Um rumo para a transição. Marco Aurélio Garcia, Senhor, sobre Era uma vez uma constituinte, de João Almino

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SENHOR/236, 25/9/85

Reflexões sobre o papel da Constituinte na democracia brasileira

Marco Aurélio Garcia

Apesar de um pouco abafado pelo processo eleitoral de 15 de novembro próximo, o tema da Constituinte vem despertando um interesse crescente na população brasileira. Não passa despercebido o fato de que a nova Constituição, ao consagrar uma nova ordem econômico-social e ao definir o novo perfil de nossas instituições políticas, estará dando um rumo decisivo à chamada “transição democrática” que teve na eleição de Tancredo Neves pelo Colégio Eleitoral um ponto marcante de inflexão.

Se o “realismo político” e a nunca ausente “correlação de forças” justificaram a forma que a transição acabou adotando – pactada, “por cima”, mantendo inúmeros elementos de continuidade com o ancien régime -, o desdobramento do processo, e em particular a Constituinte prevista para 86, era apresentado como momento privilegiado para realizar as devidas correções de rumo, imprimindo um ritmo democrático a esta travessia, condizentes com os anseios populares inequivocamente demonstrados em 1984 na campanha das diretas.

É claro que sempre aparecia o argumento da crise, utilizado por alguns como suficiente para recomendar cautela no debate constitucional. Não faltaram, no entanto, os que argumentaram que a crise (da qual ninguém nega a existência e a magnitude) era a melhor razão para aconselhar uma audácia na formulação de alternativas democráticas. Em termos mais claros: a Constituinte esperada seria o momento de criação de um espaço político-institucional capaz de suportar os inevitáveis e necessários conflitos que se produzem em uma sociedade democrática. Caso contrário, estaremos assistindo ao estabelecimento de um novo pacto de elites que mantenha por mais tempo nosso apartheid disfarçado e cujas conseqüências serão novos períodos de instabilidade.

Uma reflexão sobre estes temas não pode prescindir de um recurso à história social e política de nosso país que, em inúmeras de suas conjunturas, oferece sugestivos elementos para pensar o atual momento constituinte. Por esta razão, a publicação dos livros de Francisco Iglezias (Constituintes e Constituições Brasileiras, Brasiliense, 108 pgs) e João Almino (Era uma Vez uma Constituinte – Lições de 1946 e Questões de Hoje, Brasiliense, 95 pgs) representam uma excelente contribuição, na medida em que o primeiro retraça a trajetória das Constituintes e das Constituições brasileiras, enquanto que o segundo se detém nas “lições de 1946”, dissecando o comportamento do que ele chama de “democratas autoritários”, aqueles que, segundo Raymundo Faoro, se especializaram em administrar liberalismo para si próprios, reservando aos trabalhadores o figurino corporativo autoritário.

O livro de Iglézias, dentro de seus limites editoriais, proporciona boa informação sobre a trajetória constitucional brasileira, desde a outorga de 1824, passando pelas Constituintes Republicanas de 1891, 1934 e 1946, sem esquecer da “Polaca”, a Carta autoritária do Estado Novo preparada pelo dr. Francisco Campos (o, para muitos, “saudoso Chico Ciência”). Trata também das aberrações dos Atos Institucionais e Complementares do pós-64, e da farsa constitucional de 1967. (…)

Iglézias entende o que politólogos até bem pouco tempo na oposição e hoje convertidos aos gabinetes governamentais insistem em desconhecer, cegados por seus parti-pris eleitorais: a forma do processo constituinte é decisiva para o conteúdo da nova Constituição. E esta – e é o historiador que ensina uma vez mais – deverá romper com a herança do Estado Novo e da ditadura militar que pesa sobre nossas instituições.

