosse fundamental. A vida humana é o que acontece entre o nada e o nada. Por isso, parece-me incompreensível que os homens lutem por viver. Viver, pior que arriscado, é difícil. (ALMINO, 1994: 21)

Nesse sentido, o computador narrador, jogado no lixo, questiona os valores construídos pela racionalidade moderna, questiona também os valores arraigados nas personagens e mostra como esse apego às tradições as impedem de ver e agir com sensatez.

É possível afirmar que no universo subjetivo também habitam dois universos distintos e opostos entre si, um objetivo, regido pela razão e o outro regido pela emoção nos dois volumes. Aliás, o jogo entre a objetividade e a subjetividade é algo que também se verifica em “As cinco estações do amor”.

Em conseqüência disso, em algumas situações, no último livro da trilogia “As cinco estações do amor”, ao mesmo tempo em que a emoção sugere aos que transgridem os valores e as convenções sociais, a razão e a consciência das tradições não o permitem fazê-lo.

Dessa maneira, além de tornar as personagens incapazes de tomar atitudes, os conflitos internos gerados pela convivência simultânea com os mundos, as fazem oscilar entre a consciência e a inconsciência, vivendo, portanto, numa condição próxima daquela que sofrem os moradores de uma Brasília rasteira e barulhenta, que acolhe uma revolução que não se concretizou. Nessa situação, as personagens vivem as suas escolhas e, diante delas, não têm nada para comemorarem nesse novo milênio, pois tanto para Ana, quanto para a cidade o tempo passou.

Minha juventude está perdida. A Brasília do meu sonho de futuro está morta. Reconheço-me nas fachadas de seus prédios precocemente envelhecidos, na sua modernidade precária e decadente. (ALMINO, 2001: 40)

Embora esteja sempre diante da possibilidade de fazer opções, por completa ausência de vontades individuais, falta de percepção, e, por conseguinte, total incapacidade de objetivar a realidade, as personagens acabam se apegando àquilo que lhe foi imposto.

Por decreto ou por invasão elas aportaram na cidade e fincaram o pé na poeira vermelha para sempre. Isso fica claro quando Ana em conversa com Berenice diz:

– De Brasília não saio, por mais que Regina insista. (ALMINO, 2001: 42)

Em resumo, as personagens da trilogia podem ser descritas como seres que vivenciam os conflitos da existência humana gerada pela oposição entre a racionalidade e a irracionalidade, da cidade que ora é asséptica, desprovida de emoção, ora é à medida da emoção, ou seja, a Brasília de Almino não é somente a visão do poder, ela expressa a dualidade das megalópoles que abrigam as contradições dadas pelo jogo de oposições entre a extrema riqueza e a extrema pobreza, entre a o moderno e o arcaico, entre a esperança e a desesperança. Para o romancista a cidade não demonstra, portanto, equilíbrio entre a razão e a emoção. Assim é que todo o misticismo do “Jardim da Salvação”, fincado no parque de Águas Emendadas adquire sentido na narrativa.

As personagens “jogadas” no espaço urbano são seres que convivem de modo real com as situações que lhes são colocadas sem, no entanto, ter consciência e controle plenos do que acontece com elas, deixam-se levar, conseqüentemente, pelas circunstâncias.

Ao expor os conflitos das personagens, Almino torna a trilogia o ponto de partida em direção às reflexões acerca da situação humana dentro de um emaranhado nebuloso em que as pessoas se vêem escapando às referências convencionais colocadas para o indivíduo na metrópole. Assim, no mundo urbano, há conseqüentemente cada vez mais seres angustiados, solitários, fragmentados e sem perspectivas. Isso se reflete nas palavras de Paulinho o presidente negro, assassinado durante o carnaval.

Para mim, felicidade ou não existe, ou não sei o que é. Na realidade ficaria preocupado se a atingisse. Já pensou? Seria uma espécie de fim de tudo. Um estado parecido com a morte. (ALMINO, 1994: 64)

As palavras de Berenice, uma empregada doméstica retirante do Ceará, sobre os sentimentos que tem em relação a Brasília no trecho a seguir são bem esclarecedoras.

No regresso ao sertão, Brasília ficou na cabeça de Berenice como o símbolo do moderno, do belo, do limpo, do civilizado, do culto, e também da violência, do poder. Brasília ficou em sua cabeça como o sonho de liberdade, pesadelo de castigo, intervalo para viver, lembrança de Zé Maria. Brasília era, para Berenice, só uma ponte de fuga de si mesma e de regresso a si mesma. Ali se narravam, superpostas, histórias velhas e novas de Berenice (ALMINO, 2001: 85).

A cidade ao interferir no modo de Berenice ver o mundo, não só traz o ponto de vista pautado na razão, mas também desenvolve uma reflexão bastante significativa sobre os valores da modernidade ao demonstrar maior proximidade pelas causas e pensamentos modernos no que se refere à cidade cindida. A personagem ao enxergar Brasília se vê refletida nela, é como se a cidade estabelecesse para ela a alteridade. Portanto, com maior clareza, ao analisar Brasília, Berenice parece ciente das causas e das conseqüências dos “atavismos” que ligam o homem de seu tempo aos valores do passado.

Ao proceder dessa maneira, Berenice se apresenta com outra função no texto, nessas horas, ela se torna um porta-voz da causa moderna. Nos momentos da narrativa em que se apresenta, a fala de Berenice se traduz na forma de um discurso bem elaborado acerca dos sentimentos que a ligam à cidade. Tem-se a impressão de que por meio de Berenice, a voz do autor se confunde com a voz dela. O romancista parece valer-se dessa personagem, nesse primeiro momento, para se inserir na ficção expondo seu ponto de vista e refletindo sobre a cidade e os valores a ela agregados.

O narrador-autor de “Idéias para onde passar o fim do mundo” é, visivelmente, um elemento que permite uma maior inserção do pensamento do autor no interior do texto.

Apesar da terceira pessoa, esse narrador não apenas observa os fatos, mas participa deles, dialogando com a narrativa. A voz presente no texto é senão a voz que expressa e conduz uma reflexão do pensamento sobre a cidade de Brasília.

Espere! Leia só esta revelação de última hora e primeira mão: não houve história. Brasília era demasiado artificial. Era apenas sonho ou pesadelo de uma época. Imagem do céu e inferno. Não podia ser lugar de uma verdadeira história. (ALMINO, 2001: 237)

Em “Idéias para onde passar o fim do mundo” o narrador consegue manter uma postura rígida no controle da fala de suas personagens. Conhecemos as personagens que se repetirão nos outros volumes, quase que exclusivamente por meio do discurso do narrador.

A expressão curiosamente se faz oportuna porque há um aspecto de nebulosidade envolvendo a relação entre as personagens, e não parece ser de interesse do narrador resolver ou esclarecer para o leitor tal situação, pelo menos nesse momento, haja vista “esta história nunca foi e nunca será escrita” (ALMINO, 2001: 237).

Essa circunstância serve aos propósitos do autor-narrador, visto que o diálogo mantido pelas personagens é jogado no meio do nada, não tendo o leitor, portanto, nenhuma condição de entender as reais intenções delas. Agindo assim, o narrador consegue manter o clima de mistério em torno das mesmas.

Se a vida objetiva das personagens ultrapassa os limites territoriais, buscando novos mundos, novas culturas, para expansão, principalmente de mercados, no mundo subjetivo, os atavismos sentimentais fazem parte de suas naturezas. Em “Idéias para onde passar o fim do mundo” há indícios de que romper com o cotidiano faz estas personagens verem se livres de quaisquer sentimentos que pudessem mantê-las aprisionadas às convenções.

No restante da narrativa o leitor tem contato com as personagens quase que exclusivamente pela interposição do narrador-autor/autor-narrador; é nesse sentido que parece ser possível a afirmativa de que Almino se utiliza da criação ficcional como meio de veicular e possivelmente formular e refletir sobre o seu próprio pensamento enquanto reflete sobre a cidade.

Na trilogia, a coexistência em mundos paradoxais é a responsável pelos conflitos das personagens.

Mediante a análise dos elementos utilizados na construção dessa trilogia, percebe-se que houve uma tentativa de levar à percepção desses mundos diferentes habitados pelas personagens por meio da utilização de elementos palpáveis, como a política, os círculos de amigos, o bar Beirute, os blocos de apartamentos da Asa Sul, daí a oposição se construir na narrativa pela Cidade monumental e cidade das desilusões.

Pautando-se em tais elementos, para desenvolver seu pensamento, Almino lança mão de vários recursos na composição de seu texto. Na trilogia o corpo textual parece ser meticulosamente construído para que as relações entre esses elementos, o pensamento do autor e a estrutura da obra correlacionem-se de modo a dar credibilidade e coerência à cidade. Comecemos, pois, pelo primeiro elemento considerado significativo.

Na trilogia, a sobreposição dos sentimentos sobre as vontades do indivíduo é algo possível de ser analisado do início ao final das narrativas.

A perda e a falta de perspectivas paralisam as ações do sujeito diante dos acontecimentos. Tais sentimentos tornam-se tão ou mais significativos que o próprio indivíduo, porque as ações das personagens, em especial de Ana, Berenice… são resultantes da força que esses sentimentos exercem sobre o sujeito.

