Samba-Enredo, de João Almino. Luiz F. Valente, Chásqui, Journal of Latin American Literature

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Chásqui: Journal of Latin American Literature, vol. 24, I (March 1995): 79-80

Almino, João, Samba-Enredo, São Paulo: Marco Zero, 1994, 208 pp.

Em seu segundo romance, o diplomata, ensaísta, fotógrafo e ficcionista João Almino nos transporta ao futuro — mais precisamente ao ano 2101 — para lançar um penetrante olhar crítico sobre o Brasil contemporâneo. O enredo focaliza a vida pública, as ligações amorosas, o sequestro e o eventual assassinato de Paulo Antônio Fernanes, político populista que chega à Presidência da República quando, numa alusão nada velada ao momento atual, “a nave desvairada dos brasileiros, perdida num oceano de intrigas, prestes a naufragar, esperara dele que fosse o comandante a atracá-la ao porto.” Aos poucos a narrativa vai assumindo contornos de um verdadeiro “samba do crioulo doido”, cuja incongruência espelha as contradições e dissonâncias que, paradoxalmente, caracterizam a precária identidade nacional brasileira.

Mola-mestra deste romance, essa incongruência aparece já na insólita confluência do narrador, o microcomputador G.G. (cujo nome deve ser pronunciado não Gegê, mas Gigi, em inglês, como convém a um computador), e da ação, que se passa durante o Carnaval de um ano no qual, significativamente, o tema comum dos sambas-enredo é uma das mais notórias características nacionais: o improviso. A perplexidade do leitor corresponde à de qualquer observador da realidade brasileira, onde a tecnologia de ponta coexiste com as mais tradicionais formas de vida, pois, como o universo ficcional de João Almino, o Brasil é um lugar cheio de surpresas, onde nada é exatamente o que “deveria” ser.

G.G. coloca sua narrativa ao serviço do fantasma de Sílvia, filha de Paulo Antônio, por quem G.G. está apaixonado(a) — o gênero do computador permanece ambíguo por todo o romance — a fim de auxiliá-la na tarefa de resgatar a memória (o jogo de palavras não é acidental) do pai. Almino faz desfilar uma galeria de personagens que o leitor brasileiro reconhece com facilidade: corruptos, marginais, alienados, cínicos, preguiçosos, drogados, exibicionistas, e aproveitadores de toda ordem. Destituídos de profundidade psicológica, esses personagens de papelão criam um efeito de estranhamento que, dificultando qualquer identificação emocional do leitor com o texto, abrem espaço para uma consideração de muitos dos mais preocupantes problemas nacionais e para uma reflexão sobre o que significa ser brasileiro neste final de século. Não há dúvida, portanto, que por trás da fantasia e do humor, esconde-se um arguto romance de idéias.

Como tantos outros escritores contemporâneos, João Almino opera sob o signo da intertextualidade, mais exatamente o da paródia de dois gêneros bastante praticados atualmente: o romance histórico, no qual se pretende recuperar o passado, geralmente para se compreender melhor o presente, e a ficção científica, na qual se quer projetar um futuro que de alguma forma retifique os problemas do presente. Almino realiza uma inteligente mescla desses dois gêneros, fazendo malograr tanto o resgate do passado quanto a utopia do futuro. O leitor constata que o passado é esquecido com rapidez e até mesmo leviandade, e que o futuro se assemelha demais ao presente para que possa introduzir algo de realmente diferente. O romance assinala essa circularidade ainda no primeiro capítulo, quando G.G. tem um pesadelo no qual um homem aparece queimando livros, isto é, destruindo a memória do passado, ao mesmo tempo em que, desconsolado, G.G. não consegue utilizar sua memória (mais uma vez o jogo de palavras é proposital) para salvar nada, nem mesmo o que, num felicíssimo oximóron, o narrador define como os “detritos do futuro.” Assim o romance sepulta o desgastado mito do Brasil como “país do futuro”, sugerindo pessimisticamente que um futuro promissor é impossível num país de memória curta.

Servindo-se de um humor afiado e elaborando uma sátira contundente, João Almino retoma e renova o melhor da linha carnavalizante da literatura brasileira, que se estende de Gregório de Matos a Márcio Souza, passando por Manuel Antônio de Almeida e Oswald de Andrade. Estamos diante de um escritor que combina um habilidoso domínio da técnica narrativa e uma grande agilidade no uso da linguagem com uma profunda preocupação com os descompassos do Brasil contemporâneo.