Esta questão das relações do novo com o velho regime conduz em grande medida à reflexão de João Almino. Ao se deter no exame da conjuntura de 1946, como já havia aprofundado em seu Os Democratas Autoritários (leia quadro*), o autor esmiúça as mazelas do liberalismo brasileiro que estabelecia regras, mas, ao mesmo tempo salvaguardas “transformadas em regras e que, em grande medida, negavam a regra inicialmente postulada”. (pg. 68) Este liberalismo sui generis, pois incapaz de aceitar que o “mercado” regule as atividades trabalhistas, daí porque exige a intervenção do Estado para controlar os sindicatos, apresenta-se, é claro, nas questões da ordem econômica fortemente antiestatista. Isto é: as restrições à intervenção estatal na economia são acompanhadas de incessantes apelos ao Estado para que intervenha no mundo do trabalho, disciplinando-o segundo os desígnios do capital.

A atuação dos “democratas autoritários”, que buscam uma institucionalização liberal que mantenha o autoritarismo corporativo, se expressaria em 1946 como mostra em seu livro, nos grandes temas do debate constitucional: o da liberdade de expressão, de reunião, de organização partidária, da autonomia sindical e do direito de greve, só para citar alguns. É dificil não ver no horizonte de 1986 as mesmas nuvens de 40 anos atrás.

Em suma: o que João Almino enfatiza em seu texto é a dura hipoteca ideológica que onera o atual debate constitucional, ao aludir à situação de 1946, presente hoje como um paradigma negativo. Esta hipoteca ideológica, somada às instituições que os sucessivos ancien régimes foram deixando, vicia de tal forma o pensamento de muitas forças políticas, mesmo daquelas que se pretendem vinculadas a projetos de reforma social, que comprometem a idéia mesma de democracia, abastardada crescentemente por uma sociedade que se acostumou – por arrogância, submissão ou impotência – a conviver com a desigualdade e o mais absoluto autoritarismo.

Conviver sem resistir com essa herança em nome de uma discutível realpolitik ou de uma visão conformista da “correlação de forças” significa resignar-se ad infinitum a não modificá-la e a empobrecer excessivamente a realidade ao qual melhor seria chamar de status quo.

Fustigando o pensamento conservador, mas ao mesmo tempo não poupando uma esquerda cujos européis ideológicos não escondem o que ela comparte com o autoritarismo da direita, Almino nos remete à discussão sobre as instrumentalizações do conceito de democracia pelas forças da reação e por aquelas que pretendiam a reforma social. A visão autoritária (porque não-totalitária) de uns e outros impede pensar “a democracia como um processo permanente de passagem de uma regra à outra, conduzida pela própria sociedade”. Impede, igualmente, de ver que, “quando tal processo deixa de estar em aberto – quando tenha atingido o objetivo -, ela (a democracia) deixa de existir.” (pg. 73)

Os partidos políticos não podem ficar cegos nesta quadra do debate constitucional aos sinais que a sociedade emitiu nestes últimos anos e não só àqueles grandiloqüentes da campanha das diretas, quando o tema da soberania popular foi escandido por milhões. Em plena noite do autoritarismo e, mais ainda, no crepúsculo do regime militar, em meio a uma crise intensa das instituições representativas, a sociedade apropriou-se da política e muitas vezes canhestramente foi construindo um novo conceito e uma nova forma de exercício desta.

(*) Os Democratas Autoritários – Liberdades Individuais, de Associação Política e Sindical na Constituinte de 1946, de João Almino (Brasiliense, 1980), uma criteriosa pesquisa e uma competente análise que ajuda a entender a crucial conjuntura 44/48 e lança luzes sobre o presente.

SENHOR/236, 25/9/85

Reflexões sobre o papel da Constituinte na democracia brasileira

Marco Aurélio Garcia

Apesar de um pouco abafado pelo processo eleitoral de 15 de novembro próximo, o tema da Constituinte vem despertando um interesse crescente na população brasileira. Não passa despercebido o fato de que a nova Constituição, ao consagrar uma nova ordem econômico-social e ao definir o novo perfil de nossas instituições políticas, estará dando um rumo decisivo à chamada “transição democrática” que teve na eleição de Tancredo Neves pelo Colégio Eleitoral um ponto marcante de inflexão.

Se o “realismo político” e a nunca ausente “correlação de forças” justificaram a forma que a transição acabou adotando – pactada, “por cima”, mantendo inúmeros elementos de continuidade com o ancien régime -, o desdobramento do processo, e em particular a Constituinte prevista para 86, era apresentado como momento privilegiado para realizar as devidas correções de rumo, imprimindo um ritmo democrático a esta travessia, condizentes com os anseios populares inequivocamente demonstrados em 1984 na campanha das diretas.