Assim, ante a leitura do universo das personagens é possível perceber que as forças que impulsionam seus movimentos se sobrepõem às vontades individuais.

Com isso, Almino parece sugerir que as personagem são criadas para condensarem, representarem e fazerem pensar o homem dentro de um contexto urbano. Este contexto é o responsável pelas incertezas trazidas pelo pensamento e ações modernos sobre as instituições estáveis e tradicionais, tais como a organização do trabalho, os modos de produção, a religião…, Este contexto além de provocar modificações nas estruturas sociais, ao mesmo tempo altera e desestabiliza as relações pessoais. É dessa forma que Ana, ao final da trilogia conclui que:

As cidades mudam com o tempo, à medida que se tornam familiares. Não me sinto mais estrangeira em Brasília. Tenho outros olhos e outro coração para as paisagens de sempre. A cidade já não me assombra, e as esperanças, que à minha revelia, me gera estão ao alcance de minha mão. Ela é minha, com seus vazios, sua frieza, sua solidão. Virei íntima de seu ar empoeirado e seco, da uniformidade de suas entrequadras, de seus longos eixos sob o céu gigante. (ALMINO, 2002: 202)

(*) Eloísa Pereira Barroso, Capítulo da tese intitulada Brasília: As Controvérsias da Utopia Modernista na Cidade das Palavras, apresentada ao Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília/UnB como parte dos requisitos para a obtenção do título de Doutora. Orientadora: Doutora Barbara Freitag Rouanet. Brasília, agosto de 2008.

Eloísa Pereira Barroso (*)

A linguagem literária, de certa forma, procura associar-se ao signo da cidade. Os textos mostram-se como palco por onde figura a corrosão da metrópole modernista. O escritor desnuda o encantamento, e os mitos que cercam a cidade capital e dá contornos nítidos à dimensão social de uma cidade que abdica de seus monumentos.

Assim é que a relação entre literatura e cidade na trilogia de João Almino composta pelos títulos “Idéias para onde passar o fim do mundo”, “Samba enredo” e “As cinco estações do amor” se dá pela busca da reflexão e da compreensão de questões que permeiam as experiências humanas vividas na cidade. Com um olhar voltado para aspectos referentes aos conflitos pessoais do sujeito moderno, Almino busca na narrativa uma possibilidade de expor e desenvolver uma cidade que está além dos monumentos de Niemeyer.

Nesse sentido, sua trilogia tem como pano de fundo Brasília, a capital do país, um lugar onde as personagens se encontram em situações de desilusão e desprovidas de sonho pois, Brasília não pertence aos meus personagens e nunca lhes vai pertencer. Mas é nesta cidade, com história e futuro ainda abertos, que está para surgir, vestido de fada ou de bruxa, um mito antigo, finalmente real: toda a novidade do mundo. (ALMINO, 2002: 18-19)

As cidades adquirem o ar dos tempos porque passam. Brasília, que tinha sido a promessa do socialismo e, para mim pessoalmente, de liberdade, não usava mais disfarce. A solação de suas cidades-satélites já as asfixiava. (ALMINO, 2001: 21)

Como sujeito inserido no contexto da cidade, o narrador pretendeu não somente expor aos olhos do leitor a sociedade brasileira, nem tão pouco pretendeu realizar uma reflexão impessoal acerca dela, mas acima de tudo, procurou refletir o homem dentro do universo de conflitos e desestabilidades gerados pelas contradições contidas nessa racionalidade moderna de um projeto e de um processo de megalopolização que se anuncia numa Brasília de políticos, de manifestações e de festas, de lugar dos imigrantes desiludidos…

TUDO em Brasília se dá à vista de imediato. Nos céus limpos e na luz generosa, os olhos alcançam longe, não somente o horizonte, também o limite entre a cidade e o campo. Traçados previsíveis, curvas esperadas. Porém, por trás desta luz escancarada e da evidência do que está delineado, persiste um mistério. (ALMINO, 2001: 61)

As reflexões propostas por Almino em sua trilogia, levam a crer que a ficção literária foi para esse autor, não só um lugar de conhecimento deste mistério da cidade, mas também de reconhecimento de uma sociedade que se move entre a justiça e a corrupção, entre sedutores e seduzidos.

À medida que a trilogia se desenrola, há a percepção de que junto a isso os valores éticos humanos vão gradativamente se perdendo, cedendo espaço para outros, em especial, aqueles impostos pela metrópole em degradação.

Tinha que conseguir dinheiro para o barraco, para ir embora ou mesmo para viver. Sentia vergonha de só agora pensar em procurar dona Eva, e para lhe pedir dinheiro. Foi quando lhe ocorreu um plano diabólico e salvador.

Nem tinha por que se vingar de Cadu. Ele não fora o culpado por sua gravidez. O filho era de Zé Maria. O que acontecera com Cadu tinha sido culpa dela. Pelo jeito como ele sorria para o sorriso dela, ela percebera a atração que despertava nele. Ele até lhe dera alegrias; a fizera esquecer, por algum tempo, dos perigos do mundo.

Contudo, a tentação era forte, e ela estava, de fato, precisando de dinheiro. Tivera a idéia assistindo a um filme de espionagem na televisão. Era fácil envolver Cadu. Fazia cinco meses que tinham se encontrado. Telefonou-lhe, então, para anunciar que estava grávida dele. Prometia guardar segredo, mas pedia dinheiro para os gastos.

Essa era a vantagem da cidade grande. (…) ali, ninguém a conhecia. Cidade grande era assim, tudo era permitido. (ALMINO, 2002: 71-72)

Ao interagir com as dinâmicas da cidade Almino cria uma narrativa experimental, que ora é atravessada por visões míticas, ora comporta um computador humanizado pela paixão, ora retrata estórias frustradas da geração remanescente de 68. As narrativas vão exigindo do leitor um processo imaginativo constante para entrecruzar todos os fragmentos anunciados na trilogia e compor a “fisiognomia” de Brasília. Almino não só parece brincarcom todos esses elementos existentes na narrativa, ele também se permite à criação de vários outros os quais marcam o cotidiano da cidade, afinal como ele próprio diz, é um anti-romancista.

Nessas primeiras anotações, nenhum personagem é apenas ele próprio. Num certo sentido, a verdadeira história foi outra, que deve ser restabelecida por mim. “Por que essa obsessão pela verdade?” você pode querer me perguntar. Já está no Banquete que importa mais a verossimilhança que a verdade. Mas é que quero deixar claro aqui meu papel de anti-romancista. (ALMINO, 2002: 214)

Na escrita da trilogia, o autor embriaga-se pela cidade. Põe em fulcro uma percepção de Brasília, infinitamente complexa.

Assim é que, tanto tempo depois de ter sido utopicamente jogada no futuro, agora nesse começo do ano 1 do governo de Paulo Antônio, tudo o que restava a Brasília e seus habitantes era contemplar seu passado de sonhos.

A cidade pertencia cada vez mais a um Brasil sem sonhos e desiludido. Já aceitava sua condição de pobre e o sacrifício de carregar aquela enorme cruz, seu próprio corpo, sangue, alma; cruz que inspiraria sua forma e conteúdo, à qual agora se reduzia.

Do socialismo futuro, restaram apenas a burocracia desencantada e o espaço totalitário, o Estado-senhor ocupando o Eixo Monumental.

A cidade, prevista para ser o coração do país, estava fora do Brasil. Era como um castelo medieval, isolado e auto-suficiente, nutrindo-se do seu feudo e imune aos arredores.

O Brasil havia, porém, crescido à sua volta, nas cidades satélites, da cidade livre –o Núcleo Bandeirante – a Taguatinga, do Gama ao Guará. (ALMINO, 2002: 23-24)

Ao reconstituir o espaço o autor não se importa em dilacerá-lo, o romancista apreende as vozes de todos os segmentos que compõem a cidade, aparecem no texto o poder público, as vozes dos políticos, das empregadas domésticas, dos caseiros… Enfim, para o autor não há distinção, a Brasília de todos os dias faz conviver as diferenças sociais tanto no Palácio da Alvorada, quanto em um barraco do Gama. Almino cria em sua obra a metáfora do corpo biológico que permite uma leitura da cidade ligada à tradição do corpo citadino, nesse sentido a cidade apreensível aos olhos não se distancia do indivíduo. Na trilogia o campo mimético adquire concretude cultural na qual aparece ligada ao universo social cuja política e economia se revelam pelas tradições e pelas ações das personagens. (Gomes, 1994).

Ao humanizar a cidade e torná-la lugar por onde transitam as personagens nas suas ações cotidianas, Almino possibilita a descrição e a reconstituição da imagem de Brasília. Uma imagem carregada de tensões sociais em que o povo disputa no e com o espaço urbano a sobrevivência cotidiana. Assim é o exemplo de Berenice.

Brasília e seus arredores haviam se tornado inabitáveis. Ela não sabia onde cair morta. A história do país era outra, sua própria história era outra, seu destino seguia um rumo inesperado. (ALMINO, 2002: 73)

“Idéias para onde passar o fim do mundo”, o primeiro volume da trilogia, pode ser definido como sendo o fio condutor de uma longa e angustiante caminhada na trilha da cidade de carne e osso empreendida pelo autor.