Chásqui: Journal of Latin American Literature, vol. 24, I (March 1995): 79-80

Almino, João, Samba-Enredo, São Paulo: Marco Zero, 1994, 208 pp.

Em seu segundo romance, o diplomata, ensaísta, fotógrafo e ficcionista João Almino nos transporta ao futuro — mais precisamente ao ano 2101 — para lançar um penetrante olhar crítico sobre o Brasil contemporâneo. O enredo focaliza a vida pública, as ligações amorosas, o sequestro e o eventual assassinato de Paulo Antônio Fernanes, político populista que chega à Presidência da República quando, numa alusão nada velada ao momento atual, “a nave desvairada dos brasileiros, perdida num oceano de intrigas, prestes a naufragar, esperara dele que fosse o comandante a atracá-la ao porto.” Aos poucos a narrativa vai assumindo contornos de um verdadeiro “samba do crioulo doido”, cuja incongruência espelha as contradições e dissonâncias que, paradoxalmente, caracterizam a precária identidade nacional brasileira.

Mola-mestra deste romance, essa incongruência aparece já na insólita confluência do narrador, o microcomputador G.G. (cujo nome deve ser pronunciado não Gegê, mas Gigi, em inglês, como convém a um computador), e da ação, que se passa durante o Carnaval de um ano no qual, significativamente, o tema comum dos sambas-enredo é uma das mais notórias características nacionais: o improviso. A perplexidade do leitor corresponde à de qualquer observador da realidade brasileira, onde a tecnologia de ponta coexiste com as mais tradicionais formas de vida, pois, como o universo ficcional de João Almino, o Brasil é um lugar cheio de surpresas, onde nada é exatamente o que “deveria” ser.

G.G. coloca sua narrativa ao serviço do fantasma de Sílvia, filha de Paulo Antônio, por quem G.G. está apaixonado(a) — o gênero do computador permanece ambíguo por todo o romance — a fim de auxiliá-la na tarefa de resgatar a memória (o jogo de palavras não é acidental) do pai. Almino faz desfilar uma galeria de personagens que o leitor brasileiro reconhece com facilidade: corruptos, marginais, alienados, cínicos, preguiçosos, drogados, exibicionistas, e aproveitadores de toda ordem. Destituídos de profundidade psicológica, esses personagens de papelão criam um efeito de estranhamento que, dificultando qualquer identificação emocional do leitor com o texto, abrem espaço para uma consideração de muitos dos mais preocupantes problemas nacionais e para uma reflexão sobre o que significa ser brasileiro neste final de século. Não há dúvida, portanto, que por trás da fantasia e do humor, esconde-se um arguto romance de idéias.

Como tantos outros escritores contemporâneos, João Almino opera sob o signo da intertextualidade, mais exatamente o da paródia de dois gêneros bastante praticados atualmente: o romance histórico, no qual se pretende recuperar o passado, geralmente para se compreender melhor o presente, e a ficção científica, na qual se quer projetar um futuro que de alguma forma retifique os problemas do presente. Almino realiza uma inteligente mescla desses dois gêneros, fazendo malograr tanto o resgate do passado quanto a utopia do futuro. O leitor constata que o passado é esquecido com rapidez e até mesmo leviandade, e que o futuro se assemelha demais ao presente para que possa introduzir algo de realmente diferente. O romance assinala essa circularidade ainda no primeiro capítulo, quando G.G. tem um pesadelo no qual um homem aparece queimando livros, isto é, destruindo a memória do passado, ao mesmo tempo em que, desconsolado, G.G. não consegue utilizar sua memória (mais uma vez o jogo de palavras é proposital) para salvar nada, nem mesmo o que, num felicíssimo oximóron, o narrador define como os “detritos do futuro.” Assim o romance sepulta o desgastado mito do Brasil como “país do futuro”, sugerindo pessimisticamente que um futuro promissor é impossível num país de memória curta.

Servindo-se de um humor afiado e elaborando uma sátira contundente, João Almino retoma e renova o melhor da linha carnavalizante da literatura brasileira, que se estende de Gregório de Matos a Márcio Souza, passando por Manuel Antônio de Almeida e Oswald de Andrade. Estamos diante de um escritor que combina um habilidoso domínio da técnica narrativa e uma grande agilidade no uso da linguagem com uma profunda preocupação com os descompassos do Brasil contemporâneo.