É claro que sempre aparecia o argumento da crise, utilizado por alguns como suficiente para recomendar cautela no debate constitucional. Não faltaram, no entanto, os que argumentaram que a crise (da qual ninguém nega a existência e a magnitude) era a melhor razão para aconselhar uma audácia na formulação de alternativas democráticas. Em termos mais claros: a Constituinte esperada seria o momento de criação de um espaço político-institucional capaz de suportar os inevitáveis e necessários conflitos que se produzem em uma sociedade democrática. Caso contrário, estaremos assistindo ao estabelecimento de um novo pacto de elites que mantenha por mais tempo nosso apartheid disfarçado e cujas conseqüências serão novos períodos de instabilidade.

Uma reflexão sobre estes temas não pode prescindir de um recurso à história social e política de nosso país que, em inúmeras de suas conjunturas, oferece sugestivos elementos para pensar o atual momento constituinte. Por esta razão, a publicação dos livros de Francisco Iglezias (Constituintes e Constituições Brasileiras, Brasiliense, 108 pgs) e João Almino (Era uma Vez uma Constituinte – Lições de 1946 e Questões de Hoje, Brasiliense, 95 pgs) representam uma excelente contribuição, na medida em que o primeiro retraça a trajetória das Constituintes e das Constituições brasileiras, enquanto que o segundo se detém nas “lições de 1946”, dissecando o comportamento do que ele chama de “democratas autoritários”, aqueles que, segundo Raymundo Faoro, se especializaram em administrar liberalismo para si próprios, reservando aos trabalhadores o figurino corporativo autoritário.

O livro de Iglézias, dentro de seus limites editoriais, proporciona boa informação sobre a trajetória constitucional brasileira, desde a outorga de 1824, passando pelas Constituintes Republicanas de 1891, 1934 e 1946, sem esquecer da “Polaca”, a Carta autoritária do Estado Novo preparada pelo dr. Francisco Campos (o, para muitos, “saudoso Chico Ciência”). Trata também das aberrações dos Atos Institucionais e Complementares do pós-64, e da farsa constitucional de 1967. (…)

Iglézias entende o que politólogos até bem pouco tempo na oposição e hoje convertidos aos gabinetes governamentais insistem em desconhecer, cegados por seus parti-pris eleitorais: a forma do processo constituinte é decisiva para o conteúdo da nova Constituição. E esta – e é o historiador que ensina uma vez mais – deverá romper com a herança do Estado Novo e da ditadura militar que pesa sobre nossas instituições.

Esta questão das relações do novo com o velho regime conduz em grande medida à reflexão de João Almino. Ao se deter no exame da conjuntura de 1946, como já havia aprofundado em seu Os Democratas Autoritários (leia quadro*), o autor esmiúça as mazelas do liberalismo brasileiro que estabelecia regras, mas, ao mesmo tempo salvaguardas “transformadas em regras e que, em grande medida, negavam a regra inicialmente postulada”. (pg. 68) Este liberalismo sui generis, pois incapaz de aceitar que o “mercado” regule as atividades trabalhistas, daí porque exige a intervenção do Estado para controlar os sindicatos, apresenta-se, é claro, nas questões da ordem econômica fortemente antiestatista. Isto é: as restrições à intervenção estatal na economia são acompanhadas de incessantes apelos ao Estado para que intervenha no mundo do trabalho, disciplinando-o segundo os desígnios do capital.

A atuação dos “democratas autoritários”, que buscam uma institucionalização liberal que mantenha o autoritarismo corporativo, se expressaria em 1946 como mostra em seu livro, nos grandes temas do debate constitucional: o da liberdade de expressão, de reunião, de organização partidária, da autonomia sindical e do direito de greve, só para citar alguns. É dificil não ver no horizonte de 1986 as mesmas nuvens de 40 anos atrás.