Nele, as personagens surgem enquanto representações da discussão pretendida por Almino a respeito do que acontece com os valores humanos a partir das transformações geradas quando os valores da tradição vão, gradualmente, perdendo espaço para o pensamento e ações modernas.

As personagens do romance parecem perdidas no seu tempo, angustiadas, tristes e melancólicas, não conseguem conduzir suas vidas de modo claro, pois não conseguem enxergar com nitidez as mudanças porque passa o mundo, cada vez mais inserido no processo racional e mercantilista. Assim é que Eva Ousava ser ela mesma e, portanto, estar infeliz. De repente, naquele momento, era como se todo o seu passado tivesse sido muito triste. A tristeza e a insatisfação eram os traços comuns da sua vida. Sempre tivera uma dificuldade intransponível de escolher o que devia ser, fazer, aonde devia chegar. Sempre duvidava do que a deixaria feliz. Quando achava que podia ser o que quisesse, era difícil demais saber o que queria ser. Por que ainda tinha de se perguntar essas coisas? Cada decisão que tomava, anos depois continuava achando que era a única possível, mas percebia também que essa decisão já tinha perdido significado para ela. Descobria sempre que hoje, insatisfeita e triste, sua felicidade futura e definitiva dependia de outra decisão. A sua tristeza agora era sempre, e, sobretudo, a tristeza de não ser. (ALMINO, 2002: 122)

“Samba – Enredo” parece continuar as inquietações de “Idéias para onde passar o fim do mundo”. Do mesmo modo que falta essa compreensão da realidade moderna no primeiro volume da trilogia, ela se repete neste segundo livro. As personagens não se permitem desapegar das tradições e convenções sociais, mantidas pela classe social a que pertence.

Se no plano social as personagens convivem com mundos distintos, modernidade versus tradição; no plano pessoal a dualidade mais uma vez se faz presente. Os sentimentos de apego às tradições, de inércia, de medo de romper com as tradições, se confrontam em vários momentos com pequenas transgressões colocadas na narrativa por meio de uma linguagem alegórica em que a festa carnavalesca torna-se pano de fundo para a narrativa insurgir.

Como tentativa de clarear o debate em torno dessas questões surge o computador quase humano, que exerce o papel narrador dessa história.

É difícil escrever histórias sobre homens. Mais difícil ainda é contar a história de um homem como se isso fosse fundamental. A vida humana é o que acontece entre o nada e o nada. Por isso, parece-me incompreensível que os homens lutem por viver. Viver, pior que arriscado, é difícil. (ALMINO, 1994: 21)

Nesse sentido, o computador narrador, jogado no lixo, questiona os valores construídos pela racionalidade moderna, questiona também os valores arraigados nas personagens e mostra como esse apego às tradições as impedem de ver e agir com sensatez.

É possível afirmar que no universo subjetivo também habitam dois universos distintos e opostos entre si, um objetivo, regido pela razão e o outro regido pela emoção nos dois volumes. Aliás, o jogo entre a objetividade e a subjetividade é algo que também se verifica em “As cinco estações do amor”.

Em conseqüência disso, em algumas situações, no último livro da trilogia “As cinco estações do amor”, ao mesmo tempo em que a emoção sugere aos que transgridem os valores e as convenções sociais, a razão e a consciência das tradições não o permitem fazê-lo.

Dessa maneira, além de tornar as personagens incapazes de tomar atitudes, os conflitos internos gerados pela convivência simultânea com os mundos, as fazem oscilar entre a consciência e a inconsciência, vivendo, portanto, numa condição próxima daquela que sofrem os moradores de uma Brasília rasteira e barulhenta, que acolhe uma revolução que não se concretizou. Nessa situação, as personagens vivem as suas escolhas e, diante delas, não têm nada para comemorarem nesse novo milênio, pois tanto para Ana, quanto para a cidade o tempo passou.

Minha juventude está perdida. A Brasília do meu sonho de futuro está morta. Reconheço-me nas fachadas de seus prédios precocemente envelhecidos, na sua modernidade precária e decadente. (ALMINO, 2001: 40)

Embora esteja sempre diante da possibilidade de fazer opções, por completa ausência de vontades individuais, falta de percepção, e, por conseguinte, total incapacidade de objetivar a realidade, as personagens acabam se apegando àquilo que lhe foi imposto.

Por decreto ou por invasão elas aportaram na cidade e fincaram o pé na poeira vermelha para sempre. Isso fica claro quando Ana em conversa com Berenice diz:

– De Brasília não saio, por mais que Regina insista. (ALMINO, 2001: 42)

Em resumo, as personagens da trilogia podem ser descritas como seres que vivenciam os conflitos da existência humana gerada pela oposição entre a racionalidade e a irracionalidade, da cidade que ora é asséptica, desprovida de emoção, ora é à medida da emoção, ou seja, a Brasília de Almino não é somente a visão do poder, ela expressa a dualidade das megalópoles que abrigam as contradições dadas pelo jogo de oposições entre a extrema riqueza e a extrema pobreza, entre a o moderno e o arcaico, entre a esperança e a desesperança. Para o romancista a cidade não demonstra, portanto, equilíbrio entre a razão e a emoção. Assim é que todo o misticismo do “Jardim da Salvação”, fincado no parque de Águas Emendadas adquire sentido na narrativa.

As personagens “jogadas” no espaço urbano são seres que convivem de modo real com as situações que lhes são colocadas sem, no entanto, ter consciência e controle plenos do que acontece com elas, deixam-se levar, conseqüentemente, pelas circunstâncias.

Ao expor os conflitos das personagens, Almino torna a trilogia o ponto de partida em direção às reflexões acerca da situação humana dentro de um emaranhado nebuloso em que as pessoas se vêem escapando às referências convencionais colocadas para o indivíduo na metrópole. Assim, no mundo urbano, há conseqüentemente cada vez mais seres angustiados, solitários, fragmentados e sem perspectivas. Isso se reflete nas palavras de Paulinho o presidente negro, assassinado durante o carnaval.

Para mim, felicidade ou não existe, ou não sei o que é. Na realidade ficaria preocupado se a atingisse. Já pensou? Seria uma espécie de fim de tudo. Um estado parecido com a morte. (ALMINO, 1994: 64)

As palavras de Berenice, uma empregada doméstica retirante do Ceará, sobre os sentimentos que tem em relação a Brasília no trecho a seguir são bem esclarecedoras.

No regresso ao sertão, Brasília ficou na cabeça de Berenice como o símbolo do moderno, do belo, do limpo, do civilizado, do culto, e também da violência, do poder. Brasília ficou em sua cabeça como o sonho de liberdade, pesadelo de castigo, intervalo para viver, lembrança de Zé Maria. Brasília era, para Berenice, só uma ponte de fuga de si mesma e de regresso a si mesma. Ali se narravam, superpostas, histórias velhas e novas de Berenice (ALMINO, 2001: 85).

A cidade ao interferir no modo de Berenice ver o mundo, não só traz o ponto de vista pautado na razão, mas também desenvolve uma reflexão bastante significativa sobre os valores da modernidade ao demonstrar maior proximidade pelas causas e pensamentos modernos no que se refere à cidade cindida. A personagem ao enxergar Brasília se vê refletida nela, é como se a cidade estabelecesse para ela a alteridade. Portanto, com maior clareza, ao analisar Brasília, Berenice parece ciente das causas e das conseqüências dos “atavismos” que ligam o homem de seu tempo aos valores do passado.

Ao proceder dessa maneira, Berenice se apresenta com outra função no texto, nessas horas, ela se torna um porta-voz da causa moderna. Nos momentos da narrativa em que se apresenta, a fala de Berenice se traduz na forma de um discurso bem elaborado acerca dos sentimentos que a ligam à cidade. Tem-se a impressão de que por meio de Berenice, a voz do autor se confunde com a voz dela. O romancista parece valer-se dessa personagem, nesse primeiro momento, para se inserir na ficção expondo seu ponto de vista e refletindo sobre a cidade e os valores a ela agregados.

O narrador-autor de “Idéias para onde passar o fim do mundo” é, visivelmente, um elemento que permite uma maior inserção do pensamento do autor no interior do texto.

Apesar da terceira pessoa, esse narrador não apenas observa os fatos, mas participa deles, dialogando com a narrativa. A voz presente no texto é senão a voz que expressa e conduz uma reflexão do pensamento sobre a cidade de Brasília.

Espere! Leia só esta revelação de última hora e primeira mão: não houve história. Brasília era demasiado artificial. Era apenas sonho ou pesadelo de uma época. Imagem do céu e inferno. Não podia ser lugar de uma verdadeira história. (ALMINO, 2001: 237)

Em “Idéias para onde passar o fim do mundo” o narrador consegue manter uma postura rígida no controle da fala de suas personagens. Conhecemos as personagens que se repetirão nos outros volumes, quase que exclusivamente por meio do discurso do narrador.