Chásqui: Journal of Latin American Literature, vol. 24, I (March 1995): 79-80

Almino, João, Samba-Enredo, São Paulo: Marco Zero, 1994, 208 pp.

Em seu segundo romance, o diplomata, ensaísta, fotógrafo e ficcionista João Almino nos transporta ao futuro — mais precisamente ao ano 2101 — para lançar um penetrante olhar crítico sobre o Brasil contemporâneo. O enredo focaliza a vida pública, as ligações amorosas, o sequestro e o eventual assassinato de Paulo Antônio Fernanes, político populista que chega à Presidência da República quando, numa alusão nada velada ao momento atual, “a nave desvairada dos brasileiros, perdida num oceano de intrigas, prestes a naufragar, esperara dele que fosse o comandante a atracá-la ao porto.” Aos poucos a narrativa vai assumindo contornos de um verdadeiro “samba do crioulo doido”, cuja incongruência espelha as contradições e dissonâncias que, paradoxalmente, caracterizam a precária identidade nacional brasileira.

Mola-mestra deste romance, essa incongruência aparece já na insólita confluência do narrador, o microcomputador G.G. (cujo nome deve ser pronunciado não Gegê, mas Gigi, em inglês, como convém a um computador), e da ação, que se passa durante o Carnaval de um ano no qual, significativamente, o tema comum dos sambas-enredo é uma das mais notórias características nacionais: o improviso. A perplexidade do leitor corresponde à de qualquer observador da realidade brasileira, onde a tecnologia de ponta coexiste com as mais tradicionais formas de vida, pois, como o universo ficcional de João Almino, o Brasil é um lugar cheio de surpresas, onde nada é exatamente o que “deveria” ser.

G.G. coloca sua narrativa ao serviço do fantasma de Sílvia, filha de Paulo Antônio, por quem G.G. está apaixonado(a) — o gênero do computador permanece ambíguo por todo o romance — a fim de auxiliá-la na tarefa de resgatar a memória (o jogo de palavras não é acidental) do pai. Almino faz desfilar uma galeria de personagens que o leitor brasileiro reconhece com facilidade: corruptos, marginais, alienados, cínicos, preguiçosos, drogados, exibicionistas, e aproveitadores de toda ordem. Destituídos de profundidade psicológica, esses personagens de papelão criam um efeito de estranhamento que, dificultando qualquer identificação emocional do leitor com o texto, abrem espaço para uma consideração de muitos dos mais preocupantes problemas nacionais e para uma reflexão sobre o que significa ser brasileiro neste final de século. Não há dúvida, portanto, que por trás da fantasia e do humor, esconde-se um arguto romance de idéias.

Como tantos outros escritores contemporâneos, João Almino opera sob o signo da intertextualidade, mais exatamente o da paródia de dois gêneros bastante praticados atualmente: o romance histórico, no qual se pretende recuperar o passado, geralmente para se compreender melhor o presente, e a ficção científica, na qual se quer projetar um futuro que de alguma forma retifique os problemas do presente. Almino realiza uma inteligente mescla desses dois gêneros, fazendo malograr tanto o resgate do passado quanto a utopia do futuro. O leitor constata que o passado é esquecido com rapidez e até mesmo leviandade, e que o futuro se assemelha demais ao presente para que possa introduzir algo de realmente diferente. O romance assinala essa circularidade ainda no primeiro capítulo, quando G.G. tem um pesadelo no qual um homem aparece queimando livros, isto é, destruindo a memória do passado, ao mesmo tempo em que, desconsolado, G.G. não consegue utilizar sua memória (mais uma vez o jogo de palavras é proposital) para salvar nada, nem mesmo o que, num felicíssimo oximóron, o narrador define como os “detritos do futuro.” Assim o romance sepulta o desgastado mito do Brasil como “país do futuro”, sugerindo pessimisticamente que um futuro promissor é impossível num país de memória curta.

Servindo-se de um humor afiado e elaborando uma sátira contundente, João Almino retoma e renova o melhor da linha carnavalizante da literatura brasileira, que se estende de Gregório de Matos a Márcio Souza, passando por Manuel Antônio de Almeida e Oswald de Andrade. Estamos diante de um escritor que combina um habilidoso domínio da técnica narrativa e uma grande agilidade no uso da linguagem com uma profunda preocupação com os descompassos do Brasil contemporâneo.