Em suma: o que João Almino enfatiza em seu texto é a dura hipoteca ideológica que onera o atual debate constitucional, ao aludir à situação de 1946, presente hoje como um paradigma negativo. Esta hipoteca ideológica, somada às instituições que os sucessivos ancien régimes foram deixando, vicia de tal forma o pensamento de muitas forças políticas, mesmo daquelas que se pretendem vinculadas a projetos de reforma social, que comprometem a idéia mesma de democracia, abastardada crescentemente por uma sociedade que se acostumou – por arrogância, submissão ou impotência – a conviver com a desigualdade e o mais absoluto autoritarismo.

Conviver sem resistir com essa herança em nome de uma discutível realpolitik ou de uma visão conformista da “correlação de forças” significa resignar-se ad infinitum a não modificá-la e a empobrecer excessivamente a realidade ao qual melhor seria chamar de status quo.

Fustigando o pensamento conservador, mas ao mesmo tempo não poupando uma esquerda cujos européis ideológicos não escondem o que ela comparte com o autoritarismo da direita, Almino nos remete à discussão sobre as instrumentalizações do conceito de democracia pelas forças da reação e por aquelas que pretendiam a reforma social. A visão autoritária (porque não-totalitária) de uns e outros impede pensar “a democracia como um processo permanente de passagem de uma regra à outra, conduzida pela própria sociedade”. Impede, igualmente, de ver que, “quando tal processo deixa de estar em aberto – quando tenha atingido o objetivo -, ela (a democracia) deixa de existir.” (pg. 73)

Os partidos políticos não podem ficar cegos nesta quadra do debate constitucional aos sinais que a sociedade emitiu nestes últimos anos e não só àqueles grandiloqüentes da campanha das diretas, quando o tema da soberania popular foi escandido por milhões. Em plena noite do autoritarismo e, mais ainda, no crepúsculo do regime militar, em meio a uma crise intensa das instituições representativas, a sociedade apropriou-se da política e muitas vezes canhestramente foi construindo um novo conceito e uma nova forma de exercício desta.

(*) Os Democratas Autoritários – Liberdades Individuais, de Associação Política e Sindical na Constituinte de 1946, de João Almino (Brasiliense, 1980), uma criteriosa pesquisa e uma competente análise que ajuda a entender a crucial conjuntura 44/48 e lança luzes sobre o presente.

SENHOR/236, 25/9/85

Reflexões sobre o papel da Constituinte na democracia brasileira

Marco Aurélio Garcia

Apesar de um pouco abafado pelo processo eleitoral de 15 de novembro próximo, o tema da Constituinte vem despertando um interesse crescente na população brasileira. Não passa despercebido o fato de que a nova Constituição, ao consagrar uma nova ordem econômico-social e ao definir o novo perfil de nossas instituições políticas, estará dando um rumo decisivo à chamada “transição democrática” que teve na eleição de Tancredo Neves pelo Colégio Eleitoral um ponto marcante de inflexão.

Se o “realismo político” e a nunca ausente “correlação de forças” justificaram a forma que a transição acabou adotando – pactada, “por cima”, mantendo inúmeros elementos de continuidade com o ancien régime -, o desdobramento do processo, e em particular a Constituinte prevista para 86, era apresentado como momento privilegiado para realizar as devidas correções de rumo, imprimindo um ritmo democrático a esta travessia, condizentes com os anseios populares inequivocamente demonstrados em 1984 na campanha das diretas.

É claro que sempre aparecia o argumento da crise, utilizado por alguns como suficiente para recomendar cautela no debate constitucional. Não faltaram, no entanto, os que argumentaram que a crise (da qual ninguém nega a existência e a magnitude) era a melhor razão para aconselhar uma audácia na formulação de alternativas democráticas. Em termos mais claros: a Constituinte esperada seria o momento de criação de um espaço político-institucional capaz de suportar os inevitáveis e necessários conflitos que se produzem em uma sociedade democrática. Caso contrário, estaremos assistindo ao estabelecimento de um novo pacto de elites que mantenha por mais tempo nosso apartheid disfarçado e cujas conseqüências serão novos períodos de instabilidade.