A expressão curiosamente se faz oportuna porque há um aspecto de nebulosidade envolvendo a relação entre as personagens, e não parece ser de interesse do narrador resolver ou esclarecer para o leitor tal situação, pelo menos nesse momento, haja vista “esta história nunca foi e nunca será escrita” (ALMINO, 2001: 237).

Essa circunstância serve aos propósitos do autor-narrador, visto que o diálogo mantido pelas personagens é jogado no meio do nada, não tendo o leitor, portanto, nenhuma condição de entender as reais intenções delas. Agindo assim, o narrador consegue manter o clima de mistério em torno das mesmas.

Se a vida objetiva das personagens ultrapassa os limites territoriais, buscando novos mundos, novas culturas, para expansão, principalmente de mercados, no mundo subjetivo, os atavismos sentimentais fazem parte de suas naturezas. Em “Idéias para onde passar o fim do mundo” há indícios de que romper com o cotidiano faz estas personagens verem se livres de quaisquer sentimentos que pudessem mantê-las aprisionadas às convenções.

No restante da narrativa o leitor tem contato com as personagens quase que exclusivamente pela interposição do narrador-autor/autor-narrador; é nesse sentido que parece ser possível a afirmativa de que Almino se utiliza da criação ficcional como meio de veicular e possivelmente formular e refletir sobre o seu próprio pensamento enquanto reflete sobre a cidade.

Na trilogia, a coexistência em mundos paradoxais é a responsável pelos conflitos das personagens.

Mediante a análise dos elementos utilizados na construção dessa trilogia, percebe-se que houve uma tentativa de levar à percepção desses mundos diferentes habitados pelas personagens por meio da utilização de elementos palpáveis, como a política, os círculos de amigos, o bar Beirute, os blocos de apartamentos da Asa Sul, daí a oposição se construir na narrativa pela Cidade monumental e cidade das desilusões.

Pautando-se em tais elementos, para desenvolver seu pensamento, Almino lança mão de vários recursos na composição de seu texto. Na trilogia o corpo textual parece ser meticulosamente construído para que as relações entre esses elementos, o pensamento do autor e a estrutura da obra correlacionem-se de modo a dar credibilidade e coerência à cidade. Comecemos, pois, pelo primeiro elemento considerado significativo.

Na trilogia, a sobreposição dos sentimentos sobre as vontades do indivíduo é algo possível de ser analisado do início ao final das narrativas.

A perda e a falta de perspectivas paralisam as ações do sujeito diante dos acontecimentos. Tais sentimentos tornam-se tão ou mais significativos que o próprio indivíduo, porque as ações das personagens, em especial de Ana, Berenice… são resultantes da força que esses sentimentos exercem sobre o sujeito.

Assim, ante a leitura do universo das personagens é possível perceber que as forças que impulsionam seus movimentos se sobrepõem às vontades individuais.

Com isso, Almino parece sugerir que as personagem são criadas para condensarem, representarem e fazerem pensar o homem dentro de um contexto urbano. Este contexto é o responsável pelas incertezas trazidas pelo pensamento e ações modernos sobre as instituições estáveis e tradicionais, tais como a organização do trabalho, os modos de produção, a religião…, Este contexto além de provocar modificações nas estruturas sociais, ao mesmo tempo altera e desestabiliza as relações pessoais. É dessa forma que Ana, ao final da trilogia conclui que:

As cidades mudam com o tempo, à medida que se tornam familiares. Não me sinto mais estrangeira em Brasília. Tenho outros olhos e outro coração para as paisagens de sempre. A cidade já não me assombra, e as esperanças, que à minha revelia, me gera estão ao alcance de minha mão. Ela é minha, com seus vazios, sua frieza, sua solidão. Virei íntima de seu ar empoeirado e seco, da uniformidade de suas entrequadras, de seus longos eixos sob o céu gigante. (ALMINO, 2002: 202)

(*) Eloísa Pereira Barroso, Capítulo da tese intitulada Brasília: As Controvérsias da Utopia Modernista na Cidade das Palavras, apresentada ao Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília/UnB como parte dos requisitos para a obtenção do título de Doutora. Orientadora: Doutora Barbara Freitag Rouanet. Brasília, agosto de 2008.

Eloísa Pereira Barroso (*)

A linguagem literária, de certa forma, procura associar-se ao signo da cidade. Os textos mostram-se como palco por onde figura a corrosão da metrópole modernista. O escritor desnuda o encantamento, e os mitos que cercam a cidade capital e dá contornos nítidos à dimensão social de uma cidade que abdica de seus monumentos.

Assim é que a relação entre literatura e cidade na trilogia de João Almino composta pelos títulos “Idéias para onde passar o fim do mundo”, “Samba enredo” e “As cinco estações do amor” se dá pela busca da reflexão e da compreensão de questões que permeiam as experiências humanas vividas na cidade. Com um olhar voltado para aspectos referentes aos conflitos pessoais do sujeito moderno, Almino busca na narrativa uma possibilidade de expor e desenvolver uma cidade que está além dos monumentos de Niemeyer.

Nesse sentido, sua trilogia tem como pano de fundo Brasília, a capital do país, um lugar onde as personagens se encontram em situações de desilusão e desprovidas de sonho pois, Brasília não pertence aos meus personagens e nunca lhes vai pertencer. Mas é nesta cidade, com história e futuro ainda abertos, que está para surgir, vestido de fada ou de bruxa, um mito antigo, finalmente real: toda a novidade do mundo. (ALMINO, 2002: 18-19)

As cidades adquirem o ar dos tempos porque passam. Brasília, que tinha sido a promessa do socialismo e, para mim pessoalmente, de liberdade, não usava mais disfarce. A solação de suas cidades-satélites já as asfixiava. (ALMINO, 2001: 21)

Como sujeito inserido no contexto da cidade, o narrador pretendeu não somente expor aos olhos do leitor a sociedade brasileira, nem tão pouco pretendeu realizar uma reflexão impessoal acerca dela, mas acima de tudo, procurou refletir o homem dentro do universo de conflitos e desestabilidades gerados pelas contradições contidas nessa racionalidade moderna de um projeto e de um processo de megalopolização que se anuncia numa Brasília de políticos, de manifestações e de festas, de lugar dos imigrantes desiludidos…

TUDO em Brasília se dá à vista de imediato. Nos céus limpos e na luz generosa, os olhos alcançam longe, não somente o horizonte, também o limite entre a cidade e o campo. Traçados previsíveis, curvas esperadas. Porém, por trás desta luz escancarada e da evidência do que está delineado, persiste um mistério. (ALMINO, 2001: 61)

As reflexões propostas por Almino em sua trilogia, levam a crer que a ficção literária foi para esse autor, não só um lugar de conhecimento deste mistério da cidade, mas também de reconhecimento de uma sociedade que se move entre a justiça e a corrupção, entre sedutores e seduzidos.

À medida que a trilogia se desenrola, há a percepção de que junto a isso os valores éticos humanos vão gradativamente se perdendo, cedendo espaço para outros, em especial, aqueles impostos pela metrópole em degradação.

Tinha que conseguir dinheiro para o barraco, para ir embora ou mesmo para viver. Sentia vergonha de só agora pensar em procurar dona Eva, e para lhe pedir dinheiro. Foi quando lhe ocorreu um plano diabólico e salvador.

Nem tinha por que se vingar de Cadu. Ele não fora o culpado por sua gravidez. O filho era de Zé Maria. O que acontecera com Cadu tinha sido culpa dela. Pelo jeito como ele sorria para o sorriso dela, ela percebera a atração que despertava nele. Ele até lhe dera alegrias; a fizera esquecer, por algum tempo, dos perigos do mundo.

Contudo, a tentação era forte, e ela estava, de fato, precisando de dinheiro. Tivera a idéia assistindo a um filme de espionagem na televisão. Era fácil envolver Cadu. Fazia cinco meses que tinham se encontrado. Telefonou-lhe, então, para anunciar que estava grávida dele. Prometia guardar segredo, mas pedia dinheiro para os gastos.

Essa era a vantagem da cidade grande. (…) ali, ninguém a conhecia. Cidade grande era assim, tudo era permitido. (ALMINO, 2002: 71-72)

Ao interagir com as dinâmicas da cidade Almino cria uma narrativa experimental, que ora é atravessada por visões míticas, ora comporta um computador humanizado pela paixão, ora retrata estórias frustradas da geração remanescente de 68. As narrativas vão exigindo do leitor um processo imaginativo constante para entrecruzar todos os fragmentos anunciados na trilogia e compor a “fisiognomia” de Brasília. Almino não só parece brincarcom todos esses elementos existentes na narrativa, ele também se permite à criação de vários outros os quais marcam o cotidiano da cidade, afinal como ele próprio diz, é um anti-romancista.

Nessas primeiras anotações, nenhum personagem é apenas ele próprio. Num certo sentido, a verdadeira história foi outra, que deve ser restabelecida por mim. “Por que essa obsessão pela verdade?” você pode querer me perguntar. Já está no Banquete que importa mais a verossimilhança que a verdade. Mas é que quero deixar claro aqui meu papel de anti-romancista. (ALMINO, 2002: 214)

Na escrita da trilogia, o autor embriaga-se pela cidade. Põe em fulcro uma percepção de Brasília, infinitamente complexa.