Chásqui: Journal of Latin American Literature, vol. 24, I (March 1995): 79-80

Almino, João, Samba-Enredo, São Paulo: Marco Zero, 1994, 208 pp.

Em seu segundo romance, o diplomata, ensaísta, fotógrafo e ficcionista João Almino nos transporta ao futuro — mais precisamente ao ano 2101 — para lançar um penetrante olhar crítico sobre o Brasil contemporâneo. O enredo focaliza a vida pública, as ligações amorosas, o sequestro e o eventual assassinato de Paulo Antônio Fernanes, político populista que chega à Presidência da República quando, numa alusão nada velada ao momento atual, “a nave desvairada dos brasileiros, perdida num oceano de intrigas, prestes a naufragar, esperara dele que fosse o comandante a atracá-la ao porto.” Aos poucos a narrativa vai assumindo contornos de um verdadeiro “samba do crioulo doido”, cuja incongruência espelha as contradições e dissonâncias que, paradoxalmente, caracterizam a precária identidade nacional brasileira.

Mola-mestra deste romance, essa incongruência aparece já na insólita confluência do narrador, o microcomputador G.G. (cujo nome deve ser pronunciado não Gegê, mas Gigi, em inglês, como convém a um computador), e da ação, que se passa durante o Carnaval de um ano no qual, significativamente, o tema comum dos sambas-enredo é uma das mais notórias características nacionais: o improviso. A perplexidade do leitor corresponde à de qualquer observador da realidade brasileira, onde a tecnologia de ponta coexiste com as mais tradicionais formas de vida, pois, como o universo ficcional de João Almino, o Brasil é um lugar cheio de surpresas, onde nada é exatamente o que “deveria” ser.

G.G. coloca sua narrativa ao serviço do fantasma de Sílvia, filha de Paulo Antônio, por quem G.G. está apaixonado(a) — o gênero do computador permanece ambíguo por todo o romance — a fim de auxiliá-la na tarefa de resgatar a memória (o jogo de palavras não é acidental) do pai. Almino faz desfilar uma galeria de personagens que o leitor brasileiro reconhece com facilidade: corruptos, marginais, alienados, cínicos, preguiçosos, drogados, exibicionistas, e aproveitadores de toda ordem. Destituídos de profundidade psicológica, esses personagens de papelão criam um efeito de estranhamento que, dificultando qualquer identificação emocional do leitor com o texto, abrem espaço para uma consideração de muitos dos mais preocupantes problemas nacionais e para uma reflexão sobre o que significa ser brasileiro neste final de século. Não há dúvida, portanto, que por trás da fantasia e do humor, esconde-se um arguto romance de idéias.

Como tantos outros escritores contemporâneos, João Almino opera sob o signo da intertextualidade, mais exatamente o da paródia de dois gêneros bastante praticados atualmente: o romance histórico, no qual se pretende recuperar o passado, geralmente para se compreender melhor o presente, e a ficção científica, na qual se quer projetar um futuro que de alguma forma retifique os problemas do presente. Almino realiza uma inteligente mescla desses dois gêneros, fazendo malograr tanto o resgate do passado quanto a utopia do futuro. O leitor constata que o passado é esquecido com rapidez e até mesmo leviandade, e que o futuro se assemelha demais ao presente para que possa introduzir algo de realmente diferente. O romance assinala essa circularidade ainda no primeiro capítulo, quando G.G. tem um pesadelo no qual um homem aparece queimando livros, isto é, destruindo a memória do passado, ao mesmo tempo em que, desconsolado, G.G. não consegue utilizar sua memória (mais uma vez o jogo de palavras é proposital) para salvar nada, nem mesmo o que, num felicíssimo oximóron, o narrador define como os “detritos do futuro.” Assim o romance sepulta o desgastado mito do Brasil como “país do futuro”, sugerindo pessimisticamente que um futuro promissor é impossível num país de memória curta.

Servindo-se de um humor afiado e elaborando uma sátira contundente, João Almino retoma e renova o melhor da linha carnavalizante da literatura brasileira, que se estende de Gregório de Matos a Márcio Souza, passando por Manuel Antônio de Almeida e Oswald de Andrade. Estamos diante de um escritor que combina um habilidoso domínio da técnica narrativa e uma grande agilidade no uso da linguagem com uma profunda preocupação com os descompassos do Brasil contemporâneo.