Uma reflexão sobre estes temas não pode prescindir de um recurso à história social e política de nosso país que, em inúmeras de suas conjunturas, oferece sugestivos elementos para pensar o atual momento constituinte. Por esta razão, a publicação dos livros de Francisco Iglezias (Constituintes e Constituições Brasileiras, Brasiliense, 108 pgs) e João Almino (Era uma Vez uma Constituinte – Lições de 1946 e Questões de Hoje, Brasiliense, 95 pgs) representam uma excelente contribuição, na medida em que o primeiro retraça a trajetória das Constituintes e das Constituições brasileiras, enquanto que o segundo se detém nas “lições de 1946”, dissecando o comportamento do que ele chama de “democratas autoritários”, aqueles que, segundo Raymundo Faoro, se especializaram em administrar liberalismo para si próprios, reservando aos trabalhadores o figurino corporativo autoritário.

O livro de Iglézias, dentro de seus limites editoriais, proporciona boa informação sobre a trajetória constitucional brasileira, desde a outorga de 1824, passando pelas Constituintes Republicanas de 1891, 1934 e 1946, sem esquecer da “Polaca”, a Carta autoritária do Estado Novo preparada pelo dr. Francisco Campos (o, para muitos, “saudoso Chico Ciência”). Trata também das aberrações dos Atos Institucionais e Complementares do pós-64, e da farsa constitucional de 1967. (…)

Iglézias entende o que politólogos até bem pouco tempo na oposição e hoje convertidos aos gabinetes governamentais insistem em desconhecer, cegados por seus parti-pris eleitorais: a forma do processo constituinte é decisiva para o conteúdo da nova Constituição. E esta – e é o historiador que ensina uma vez mais – deverá romper com a herança do Estado Novo e da ditadura militar que pesa sobre nossas instituições.

Esta questão das relações do novo com o velho regime conduz em grande medida à reflexão de João Almino. Ao se deter no exame da conjuntura de 1946, como já havia aprofundado em seu Os Democratas Autoritários (leia quadro*), o autor esmiúça as mazelas do liberalismo brasileiro que estabelecia regras, mas, ao mesmo tempo salvaguardas “transformadas em regras e que, em grande medida, negavam a regra inicialmente postulada”. (pg. 68) Este liberalismo sui generis, pois incapaz de aceitar que o “mercado” regule as atividades trabalhistas, daí porque exige a intervenção do Estado para controlar os sindicatos, apresenta-se, é claro, nas questões da ordem econômica fortemente antiestatista. Isto é: as restrições à intervenção estatal na economia são acompanhadas de incessantes apelos ao Estado para que intervenha no mundo do trabalho, disciplinando-o segundo os desígnios do capital.

A atuação dos “democratas autoritários”, que buscam uma institucionalização liberal que mantenha o autoritarismo corporativo, se expressaria em 1946 como mostra em seu livro, nos grandes temas do debate constitucional: o da liberdade de expressão, de reunião, de organização partidária, da autonomia sindical e do direito de greve, só para citar alguns. É dificil não ver no horizonte de 1986 as mesmas nuvens de 40 anos atrás.

Em suma: o que João Almino enfatiza em seu texto é a dura hipoteca ideológica que onera o atual debate constitucional, ao aludir à situação de 1946, presente hoje como um paradigma negativo. Esta hipoteca ideológica, somada às instituições que os sucessivos ancien régimes foram deixando, vicia de tal forma o pensamento de muitas forças políticas, mesmo daquelas que se pretendem vinculadas a projetos de reforma social, que comprometem a idéia mesma de democracia, abastardada crescentemente por uma sociedade que se acostumou – por arrogância, submissão ou impotência – a conviver com a desigualdade e o mais absoluto autoritarismo.

Conviver sem resistir com essa herança em nome de uma discutível realpolitik ou de uma visão conformista da “correlação de forças” significa resignar-se ad infinitum a não modificá-la e a empobrecer excessivamente a realidade ao qual melhor seria chamar de status quo.