Assim é que, tanto tempo depois de ter sido utopicamente jogada no futuro, agora nesse começo do ano 1 do governo de Paulo Antônio, tudo o que restava a Brasília e seus habitantes era contemplar seu passado de sonhos.

A cidade pertencia cada vez mais a um Brasil sem sonhos e desiludido. Já aceitava sua condição de pobre e o sacrifício de carregar aquela enorme cruz, seu próprio corpo, sangue, alma; cruz que inspiraria sua forma e conteúdo, à qual agora se reduzia.

Do socialismo futuro, restaram apenas a burocracia desencantada e o espaço totalitário, o Estado-senhor ocupando o Eixo Monumental.

A cidade, prevista para ser o coração do país, estava fora do Brasil. Era como um castelo medieval, isolado e auto-suficiente, nutrindo-se do seu feudo e imune aos arredores.

O Brasil havia, porém, crescido à sua volta, nas cidades satélites, da cidade livre –o Núcleo Bandeirante – a Taguatinga, do Gama ao Guará. (ALMINO, 2002: 23-24)

Ao reconstituir o espaço o autor não se importa em dilacerá-lo, o romancista apreende as vozes de todos os segmentos que compõem a cidade, aparecem no texto o poder público, as vozes dos políticos, das empregadas domésticas, dos caseiros… Enfim, para o autor não há distinção, a Brasília de todos os dias faz conviver as diferenças sociais tanto no Palácio da Alvorada, quanto em um barraco do Gama. Almino cria em sua obra a metáfora do corpo biológico que permite uma leitura da cidade ligada à tradição do corpo citadino, nesse sentido a cidade apreensível aos olhos não se distancia do indivíduo. Na trilogia o campo mimético adquire concretude cultural na qual aparece ligada ao universo social cuja política e economia se revelam pelas tradições e pelas ações das personagens. (Gomes, 1994).

Ao humanizar a cidade e torná-la lugar por onde transitam as personagens nas suas ações cotidianas, Almino possibilita a descrição e a reconstituição da imagem de Brasília. Uma imagem carregada de tensões sociais em que o povo disputa no e com o espaço urbano a sobrevivência cotidiana. Assim é o exemplo de Berenice.

Brasília e seus arredores haviam se tornado inabitáveis. Ela não sabia onde cair morta. A história do país era outra, sua própria história era outra, seu destino seguia um rumo inesperado. (ALMINO, 2002: 73)

“Idéias para onde passar o fim do mundo”, o primeiro volume da trilogia, pode ser definido como sendo o fio condutor de uma longa e angustiante caminhada na trilha da cidade de carne e osso empreendida pelo autor.

Nele, as personagens surgem enquanto representações da discussão pretendida por Almino a respeito do que acontece com os valores humanos a partir das transformações geradas quando os valores da tradição vão, gradualmente, perdendo espaço para o pensamento e ações modernas.

As personagens do romance parecem perdidas no seu tempo, angustiadas, tristes e melancólicas, não conseguem conduzir suas vidas de modo claro, pois não conseguem enxergar com nitidez as mudanças porque passa o mundo, cada vez mais inserido no processo racional e mercantilista. Assim é que Eva Ousava ser ela mesma e, portanto, estar infeliz. De repente, naquele momento, era como se todo o seu passado tivesse sido muito triste. A tristeza e a insatisfação eram os traços comuns da sua vida. Sempre tivera uma dificuldade intransponível de escolher o que devia ser, fazer, aonde devia chegar. Sempre duvidava do que a deixaria feliz. Quando achava que podia ser o que quisesse, era difícil demais saber o que queria ser. Por que ainda tinha de se perguntar essas coisas? Cada decisão que tomava, anos depois continuava achando que era a única possível, mas percebia também que essa decisão já tinha perdido significado para ela. Descobria sempre que hoje, insatisfeita e triste, sua felicidade futura e definitiva dependia de outra decisão. A sua tristeza agora era sempre, e, sobretudo, a tristeza de não ser. (ALMINO, 2002: 122)

“Samba – Enredo” parece continuar as inquietações de “Idéias para onde passar o fim do mundo”. Do mesmo modo que falta essa compreensão da realidade moderna no primeiro volume da trilogia, ela se repete neste segundo livro. As personagens não se permitem desapegar das tradições e convenções sociais, mantidas pela classe social a que pertence.

Se no plano social as personagens convivem com mundos distintos, modernidade versus tradição; no plano pessoal a dualidade mais uma vez se faz presente. Os sentimentos de apego às tradições, de inércia, de medo de romper com as tradições, se confrontam em vários momentos com pequenas transgressões colocadas na narrativa por meio de uma linguagem alegórica em que a festa carnavalesca torna-se pano de fundo para a narrativa insurgir.

Como tentativa de clarear o debate em torno dessas questões surge o computador quase humano, que exerce o papel narrador dessa história.

É difícil escrever histórias sobre homens. Mais difícil ainda é contar a história de um homem como se isso fosse fundamental. A vida humana é o que acontece entre o nada e o nada. Por isso, parece-me incompreensível que os homens lutem por viver. Viver, pior que arriscado, é difícil. (ALMINO, 1994: 21)

Nesse sentido, o computador narrador, jogado no lixo, questiona os valores construídos pela racionalidade moderna, questiona também os valores arraigados nas personagens e mostra como esse apego às tradições as impedem de ver e agir com sensatez.

É possível afirmar que no universo subjetivo também habitam dois universos distintos e opostos entre si, um objetivo, regido pela razão e o outro regido pela emoção nos dois volumes. Aliás, o jogo entre a objetividade e a subjetividade é algo que também se verifica em “As cinco estações do amor”.

Em conseqüência disso, em algumas situações, no último livro da trilogia “As cinco estações do amor”, ao mesmo tempo em que a emoção sugere aos que transgridem os valores e as convenções sociais, a razão e a consciência das tradições não o permitem fazê-lo.

Dessa maneira, além de tornar as personagens incapazes de tomar atitudes, os conflitos internos gerados pela convivência simultânea com os mundos, as fazem oscilar entre a consciência e a inconsciência, vivendo, portanto, numa condição próxima daquela que sofrem os moradores de uma Brasília rasteira e barulhenta, que acolhe uma revolução que não se concretizou. Nessa situação, as personagens vivem as suas escolhas e, diante delas, não têm nada para comemorarem nesse novo milênio, pois tanto para Ana, quanto para a cidade o tempo passou.

Minha juventude está perdida. A Brasília do meu sonho de futuro está morta. Reconheço-me nas fachadas de seus prédios precocemente envelhecidos, na sua modernidade precária e decadente. (ALMINO, 2001: 40)

Embora esteja sempre diante da possibilidade de fazer opções, por completa ausência de vontades individuais, falta de percepção, e, por conseguinte, total incapacidade de objetivar a realidade, as personagens acabam se apegando àquilo que lhe foi imposto.

Por decreto ou por invasão elas aportaram na cidade e fincaram o pé na poeira vermelha para sempre. Isso fica claro quando Ana em conversa com Berenice diz:

– De Brasília não saio, por mais que Regina insista. (ALMINO, 2001: 42)

Em resumo, as personagens da trilogia podem ser descritas como seres que vivenciam os conflitos da existência humana gerada pela oposição entre a racionalidade e a irracionalidade, da cidade que ora é asséptica, desprovida de emoção, ora é à medida da emoção, ou seja, a Brasília de Almino não é somente a visão do poder, ela expressa a dualidade das megalópoles que abrigam as contradições dadas pelo jogo de oposições entre a extrema riqueza e a extrema pobreza, entre a o moderno e o arcaico, entre a esperança e a desesperança. Para o romancista a cidade não demonstra, portanto, equilíbrio entre a razão e a emoção. Assim é que todo o misticismo do “Jardim da Salvação”, fincado no parque de Águas Emendadas adquire sentido na narrativa.

As personagens “jogadas” no espaço urbano são seres que convivem de modo real com as situações que lhes são colocadas sem, no entanto, ter consciência e controle plenos do que acontece com elas, deixam-se levar, conseqüentemente, pelas circunstâncias.

Ao expor os conflitos das personagens, Almino torna a trilogia o ponto de partida em direção às reflexões acerca da situação humana dentro de um emaranhado nebuloso em que as pessoas se vêem escapando às referências convencionais colocadas para o indivíduo na metrópole. Assim, no mundo urbano, há conseqüentemente cada vez mais seres angustiados, solitários, fragmentados e sem perspectivas. Isso se reflete nas palavras de Paulinho o presidente negro, assassinado durante o carnaval.

Para mim, felicidade ou não existe, ou não sei o que é. Na realidade ficaria preocupado se a atingisse. Já pensou? Seria uma espécie de fim de tudo. Um estado parecido com a morte. (ALMINO, 1994: 64)

As palavras de Berenice, uma empregada doméstica retirante do Ceará, sobre os sentimentos que tem em relação a Brasília no trecho a seguir são bem esclarecedoras.

No regresso ao sertão, Brasília ficou na cabeça de Berenice como o símbolo do moderno, do belo, do limpo, do civilizado, do culto, e também da violência, do poder. Brasília ficou em sua cabeça como o sonho de liberdade, pesadelo de castigo, intervalo para viver, lembrança de Zé Maria. Brasília era, para Berenice, só uma ponte de fuga de si mesma e de regresso a si mesma. Ali se narravam, superpostas, histórias velhas e novas de Berenice (ALMINO, 2001: 85).

A cidade ao interferir no modo de Berenice ver o mundo, não só traz o ponto de vista pautado na razão, mas também desenvolve uma reflexão bastante significativa sobre os valores da modernidade ao demonstrar maior proximidade pelas causas e pensamentos modernos no que se refere à cidade cindida. A personagem ao enxergar Brasília se vê refletida nela, é como se a cidade estabelecesse para ela a alteridade. Portanto, com maior clareza, ao analisar Brasília, Berenice parece ciente das causas e das conseqüências dos “atavismos” que ligam o homem de seu tempo aos valores do passado.

Ao proceder dessa maneira, Berenice se apresenta com outra função no texto, nessas horas, ela se torna um porta-voz da causa moderna. Nos momentos da narrativa em que se apresenta, a fala de Berenice se traduz na forma de um discurso bem elaborado acerca dos sentimentos que a ligam à cidade. Tem-se a impressão de que por meio de Berenice, a voz do autor se confunde com a voz dela. O romancista parece valer-se dessa personagem, nesse primeiro momento, para se inserir na ficção expondo seu ponto de vista e refletindo sobre a cidade e os valores a ela agregados.

O narrador-autor de “Idéias para onde passar o fim do mundo” é, visivelmente, um elemento que permite uma maior inserção do pensamento do autor no interior do texto.

Apesar da terceira pessoa, esse narrador não apenas observa os fatos, mas participa deles, dialogando com a narrativa. A voz presente no texto é senão a voz que expressa e conduz uma reflexão do pensamento sobre a cidade de Brasília.

Espere! Leia só esta revelação de última hora e primeira mão: não houve história. Brasília era demasiado artificial. Era apenas sonho ou pesadelo de uma época. Imagem do céu e inferno. Não podia ser lugar de uma verdadeira história. (ALMINO, 2001: 237)

Em “Idéias para onde passar o fim do mundo” o narrador consegue manter uma postura rígida no controle da fala de suas personagens. Conhecemos as personagens que se repetirão nos outros volumes, quase que exclusivamente por meio do discurso do narrador.

A expressão curiosamente se faz oportuna porque há um aspecto de nebulosidade envolvendo a relação entre as personagens, e não parece ser de interesse do narrador resolver ou esclarecer para o leitor tal situação, pelo menos nesse momento, haja vista “esta história nunca foi e nunca será escrita” (ALMINO, 2001: 237).

Essa circunstância serve aos propósitos do autor-narrador, visto que o diálogo mantido pelas personagens é jogado no meio do nada, não tendo o leitor, portanto, nenhuma condição de entender as reais intenções delas. Agindo assim, o narrador consegue manter o clima de mistério em torno das mesmas.

Se a vida objetiva das personagens ultrapassa os limites territoriais, buscando novos mundos, novas culturas, para expansão, principalmente de mercados, no mundo subjetivo, os atavismos sentimentais fazem parte de suas naturezas. Em “Idéias para onde passar o fim do mundo” há indícios de que romper com o cotidiano faz estas personagens verem se livres de quaisquer sentimentos que pudessem mantê-las aprisionadas às convenções.

No restante da narrativa o leitor tem contato com as personagens quase que exclusivamente pela interposição do narrador-autor/autor-narrador; é nesse sentido que parece ser possível a afirmativa de que Almino se utiliza da criação ficcional como meio de veicular e possivelmente formular e refletir sobre o seu próprio pensamento enquanto reflete sobre a cidade.

Na trilogia, a coexistência em mundos paradoxais é a responsável pelos conflitos das personagens.

Mediante a análise dos elementos utilizados na construção dessa trilogia, percebe-se que houve uma tentativa de levar à percepção desses mundos diferentes habitados pelas personagens por meio da utilização de elementos palpáveis, como a política, os círculos de amigos, o bar Beirute, os blocos de apartamentos da Asa Sul, daí a oposição se construir na narrativa pela Cidade monumental e cidade das desilusões.

Pautando-se em tais elementos, para desenvolver seu pensamento, Almino lança mão de vários recursos na composição de seu texto. Na trilogia o corpo textual parece ser meticulosamente construído para que as relações entre esses elementos, o pensamento do autor e a estrutura da obra correlacionem-se de modo a dar credibilidade e coerência à cidade. Comecemos, pois, pelo primeiro elemento considerado significativo.

Na trilogia, a sobreposição dos sentimentos sobre as vontades do indivíduo é algo possível de ser analisado do início ao final das narrativas.

A perda e a falta de perspectivas paralisam as ações do sujeito diante dos acontecimentos. Tais sentimentos tornam-se tão ou mais significativos que o próprio indivíduo, porque as ações das personagens, em especial de Ana, Berenice… são resultantes da força que esses sentimentos exercem sobre o sujeito.

Assim, ante a leitura do universo das personagens é possível perceber que as forças que impulsionam seus movimentos se sobrepõem às vontades individuais.

Com isso, Almino parece sugerir que as personagem são criadas para condensarem, representarem e fazerem pensar o homem dentro de um contexto urbano. Este contexto é o responsável pelas incertezas trazidas pelo pensamento e ações modernos sobre as instituições estáveis e tradicionais, tais como a organização do trabalho, os modos de produção, a religião…, Este contexto além de provocar modificações nas estruturas sociais, ao mesmo tempo altera e desestabiliza as relações pessoais. É dessa forma que Ana, ao final da trilogia conclui que:

As cidades mudam com o tempo, à medida que se tornam familiares. Não me sinto mais estrangeira em Brasília. Tenho outros olhos e outro coração para as paisagens de sempre. A cidade já não me assombra, e as esperanças, que à minha revelia, me gera estão ao alcance de minha mão. Ela é minha, com seus vazios, sua frieza, sua solidão. Virei íntima de seu ar empoeirado e seco, da uniformidade de suas entrequadras, de seus longos eixos sob o céu gigante. (ALMINO, 2002: 202)

(*) Eloísa Pereira Barroso, Capítulo da tese intitulada Brasília: As Controvérsias da Utopia Modernista na Cidade das Palavras, apresentada ao Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília/UnB como parte dos requisitos para a obtenção do título de Doutora. Orientadora: Doutora Barbara Freitag Rouanet. Brasília, agosto de 2008.

Eloísa Pereira Barroso (*)

A linguagem literária, de certa forma, procura associar-se ao signo da cidade. Os textos mostram-se como palco por onde figura a corrosão da metrópole modernista. O escritor desnuda o encantamento, e os mitos que cercam a cidade capital e dá contornos nítidos à dimensão social de uma cidade que abdica de seus monumentos.

Assim é que a relação entre literatura e cidade na trilogia de João Almino composta pelos títulos “Idéias para onde passar o fim do mundo”, “Samba enredo” e “As cinco estações do amor” se dá pela busca da reflexão e da compreensão de questões que permeiam as experiências humanas vividas na cidade. Com um olhar voltado para aspectos referentes aos conflitos pessoais do sujeito moderno, Almino busca na narrativa uma possibilidade de expor e desenvolver uma cidade que está além dos monumentos de Niemeyer.

Nesse sentido, sua trilogia tem como pano de fundo Brasília, a capital do país, um lugar onde as personagens se encontram em situações de desilusão e desprovidas de sonho pois, Brasília não pertence aos meus personagens e nunca lhes vai pertencer. Mas é nesta cidade, com história e futuro ainda abertos, que está para surgir, vestido de fada ou de bruxa, um mito antigo, finalmente real: toda a novidade do mundo. (ALMINO, 2002: 18-19)

As cidades adquirem o ar dos tempos porque passam. Brasília, que tinha sido a promessa do socialismo e, para mim pessoalmente, de liberdade, não usava mais disfarce. A solação de suas cidades-satélites já as asfixiava. (ALMINO, 2001: 21)

Como sujeito inserido no contexto da cidade, o narrador pretendeu não somente expor aos olhos do leitor a sociedade brasileira, nem tão pouco pretendeu realizar uma reflexão impessoal acerca dela, mas acima de tudo, procurou refletir o homem dentro do universo de conflitos e desestabilidades gerados pelas contradições contidas nessa racionalidade moderna de um projeto e de um processo de megalopolização que se anuncia numa Brasília de políticos, de manifestações e de festas, de lugar dos imigrantes desiludidos…

TUDO em Brasília se dá à vista de imediato. Nos céus limpos e na luz generosa, os olhos alcançam longe, não somente o horizonte, também o limite entre a cidade e o campo. Traçados previsíveis, curvas esperadas. Porém, por trás desta luz escancarada e da evidência do que está delineado, persiste um mistério. (ALMINO, 2001: 61)

As reflexões propostas por Almino em sua trilogia, levam a crer que a ficção literária foi para esse autor, não só um lugar de conhecimento deste mistério da cidade, mas também de reconhecimento de uma sociedade que se move entre a justiça e a corrupção, entre sedutores e seduzidos.