Fustigando o pensamento conservador, mas ao mesmo tempo não poupando uma esquerda cujos européis ideológicos não escondem o que ela comparte com o autoritarismo da direita, Almino nos remete à discussão sobre as instrumentalizações do conceito de democracia pelas forças da reação e por aquelas que pretendiam a reforma social. A visão autoritária (porque não-totalitária) de uns e outros impede pensar “a democracia como um processo permanente de passagem de uma regra à outra, conduzida pela própria sociedade”. Impede, igualmente, de ver que, “quando tal processo deixa de estar em aberto – quando tenha atingido o objetivo -, ela (a democracia) deixa de existir.” (pg. 73)

Os partidos políticos não podem ficar cegos nesta quadra do debate constitucional aos sinais que a sociedade emitiu nestes últimos anos e não só àqueles grandiloqüentes da campanha das diretas, quando o tema da soberania popular foi escandido por milhões. Em plena noite do autoritarismo e, mais ainda, no crepúsculo do regime militar, em meio a uma crise intensa das instituições representativas, a sociedade apropriou-se da política e muitas vezes canhestramente foi construindo um novo conceito e uma nova forma de exercício desta.

(*) Os Democratas Autoritários – Liberdades Individuais, de Associação Política e Sindical na Constituinte de 1946, de João Almino (Brasiliense, 1980), uma criteriosa pesquisa e uma competente análise que ajuda a entender a crucial conjuntura 44/48 e lança luzes sobre o presente.

SENHOR/236, 25/9/85

Reflexões sobre o papel da Constituinte na democracia brasileira

Marco Aurélio Garcia

Apesar de um pouco abafado pelo processo eleitoral de 15 de novembro próximo, o tema da Constituinte vem despertando um interesse crescente na população brasileira. Não passa despercebido o fato de que a nova Constituição, ao consagrar uma nova ordem econômico-social e ao definir o novo perfil de nossas instituições políticas, estará dando um rumo decisivo à chamada “transição democrática” que teve na eleição de Tancredo Neves pelo Colégio Eleitoral um ponto marcante de inflexão.

Se o “realismo político” e a nunca ausente “correlação de forças” justificaram a forma que a transição acabou adotando – pactada, “por cima”, mantendo inúmeros elementos de continuidade com o ancien régime -, o desdobramento do processo, e em particular a Constituinte prevista para 86, era apresentado como momento privilegiado para realizar as devidas correções de rumo, imprimindo um ritmo democrático a esta travessia, condizentes com os anseios populares inequivocamente demonstrados em 1984 na campanha das diretas.

É claro que sempre aparecia o argumento da crise, utilizado por alguns como suficiente para recomendar cautela no debate constitucional. Não faltaram, no entanto, os que argumentaram que a crise (da qual ninguém nega a existência e a magnitude) era a melhor razão para aconselhar uma audácia na formulação de alternativas democráticas. Em termos mais claros: a Constituinte esperada seria o momento de criação de um espaço político-institucional capaz de suportar os inevitáveis e necessários conflitos que se produzem em uma sociedade democrática. Caso contrário, estaremos assistindo ao estabelecimento de um novo pacto de elites que mantenha por mais tempo nosso apartheid disfarçado e cujas conseqüências serão novos períodos de instabilidade.

Uma reflexão sobre estes temas não pode prescindir de um recurso à história social e política de nosso país que, em inúmeras de suas conjunturas, oferece sugestivos elementos para pensar o atual momento constituinte. Por esta razão, a publicação dos livros de Francisco Iglezias (Constituintes e Constituições Brasileiras, Brasiliense, 108 pgs) e João Almino (Era uma Vez uma Constituinte – Lições de 1946 e Questões de Hoje, Brasiliense, 95 pgs) representam uma excelente contribuição, na medida em que o primeiro retraça a trajetória das Constituintes e das Constituições brasileiras, enquanto que o segundo se detém nas “lições de 1946”, dissecando o comportamento do que ele chama de “democratas autoritários”, aqueles que, segundo Raymundo Faoro, se especializaram em administrar liberalismo para si próprios, reservando aos trabalhadores o figurino corporativo autoritário.