À medida que a trilogia se desenrola, há a percepção de que junto a isso os valores éticos humanos vão gradativamente se perdendo, cedendo espaço para outros, em especial, aqueles impostos pela metrópole em degradação.

Tinha que conseguir dinheiro para o barraco, para ir embora ou mesmo para viver. Sentia vergonha de só agora pensar em procurar dona Eva, e para lhe pedir dinheiro. Foi quando lhe ocorreu um plano diabólico e salvador.

Nem tinha por que se vingar de Cadu. Ele não fora o culpado por sua gravidez. O filho era de Zé Maria. O que acontecera com Cadu tinha sido culpa dela. Pelo jeito como ele sorria para o sorriso dela, ela percebera a atração que despertava nele. Ele até lhe dera alegrias; a fizera esquecer, por algum tempo, dos perigos do mundo.

Contudo, a tentação era forte, e ela estava, de fato, precisando de dinheiro. Tivera a idéia assistindo a um filme de espionagem na televisão. Era fácil envolver Cadu. Fazia cinco meses que tinham se encontrado. Telefonou-lhe, então, para anunciar que estava grávida dele. Prometia guardar segredo, mas pedia dinheiro para os gastos.

Essa era a vantagem da cidade grande. (…) ali, ninguém a conhecia. Cidade grande era assim, tudo era permitido. (ALMINO, 2002: 71-72)

Ao interagir com as dinâmicas da cidade Almino cria uma narrativa experimental, que ora é atravessada por visões míticas, ora comporta um computador humanizado pela paixão, ora retrata estórias frustradas da geração remanescente de 68. As narrativas vão exigindo do leitor um processo imaginativo constante para entrecruzar todos os fragmentos anunciados na trilogia e compor a “fisiognomia” de Brasília. Almino não só parece brincarcom todos esses elementos existentes na narrativa, ele também se permite à criação de vários outros os quais marcam o cotidiano da cidade, afinal como ele próprio diz, é um anti-romancista.

Nessas primeiras anotações, nenhum personagem é apenas ele próprio. Num certo sentido, a verdadeira história foi outra, que deve ser restabelecida por mim. “Por que essa obsessão pela verdade?” você pode querer me perguntar. Já está no Banquete que importa mais a verossimilhança que a verdade. Mas é que quero deixar claro aqui meu papel de anti-romancista. (ALMINO, 2002: 214)

Na escrita da trilogia, o autor embriaga-se pela cidade. Põe em fulcro uma percepção de Brasília, infinitamente complexa.

Assim é que, tanto tempo depois de ter sido utopicamente jogada no futuro, agora nesse começo do ano 1 do governo de Paulo Antônio, tudo o que restava a Brasília e seus habitantes era contemplar seu passado de sonhos.

A cidade pertencia cada vez mais a um Brasil sem sonhos e desiludido. Já aceitava sua condição de pobre e o sacrifício de carregar aquela enorme cruz, seu próprio corpo, sangue, alma; cruz que inspiraria sua forma e conteúdo, à qual agora se reduzia.

Do socialismo futuro, restaram apenas a burocracia desencantada e o espaço totalitário, o Estado-senhor ocupando o Eixo Monumental.

A cidade, prevista para ser o coração do país, estava fora do Brasil. Era como um castelo medieval, isolado e auto-suficiente, nutrindo-se do seu feudo e imune aos arredores.

O Brasil havia, porém, crescido à sua volta, nas cidades satélites, da cidade livre –o Núcleo Bandeirante – a Taguatinga, do Gama ao Guará. (ALMINO, 2002: 23-24)

Ao reconstituir o espaço o autor não se importa em dilacerá-lo, o romancista apreende as vozes de todos os segmentos que compõem a cidade, aparecem no texto o poder público, as vozes dos políticos, das empregadas domésticas, dos caseiros… Enfim, para o autor não há distinção, a Brasília de todos os dias faz conviver as diferenças sociais tanto no Palácio da Alvorada, quanto em um barraco do Gama. Almino cria em sua obra a metáfora do corpo biológico que permite uma leitura da cidade ligada à tradição do corpo citadino, nesse sentido a cidade apreensível aos olhos não se distancia do indivíduo. Na trilogia o campo mimético adquire concretude cultural na qual aparece ligada ao universo social cuja política e economia se revelam pelas tradições e pelas ações das personagens. (Gomes, 1994).

Ao humanizar a cidade e torná-la lugar por onde transitam as personagens nas suas ações cotidianas, Almino possibilita a descrição e a reconstituição da imagem de Brasília. Uma imagem carregada de tensões sociais em que o povo disputa no e com o espaço urbano a sobrevivência cotidiana. Assim é o exemplo de Berenice.

Brasília e seus arredores haviam se tornado inabitáveis. Ela não sabia onde cair morta. A história do país era outra, sua própria história era outra, seu destino seguia um rumo inesperado. (ALMINO, 2002: 73)

“Idéias para onde passar o fim do mundo”, o primeiro volume da trilogia, pode ser definido como sendo o fio condutor de uma longa e angustiante caminhada na trilha da cidade de carne e osso empreendida pelo autor.

Nele, as personagens surgem enquanto representações da discussão pretendida por Almino a respeito do que acontece com os valores humanos a partir das transformações geradas quando os valores da tradição vão, gradualmente, perdendo espaço para o pensamento e ações modernas.

As personagens do romance parecem perdidas no seu tempo, angustiadas, tristes e melancólicas, não conseguem conduzir suas vidas de modo claro, pois não conseguem enxergar com nitidez as mudanças porque passa o mundo, cada vez mais inserido no processo racional e mercantilista. Assim é que Eva Ousava ser ela mesma e, portanto, estar infeliz. De repente, naquele momento, era como se todo o seu passado tivesse sido muito triste. A tristeza e a insatisfação eram os traços comuns da sua vida. Sempre tivera uma dificuldade intransponível de escolher o que devia ser, fazer, aonde devia chegar. Sempre duvidava do que a deixaria feliz. Quando achava que podia ser o que quisesse, era difícil demais saber o que queria ser. Por que ainda tinha de se perguntar essas coisas? Cada decisão que tomava, anos depois continuava achando que era a única possível, mas percebia também que essa decisão já tinha perdido significado para ela. Descobria sempre que hoje, insatisfeita e triste, sua felicidade futura e definitiva dependia de outra decisão. A sua tristeza agora era sempre, e, sobretudo, a tristeza de não ser. (ALMINO, 2002: 122)

“Samba – Enredo” parece continuar as inquietações de “Idéias para onde passar o fim do mundo”. Do mesmo modo que falta essa compreensão da realidade moderna no primeiro volume da trilogia, ela se repete neste segundo livro. As personagens não se permitem desapegar das tradições e convenções sociais, mantidas pela classe social a que pertence.

Se no plano social as personagens convivem com mundos distintos, modernidade versus tradição; no plano pessoal a dualidade mais uma vez se faz presente. Os sentimentos de apego às tradições, de inércia, de medo de romper com as tradições, se confrontam em vários momentos com pequenas transgressões colocadas na narrativa por meio de uma linguagem alegórica em que a festa carnavalesca torna-se pano de fundo para a narrativa insurgir.

Como tentativa de clarear o debate em torno dessas questões surge o computador quase humano, que exerce o papel narrador dessa história.

É difícil escrever histórias sobre homens. Mais difícil ainda é contar a história de um homem como se isso fosse fundamental. A vida humana é o que acontece entre o nada e o nada. Por isso, parece-me incompreensível que os homens lutem por viver. Viver, pior que arriscado, é difícil. (ALMINO, 1994: 21)

Nesse sentido, o computador narrador, jogado no lixo, questiona os valores construídos pela racionalidade moderna, questiona também os valores arraigados nas personagens e mostra como esse apego às tradições as impedem de ver e agir com sensatez.

É possível afirmar que no universo subjetivo também habitam dois universos distintos e opostos entre si, um objetivo, regido pela razão e o outro regido pela emoção nos dois volumes. Aliás, o jogo entre a objetividade e a subjetividade é algo que também se verifica em “As cinco estações do amor”.

Em conseqüência disso, em algumas situações, no último livro da trilogia “As cinco estações do amor”, ao mesmo tempo em que a emoção sugere aos que transgridem os valores e as convenções sociais, a razão e a consciência das tradições não o permitem fazê-lo.

Dessa maneira, além de tornar as personagens incapazes de tomar atitudes, os conflitos internos gerados pela convivência simultânea com os mundos, as fazem oscilar entre a consciência e a inconsciência, vivendo, portanto, numa condição próxima daquela que sofrem os moradores de uma Brasília rasteira e barulhenta, que acolhe uma revolução que não se concretizou. Nessa situação, as personagens vivem as suas escolhas e, diante delas, não têm nada para comemorarem nesse novo milênio, pois tanto para Ana, quanto para a cidade o tempo passou.