O livro de Iglézias, dentro de seus limites editoriais, proporciona boa informação sobre a trajetória constitucional brasileira, desde a outorga de 1824, passando pelas Constituintes Republicanas de 1891, 1934 e 1946, sem esquecer da “Polaca”, a Carta autoritária do Estado Novo preparada pelo dr. Francisco Campos (o, para muitos, “saudoso Chico Ciência”). Trata também das aberrações dos Atos Institucionais e Complementares do pós-64, e da farsa constitucional de 1967. (…)

Iglézias entende o que politólogos até bem pouco tempo na oposição e hoje convertidos aos gabinetes governamentais insistem em desconhecer, cegados por seus parti-pris eleitorais: a forma do processo constituinte é decisiva para o conteúdo da nova Constituição. E esta – e é o historiador que ensina uma vez mais – deverá romper com a herança do Estado Novo e da ditadura militar que pesa sobre nossas instituições.

Esta questão das relações do novo com o velho regime conduz em grande medida à reflexão de João Almino. Ao se deter no exame da conjuntura de 1946, como já havia aprofundado em seu Os Democratas Autoritários (leia quadro*), o autor esmiúça as mazelas do liberalismo brasileiro que estabelecia regras, mas, ao mesmo tempo salvaguardas “transformadas em regras e que, em grande medida, negavam a regra inicialmente postulada”. (pg. 68) Este liberalismo sui generis, pois incapaz de aceitar que o “mercado” regule as atividades trabalhistas, daí porque exige a intervenção do Estado para controlar os sindicatos, apresenta-se, é claro, nas questões da ordem econômica fortemente antiestatista. Isto é: as restrições à intervenção estatal na economia são acompanhadas de incessantes apelos ao Estado para que intervenha no mundo do trabalho, disciplinando-o segundo os desígnios do capital.

A atuação dos “democratas autoritários”, que buscam uma institucionalização liberal que mantenha o autoritarismo corporativo, se expressaria em 1946 como mostra em seu livro, nos grandes temas do debate constitucional: o da liberdade de expressão, de reunião, de organização partidária, da autonomia sindical e do direito de greve, só para citar alguns. É dificil não ver no horizonte de 1986 as mesmas nuvens de 40 anos atrás.

Em suma: o que João Almino enfatiza em seu texto é a dura hipoteca ideológica que onera o atual debate constitucional, ao aludir à situação de 1946, presente hoje como um paradigma negativo. Esta hipoteca ideológica, somada às instituições que os sucessivos ancien régimes foram deixando, vicia de tal forma o pensamento de muitas forças políticas, mesmo daquelas que se pretendem vinculadas a projetos de reforma social, que comprometem a idéia mesma de democracia, abastardada crescentemente por uma sociedade que se acostumou – por arrogância, submissão ou impotência – a conviver com a desigualdade e o mais absoluto autoritarismo.

Conviver sem resistir com essa herança em nome de uma discutível realpolitik ou de uma visão conformista da “correlação de forças” significa resignar-se ad infinitum a não modificá-la e a empobrecer excessivamente a realidade ao qual melhor seria chamar de status quo.

Fustigando o pensamento conservador, mas ao mesmo tempo não poupando uma esquerda cujos européis ideológicos não escondem o que ela comparte com o autoritarismo da direita, Almino nos remete à discussão sobre as instrumentalizações do conceito de democracia pelas forças da reação e por aquelas que pretendiam a reforma social. A visão autoritária (porque não-totalitária) de uns e outros impede pensar “a democracia como um processo permanente de passagem de uma regra à outra, conduzida pela própria sociedade”. Impede, igualmente, de ver que, “quando tal processo deixa de estar em aberto – quando tenha atingido o objetivo -, ela (a democracia) deixa de existir.” (pg. 73)

Os partidos políticos não podem ficar cegos nesta quadra do debate constitucional aos sinais que a sociedade emitiu nestes últimos anos e não só àqueles grandiloqüentes da campanha das diretas, quando o tema da soberania popular foi escandido por milhões. Em plena noite do autoritarismo e, mais ainda, no crepúsculo do regime militar, em meio a uma crise intensa das instituições representativas, a sociedade apropriou-se da política e muitas vezes canhestramente foi construindo um novo conceito e uma nova forma de exercício desta.

(*) Os Democratas Autoritários – Liberdades Individuais, de Associação Política e Sindical na Constituinte de 1946, de João Almino (Brasiliense, 1980), uma criteriosa pesquisa e uma competente análise que ajuda a entender a crucial conjuntura 44/48 e lança luzes sobre o presente.