Minha juventude está perdida. A Brasília do meu sonho de futuro está morta. Reconheço-me nas fachadas de seus prédios precocemente envelhecidos, na sua modernidade precária e decadente. (ALMINO, 2001: 40)

Embora esteja sempre diante da possibilidade de fazer opções, por completa ausência de vontades individuais, falta de percepção, e, por conseguinte, total incapacidade de objetivar a realidade, as personagens acabam se apegando àquilo que lhe foi imposto.

Por decreto ou por invasão elas aportaram na cidade e fincaram o pé na poeira vermelha para sempre. Isso fica claro quando Ana em conversa com Berenice diz:

– De Brasília não saio, por mais que Regina insista. (ALMINO, 2001: 42)

Em resumo, as personagens da trilogia podem ser descritas como seres que vivenciam os conflitos da existência humana gerada pela oposição entre a racionalidade e a irracionalidade, da cidade que ora é asséptica, desprovida de emoção, ora é à medida da emoção, ou seja, a Brasília de Almino não é somente a visão do poder, ela expressa a dualidade das megalópoles que abrigam as contradições dadas pelo jogo de oposições entre a extrema riqueza e a extrema pobreza, entre a o moderno e o arcaico, entre a esperança e a desesperança. Para o romancista a cidade não demonstra, portanto, equilíbrio entre a razão e a emoção. Assim é que todo o misticismo do “Jardim da Salvação”, fincado no parque de Águas Emendadas adquire sentido na narrativa.

As personagens “jogadas” no espaço urbano são seres que convivem de modo real com as situações que lhes são colocadas sem, no entanto, ter consciência e controle plenos do que acontece com elas, deixam-se levar, conseqüentemente, pelas circunstâncias.

Ao expor os conflitos das personagens, Almino torna a trilogia o ponto de partida em direção às reflexões acerca da situação humana dentro de um emaranhado nebuloso em que as pessoas se vêem escapando às referências convencionais colocadas para o indivíduo na metrópole. Assim, no mundo urbano, há conseqüentemente cada vez mais seres angustiados, solitários, fragmentados e sem perspectivas. Isso se reflete nas palavras de Paulinho o presidente negro, assassinado durante o carnaval.

Para mim, felicidade ou não existe, ou não sei o que é. Na realidade ficaria preocupado se a atingisse. Já pensou? Seria uma espécie de fim de tudo. Um estado parecido com a morte. (ALMINO, 1994: 64)

As palavras de Berenice, uma empregada doméstica retirante do Ceará, sobre os sentimentos que tem em relação a Brasília no trecho a seguir são bem esclarecedoras.

No regresso ao sertão, Brasília ficou na cabeça de Berenice como o símbolo do moderno, do belo, do limpo, do civilizado, do culto, e também da violência, do poder. Brasília ficou em sua cabeça como o sonho de liberdade, pesadelo de castigo, intervalo para viver, lembrança de Zé Maria. Brasília era, para Berenice, só uma ponte de fuga de si mesma e de regresso a si mesma. Ali se narravam, superpostas, histórias velhas e novas de Berenice (ALMINO, 2001: 85).

A cidade ao interferir no modo de Berenice ver o mundo, não só traz o ponto de vista pautado na razão, mas também desenvolve uma reflexão bastante significativa sobre os valores da modernidade ao demonstrar maior proximidade pelas causas e pensamentos modernos no que se refere à cidade cindida. A personagem ao enxergar Brasília se vê refletida nela, é como se a cidade estabelecesse para ela a alteridade. Portanto, com maior clareza, ao analisar Brasília, Berenice parece ciente das causas e das conseqüências dos “atavismos” que ligam o homem de seu tempo aos valores do passado.

Ao proceder dessa maneira, Berenice se apresenta com outra função no texto, nessas horas, ela se torna um porta-voz da causa moderna. Nos momentos da narrativa em que se apresenta, a fala de Berenice se traduz na forma de um discurso bem elaborado acerca dos sentimentos que a ligam à cidade. Tem-se a impressão de que por meio de Berenice, a voz do autor se confunde com a voz dela. O romancista parece valer-se dessa personagem, nesse primeiro momento, para se inserir na ficção expondo seu ponto de vista e refletindo sobre a cidade e os valores a ela agregados.

O narrador-autor de “Idéias para onde passar o fim do mundo” é, visivelmente, um elemento que permite uma maior inserção do pensamento do autor no interior do texto.

Apesar da terceira pessoa, esse narrador não apenas observa os fatos, mas participa deles, dialogando com a narrativa. A voz presente no texto é senão a voz que expressa e conduz uma reflexão do pensamento sobre a cidade de Brasília.

Espere! Leia só esta revelação de última hora e primeira mão: não houve história. Brasília era demasiado artificial. Era apenas sonho ou pesadelo de uma época. Imagem do céu e inferno. Não podia ser lugar de uma verdadeira história. (ALMINO, 2001: 237)

Em “Idéias para onde passar o fim do mundo” o narrador consegue manter uma postura rígida no controle da fala de suas personagens. Conhecemos as personagens que se repetirão nos outros volumes, quase que exclusivamente por meio do discurso do narrador.

A expressão curiosamente se faz oportuna porque há um aspecto de nebulosidade envolvendo a relação entre as personagens, e não parece ser de interesse do narrador resolver ou esclarecer para o leitor tal situação, pelo menos nesse momento, haja vista “esta história nunca foi e nunca será escrita” (ALMINO, 2001: 237).

Essa circunstância serve aos propósitos do autor-narrador, visto que o diálogo mantido pelas personagens é jogado no meio do nada, não tendo o leitor, portanto, nenhuma condição de entender as reais intenções delas. Agindo assim, o narrador consegue manter o clima de mistério em torno das mesmas.

Se a vida objetiva das personagens ultrapassa os limites territoriais, buscando novos mundos, novas culturas, para expansão, principalmente de mercados, no mundo subjetivo, os atavismos sentimentais fazem parte de suas naturezas. Em “Idéias para onde passar o fim do mundo” há indícios de que romper com o cotidiano faz estas personagens verem se livres de quaisquer sentimentos que pudessem mantê-las aprisionadas às convenções.

No restante da narrativa o leitor tem contato com as personagens quase que exclusivamente pela interposição do narrador-autor/autor-narrador; é nesse sentido que parece ser possível a afirmativa de que Almino se utiliza da criação ficcional como meio de veicular e possivelmente formular e refletir sobre o seu próprio pensamento enquanto reflete sobre a cidade.

Na trilogia, a coexistência em mundos paradoxais é a responsável pelos conflitos das personagens.

Mediante a análise dos elementos utilizados na construção dessa trilogia, percebe-se que houve uma tentativa de levar à percepção desses mundos diferentes habitados pelas personagens por meio da utilização de elementos palpáveis, como a política, os círculos de amigos, o bar Beirute, os blocos de apartamentos da Asa Sul, daí a oposição se construir na narrativa pela Cidade monumental e cidade das desilusões.

Pautando-se em tais elementos, para desenvolver seu pensamento, Almino lança mão de vários recursos na composição de seu texto. Na trilogia o corpo textual parece ser meticulosamente construído para que as relações entre esses elementos, o pensamento do autor e a estrutura da obra correlacionem-se de modo a dar credibilidade e coerência à cidade. Comecemos, pois, pelo primeiro elemento considerado significativo.

Na trilogia, a sobreposição dos sentimentos sobre as vontades do indivíduo é algo possível de ser analisado do início ao final das narrativas.

A perda e a falta de perspectivas paralisam as ações do sujeito diante dos acontecimentos. Tais sentimentos tornam-se tão ou mais significativos que o próprio indivíduo, porque as ações das personagens, em especial de Ana, Berenice… são resultantes da força que esses sentimentos exercem sobre o sujeito.

Assim, ante a leitura do universo das personagens é possível perceber que as forças que impulsionam seus movimentos se sobrepõem às vontades individuais.

Com isso, Almino parece sugerir que as personagem são criadas para condensarem, representarem e fazerem pensar o homem dentro de um contexto urbano. Este contexto é o responsável pelas incertezas trazidas pelo pensamento e ações modernos sobre as instituições estáveis e tradicionais, tais como a organização do trabalho, os modos de produção, a religião…, Este contexto além de provocar modificações nas estruturas sociais, ao mesmo tempo altera e desestabiliza as relações pessoais. É dessa forma que Ana, ao final da trilogia conclui que:

As cidades mudam com o tempo, à medida que se tornam familiares. Não me sinto mais estrangeira em Brasília. Tenho outros olhos e outro coração para as paisagens de sempre. A cidade já não me assombra, e as esperanças, que à minha revelia, me gera estão ao alcance de minha mão. Ela é minha, com seus vazios, sua frieza, sua solidão. Virei íntima de seu ar empoeirado e seco, da uniformidade de suas entrequadras, de seus longos eixos sob o céu gigante. (ALMINO, 2002: 202)

(*) Eloísa Pereira Barroso, Capítulo da tese intitulada Brasília: As Controvérsias da Utopia Modernista na Cidade das Palavras, apresentada ao Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília/UnB como parte dos requisitos para a obtenção do título de Doutora. Orientadora: Doutora Barbara Freitag Rouanet. Brasília, agosto de 2008.